[Entrevista
com Marina Garcés, publicada no
jornal El País, em 7/7/2015.
Tradução: Haroldo Gomes]
Mãe de dois filhos, professora na Universidade
de Zaragoza e ensaísta, Marina Garcés sustenta que diante das perguntas
inaugurais da filosofia – como viver?, como pensar?, como atuar? – devemos dar
respostas e soluções desde o compromisso comum, porém também “enquanto fazemos
a comida, cuidamos de nossos filhos mais velhos, rindo, lutando, amando e
contando histórias”. Primeira lição prática. Essa entrevista se desenvolve na
cozinha.
Em seu livro Un mundo común (Bellaterra, 2013), você
fala da filosofia como um meio para a conquista de uma vida partilhada, diante
do eu e da individualidade. O que levou você a estuda-la numa época, os
noventa, em que se considerava uma disciplina morta e enterrada, como a história e como tantas outras certezas?
Era 1992, ano do triunfalismo em
Barcelona e no conjunto da Espanha. Também eram os anos da globalização feliz.
O mundo havia se unido, por fim, num mercado único. Celebrava-se o fim da história,
das ideologias, e parecia que só podíamos estar chamados a triunfar na
sociedade da comunicação e do consumo. Eu, que estava a ponto de entrar na
carreira de Jornalismo, tive um pressentimento, um impulso, uma inquietação que
me afastou de tudo aquilo. Tomei a decisão como um ato solitário e me
distanciei daquele ambiente de êxito para ingressar numa Faculdade de pessoas
raras, fora de moda. Todavia, descobri que as aulas transbordavam. Aquela
decisão me salvou, foi como cair em mar aberto, e assim comecei a encontrar
outras alianças: amigos, interlocutores, pessoas valentes. Também encontrei a
aventura do pensamento e do descobrimento da ação coletiva. A decisão de
estudar Filosofia me permitiu espetar a falsa bolha do êxito.
Você afirma que “o corpo
do filósofo quer se deixar tocar, é um corpo apaixonado”. Esse novo
romanticismo, esse amor como potencia da colaboração social, é o retorno à
ágora grega?
Para mim, a filosofia é a declaração de
um compromisso. É uma forma de interpelação e de encontro que se inventa nas
ruas gregas e que não deixou de nos falar. Ainda que não o pareça, a filosofia
nasce como uma arte das ruas. É uma relação com a sociedade, com o mundo
natural e com a própria vida que implica que os outros também possam pensar e
rebater nossas ideias. Por isso, a filosofia ainda que pareça elitista e
estranha, é radicalmente igualitária. Parte do fato de que todos podemos
pensar, ainda que normalmente não o façamos. E isso implica deixar-se tocar
pelo que outros têm pensado. Nesse sentido,
é uma forma de amor. A palavra “filosofia” leva em sua raiz o impulso do
desejo, philein. O desejo de saber não admite torres de marfim. Implicar ir ao
encontro do mundo.
Porém, sempre se viu o
filósofo como um ser apartado do mundo.
Sim, inclusive como torpe, como uma
figura que não funciona bem na cidade. E é porque o compromisso da filosofia é
disfuncional. Não aceita a normalidade nem o sentido comum. Pergunta quais são
os pressupostos daquilo que consideramos bom, justo, aceitável. Para mim não há
maior compromisso do que nos fazer estas perguntas e assumir suas consequências
práticas, tanto a nível pessoal quanto coletivo.
Tem algum sentido a
filosofia no espaço privado? É um traje que que se pode deixar no cabide quando se
entra em casa?
A filosofia não é um abrigo, é a pele.
Não é um vestido, é a carne. Não é um papel, é uma forma de vida. Portanto, não
se deixa nem no guarda-roupa nem no trabalho. Tampouco se deixa no espaço
público. Há que se retificar certa ideia da filosofia como a entenderam os
homens gregos, que separavam a ágora,
onde acontecia a vida política e a vida filosófica, e o oikos, a casa, onde acontecia a reprodução da vida. Ali estavam as
mulheres, os filhos, os velhos, a vida corporal e material... Porém ali não se
pensava. Hoje, sobretudo as mulheres, acabamos com essa separação. Pensa-se e
transforma-se o mundo fazendo a comida, trabalhando, cuidando dos filhos e dos
idosos, rindo com os amigos, jogando e contando histórias. Pensar não é um ato
solene.
Você é mãe de um menino e
de uma menina. A maternidade pode ser uma dependência positiva?
Há que se distinguir dependência de
submissão. A submissão é uma determinada maneira de exercer as relações de
dependência, porém há formas de dependência livre e recíproca que são as que
sustentam nossa vida. Todos nascemos do corpo de outros e somos criados pelas
mãos, palavras e olhares de outros. Vivemos em continuidade. Somos, portanto,
radicalmente interdependentes, porém a sociedade moderna criou a ficção de que
podemos ser indivíduos autossuficientes. Temos nos equivocado muito confundindo
liberdade com autossuficiência e agora a humanidade inteira sofre as
consequências.
Em seu último ensaio, Filosofia inacabada (Galaxia Gutenberg),
você apresenta uma missão filosófica diante da possível extinção da vida humana
no planeta.
Sempre podemos reaprender a ver o mundo,
nisso consistem a filosofia, a arte e a poesia. Da mesma forma que somos
interdependentes, estamos sempre retomando visões, representações, ideias,
legados culturais. E o desafio é recebê-los livremente para podê-los
transformar. Não pode haver novidade sem receptividade. A novidade pela
novidade é a tirania do mercado. O que mudou, talvez, é que atualmente estamos
em condições de acabar com o planeta, ou pelo menos com nossa vida no planeta.
