Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A sociedade sobrecarregada

   Texto de Amador Fernández Savater, publicado em ctxt, em 18/2/2023. Tradução: Haroldo Gomes.

Uma vida no piloto automático anestesia a capacidade de escuta e de pensamento, de criação e de autonomia


Um amigo tem que ir à delegacia para registrar uma queixa. Nas conversas com os policiais, durante as seis horas que ele tem que passar lá, lhe contam e lhe mostram até que ponto “não dão conta” para responder a quantidade de casos que se apresentam diariamente. Chegaram até a colocar um agente na porta que faz um primeiro filtro entre as demandas que podem processar e as que não podem.

Situação idêntica nos centros de atenção primária. Sabemos disso graças às lutas dos profissionais de saúde e por nossa própria experiência. O tempo para ver e ouvir os doentes é escasso, as rotinas automatizadas dominam e torna-se impossível fazer dos centros de saúde o que eles devem ser também: lugares de pesquisa, aprendizagem e vida comunitária.

Você pode ouvir a mesma reclamação se ouvir qualquer professor da educação pública espanhola. A escola hoje está saturada de regulamentos obrigatórios, disciplinas e controles burocráticos. O bom senso e a sensibilidade dos professores estão bloqueados: não se pode "perder tempo" acompanhando o caso singular desse menino ou dessa menina, porque você tem que cumprir o programa custe o que custar!

Falta tempo e se está sempre às pressas. As instituições que sustentam a vida cotidiana estão assoladas por um surto de mal-estar que busca nelas refúgio. As palavras que descrevem as situações coletivas – saturação, fuga, colapso – servem perfeitamente para descrever nossas experiências pessoais e privadas. Muitas mensagens para responder, demandas para atender, incêndios para apagar.

Vivemos, definitivamente, em uma sociedade sobrecarregada. Onde a impossibilidade de atenção se tornou um problema de primeira ordem. A atenção não é apenas a aptidão para a concentração individual, mas também a capacidade de acolher e ouvir, de cuidar dos vínculos. Nossa desatenção é um mecanismo de defesa contra a aceleração diária dos ritmos e a multiplicação dos sinais, mas nos cobra um preço muito alto. A vida no piloto automático anestesia a capacidade de escuta e de pensamento, de criação e de autonomia.

O que está acontecendo? O problema é muito complexo. Ou seja, está na encruzilhada complicada de uma infinidade de fatores e fenômenos. Ao mesmo tempo psicológicos, sociais, econômicos, políticos, tecnológicos. Em cada situação, se manifesta de forma diferente e com desigualdades específicas (classe, idade, preconceitos de gênero, etc.). Limitar-me-ei agora a partilhar algumas reflexões que se podem ler desenvolvidas num livro colectivo recentemente publicado sobre o tema e que coordenei em conjunto com o artista e curador, Oier Etxeberria, El eclipse de la atencíon.

Ecologia da atenção

É muito importante pensar bem sobre o seguinte: a atenção não é apenas uma questão individual, mas tem uma dimensão coletiva e política.

O pensador francês Yves Citton, que passou anos trabalhando no assunto, propõe a seguinte ideia: a atenção é uma ecologia. Ou seja, a atenção deve ser pensada como um ambiente ou, melhor ainda, como um ecossistema do qual fazemos parte e que só podemos cuidar em comum. Sou livre para fechar os olhos para as propagandas que me assaltam de todos os lados, mas o próprio ambiente é prejudicial à atenção. A transformação desse ambiente só pode ser uma ação coletiva e, nesse sentido, política.

A atenção é, portanto, uma questão de condições. Existem condições favoráveis ​​e condições desfavoráveis. Os esforços individuais não são suficientes. O desafio é construir boas condições – de recursos, tempo e hábitos – para prestar atenção.

O que está localizado hoje no centro das instituições educacionais ou de saúde? Não as necessidades únicas das pessoas, mas a lógica da maximização do lucro, do controle burocrático e da tarefa delegada de conter uma agitação social que está explodindo em todos os lados. Uma amiga professora me conta que a única coisa que ela pode fazer com as crianças logo pela manhã é deixá-las dormir nas carteiras porque chegam sem dormir o suficiente.

Onde as necessidades e capacidades de pessoas singulares não estão no cerne das estruturas coletivas, elas se tornam "estressantes" e separam os sujeitos. Essa imagem de "ruptura" me foi passada por uma amiga professora de Filosofia que me conta como se sente diariamente sacudida por duas demandas opostas: o desejo de acompanhar a trajetória de aprendizagem das crianças e a obrigação de cumprir uma série de regras e programas decididos em abstrato e a priori, sem qualquer flexibilidade para acompanhar casos singulares.

A atenção é um problema coletivo que tem a ver com as condições (políticas, econômicas e outras). A luta dos trabalhadores da saúde mostra isso. Não só é tão popular e transversal porque a maioria da população é sejamos usuários da saúde pública, mas também porque todos reconhecemos um problema comum e a coragem de dar uma resposta coletiva e organizada.

Isso significa que o problema da atenção é apenas estrutural, objetivo? O que poderia ser resolvido com um aumento quantitativo de salários, de pessoal, de meios? Acho que não, porque a atenção também é um bem comum que damos (ou tiramos) uns dos outros. Ou seja, a aceleração ambiente gruda em nossos corpos e nós mesmos a reproduzimos, "estressando" os outros. Uma epidemia do descuido.

Um exemplo banal, mas repetido: aquela mania de mandar mensagem no WhatsApp dizendo pro outro “acabei de te mandar um e-mail”. Ou seja, nas entrelinhas, "Responda-me agora!". Não saber esperar, não saber ouvir, exigir resultados e respostas imediatas, instala-se em nós como um hábito profundo que acelera a aceleração. A sociedade sobrecarregada é uma sociedade à beira de um colapso nervoso – e ao mesmo tempo os nervos agravam a sobrecarga.

Disputar a atenção

A atenção é um enredo, um ambiente, um ecossistema do qual fazemos parte. A nossa incapacidade de cuidar e sustentar essa trama, nossa delegação e demanda permanente ao outro de que resolva todos os problemas, agrava a situação. Quanto menos vínculo social autônomo houver, mais estruturas sobrecarregadas: a justiça tem que se encarregar de resolver o menor desacordo entre os cidadãos, etc.

Sem lutar coletivamente por melhores condições de atenção, os problemas diários continuarão a exceder em muito nossas capacidades de resposta individual. Assim, corremos o risco de nos tornarmos pessoas derrotadas e resignadas, queixosas e vitimizadas. Por não sermos capazes de cuidar dos problemas que nos afligem, procuramos neste ou naquele outro um culpado do que nos acontece.

Dessa impotência e dessa frustração cotidiana só se sai aprendendo de novo a conspirar, ou seja, a respirar em comum.











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