Texto de Amador Fernández Savater, publicado em ctxt, em 18/2/2023. Tradução: Haroldo Gomes.
Uma vida no piloto automático anestesia a capacidade de escuta e de pensamento, de criação e de autonomia
Um amigo tem que ir à delegacia para registrar uma queixa. Nas conversas com os policiais, durante as seis horas que ele tem que passar lá, lhe contam e lhe mostram até que ponto “não dão conta” para responder a quantidade de casos que se apresentam diariamente. Chegaram até a colocar um agente na porta que faz um primeiro filtro entre as demandas que podem processar e as que não podem.
Situação idêntica nos centros de atenção primária. Sabemos disso graças às lutas dos profissionais de saúde e por nossa própria experiência. O tempo para ver e ouvir os doentes é escasso, as rotinas automatizadas dominam e torna-se impossível fazer dos centros de saúde o que eles devem ser também: lugares de pesquisa, aprendizagem e vida comunitária.
Você pode ouvir a mesma reclamação se ouvir qualquer professor da educação pública espanhola. A escola hoje está saturada de regulamentos obrigatórios, disciplinas e controles burocráticos. O bom senso e a sensibilidade dos professores estão bloqueados: não se pode "perder tempo" acompanhando o caso singular desse menino ou dessa menina, porque você tem que cumprir o programa custe o que custar!
Falta tempo e se está sempre às pressas. As instituições que sustentam a vida cotidiana estão assoladas por um surto de mal-estar que busca nelas refúgio. As palavras que descrevem as situações coletivas – saturação, fuga, colapso – servem perfeitamente para descrever nossas experiências pessoais e privadas. Muitas mensagens para responder, demandas para atender, incêndios para apagar.
Vivemos, definitivamente, em uma sociedade sobrecarregada. Onde a impossibilidade de atenção se tornou um problema de primeira ordem. A atenção não é apenas a aptidão para a concentração individual, mas também a capacidade de acolher e ouvir, de cuidar dos vínculos. Nossa desatenção é um mecanismo de defesa contra a aceleração diária dos ritmos e a multiplicação dos sinais, mas nos cobra um preço muito alto. A vida no piloto automático anestesia a capacidade de escuta e de pensamento, de criação e de autonomia.
O que está acontecendo? O problema é muito complexo. Ou seja, está na encruzilhada complicada de uma infinidade de fatores e fenômenos. Ao mesmo tempo psicológicos, sociais, econômicos, políticos, tecnológicos. Em cada situação, se manifesta de forma diferente e com desigualdades específicas (classe, idade, preconceitos de gênero, etc.). Limitar-me-ei agora a partilhar algumas reflexões que se podem ler desenvolvidas num livro colectivo recentemente publicado sobre o tema e que coordenei em conjunto com o artista e curador, Oier Etxeberria, El eclipse de la atencíon.
Ecologia da atenção
É muito importante pensar bem sobre o seguinte: a atenção não é apenas uma questão individual, mas tem uma dimensão coletiva e política.
O pensador francês Yves Citton, que passou anos trabalhando no assunto, propõe a seguinte ideia: a atenção é uma ecologia. Ou seja, a atenção deve ser pensada como um ambiente ou, melhor ainda, como um ecossistema do qual fazemos parte e que só podemos cuidar em comum. Sou livre para fechar os olhos para as propagandas que me assaltam de todos os lados, mas o próprio ambiente é prejudicial à atenção. A transformação desse ambiente só pode ser uma ação coletiva e, nesse sentido, política.
A atenção é, portanto, uma questão de condições. Existem condições favoráveis e condições desfavoráveis. Os esforços individuais não são suficientes. O desafio é construir boas condições – de recursos, tempo e hábitos – para prestar atenção.
O que está localizado hoje no centro das instituições educacionais ou de saúde? Não as necessidades únicas das pessoas, mas a lógica da maximização do lucro, do controle burocrático e da tarefa delegada de conter uma agitação social que está explodindo em todos os lados. Uma amiga professora me conta que a única coisa que ela pode fazer com as crianças logo pela manhã é deixá-las dormir nas carteiras porque chegam sem dormir o suficiente.
Onde as necessidades e capacidades de pessoas singulares não estão no cerne das estruturas coletivas, elas se tornam "estressantes" e separam os sujeitos. Essa imagem de "ruptura" me foi passada por uma amiga professora de Filosofia que me conta como se sente diariamente sacudida por duas demandas opostas: o desejo de acompanhar a trajetória de aprendizagem das crianças e a obrigação de cumprir uma série de regras e programas decididos em abstrato e a priori, sem qualquer flexibilidade para acompanhar casos singulares.
A atenção é um problema coletivo que tem a ver com as condições (políticas, econômicas e outras). A luta dos trabalhadores da saúde mostra isso. Não só é tão popular e transversal porque a maioria da população é sejamos usuários da saúde pública, mas também porque todos reconhecemos um problema comum e a coragem de dar uma resposta coletiva e organizada.
Isso significa que o problema da atenção é apenas estrutural, objetivo? O que poderia ser resolvido com um aumento quantitativo de salários, de pessoal, de meios? Acho que não, porque a atenção também é um bem comum que damos (ou tiramos) uns dos outros. Ou seja, a aceleração ambiente gruda em nossos corpos e nós mesmos a reproduzimos, "estressando" os outros. Uma epidemia do descuido.
Um exemplo banal, mas repetido: aquela mania de mandar mensagem no WhatsApp dizendo pro outro “acabei de te mandar um e-mail”. Ou seja, nas entrelinhas, "Responda-me agora!". Não saber esperar, não saber ouvir, exigir resultados e respostas imediatas, instala-se em nós como um hábito profundo que acelera a aceleração. A sociedade sobrecarregada é uma sociedade à beira de um colapso nervoso – e ao mesmo tempo os nervos agravam a sobrecarga.
Disputar a atenção
A atenção é um enredo, um ambiente, um ecossistema do qual fazemos parte. A nossa incapacidade de cuidar e sustentar essa trama, nossa delegação e demanda permanente ao outro de que resolva todos os problemas, agrava a situação. Quanto menos vínculo social autônomo houver, mais estruturas sobrecarregadas: a justiça tem que se encarregar de resolver o menor desacordo entre os cidadãos, etc.
Sem lutar coletivamente por melhores condições de atenção, os problemas diários continuarão a exceder em muito nossas capacidades de resposta individual. Assim, corremos o risco de nos tornarmos pessoas derrotadas e resignadas, queixosas e vitimizadas. Por não sermos capazes de cuidar dos problemas que nos afligem, procuramos neste ou naquele outro um culpado do que nos acontece.
Dessa impotência e dessa frustração cotidiana só se sai aprendendo de novo a conspirar, ou seja, a respirar em comum.
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