Este é o problema mais sério de nosso tempo. Frente a ele, defendo que a
filosofia tem a missão de “inacabar” o que ameaça esgotar-se, abrir projetos
possíveis nesse mundo que se acaba.
Ada Colau, em Barcelona, e
Manuela Carmena, em Madrid, acabam de ganhar a prefeitura. São duas mulheres
que pensam que é possível estabelecer novas relações entre igualdade e
democracia. Você acredita nisso?
As instituições democráticas que
conhecemos não são garantia de igualdade social, como temos comprovado nos
últimos anos com a crise. Os países ricos, supostamente democráticos,
contribuem com a desigualdade no mundo e também vemos crescer neles novas
formas de pobreza. É possível “uma democracia real já”, como lançou às ruas o
15-M? Democracia real é inseparável de igualdade social. As Prefeituras de
cidades como Madrid, Barcelona, Badalona, Valencia, Zaragoza, Cádiz... Têm
agora a oportunidade de iniciar um movimento de transformação das instituições.
O objetivo, para mim, é criar uma rede de contra poder municipal desde onde
trabalhar tanto na justiça social quanto na transformação política.
O êxito dessas mulheres é
o primeiro efeito de superação da grande desigualdade, neste caso uma
desigualdade existencial, que segrega às pessoas por seu gênero?
Estamos vivendo uma feminização da
política que acontece ao mesmo tempo em que há um rebrote muito forte do
machismo em outros âmbitos da sociedade. Fixe-se que as profissões vão se
feminizando à medida que perdem poder: a medicina primária, a vida acadêmica
precária e agora a política. Onde estão os homens que aspiram manter o poder?
Nos bancos, nos conselhos de administração, nos palcos de futebol, nas salas de
cirurgia... Tem que ir com cuidado e não se deixar enganar. E, sobretudo, não
tem que se deixar sacrificar, como se dissessem: agora que a política está tão
desprestigiada, fazê-la vocês, que lhes darão outro ar. Porém, creio que tem
que aproveitar a ocasião, vamos mudar a política, a medicina, a vida acadêmica.
E isso quer dizer: vamos mudar as relações de poder. É um novo estágio do
feminismo, que não passa somente por reivindicar direitos.
A política é um assunto estético?
A política é um assunto
de sensibilidade e, assim, tem a ver com a estética no sentido mais literal da
palavra. O perigo é a estetização da política, que hoje passa por formas muito
banais de espetacularização. A política tem a ver com a estética no sentido de
que só se pode mudar a política fazendo-o de outra sensibilidade.
Você propõe a ideia de anonimato, de
lideranças partilhadas. A sociedade entende isso?
O projeto de Podemos em Madrid não teria
sido entendido sem a autoridade “moral” de Manuela Carmena, ou casos como o de
José Mujica, no Uruguai, inclusive o do papa Francisco... O
15-M demonstrou algo que muitos defendíamos desde muito tempo: que as
verdadeiras mudanças políticas são feitas pelas pessoas anônimas. A força do
anonimato não é a da massa uniformizada. É a de cada um e cada uma quando
estamos dispostos a lutar juntos. Sem isso, os líderes não são nada. E acabam
sendo sacrificados. Agora tem que ir com cuidado: se as pessoas anônimas se
retiram de seu desafio, não haverá verdadeiras mudanças políticas.
“A cultura foi apropriada pelas marcas
corporativas, por nações, por cidades-marca”, escreve você. Propõe desapropriá-la.
Como fazê-lo?
A cultura não pode ser uma esfera
separada da sociedade. Não pode ser somente uma opção de ócio, nem um setor da
indústria, nem um setor do PIB. Convertemos a cultura num recurso fortíssimo do
capitalismo ao mesmo tempo em que nos empobrecemos culturalmente.
Desapropriar a cultura é tirá-la dessa captura setorial capitalista e
entende-la como algo vivo que forma parte intrínseca da vida humana. Para isso,
creio que há um sentido do serviço público que não podemos renunciar, porém que
não necessariamente significa estatizar nem burocratizar a cultura.
Você proporia um apagão institucional,
ou um eclipse, de museus, de teatros?
Estamos inundados de opções impossíveis
de digerir e, ao contrário, há muito pouco espaço para fazer, criar, propor. A
cultura convertida num menu é indigestão, como diz um amigo meu. Tem que deixar
mais espaços em branco e, ao mesmo tempo, cultivar (cultura é cultivo) desde
baixo, desde a educação. Não creio numa cultura consistente sem uma boa
educação. Tem que se encontrar de novo nas aulas, nas ruas, nas cidades e
povoados.
Você advoga por uma educação expandida
que possa surgir em qualquer momento e lugar. É um deslocamento da Universidade
para a rua, esse “todos temos direito a pensar”, que foi a pergunta inaugural
da filosofia. Como põe em prática desde sua docência na Universidade de
Zaragoza?
O que me preocupa é como criar a
situação para que nos assaltem ideias que nos obriguem a pensar o que nunca
havíamos pensado. Como manter aceso esse desejo de compreender o que é a
filosofia e fazê-lo circular dentro e fora da academia, em conexão. E,
sobretudo, como evitar que morra. E após vários anos já de experiência, posso
dizer que não é nada fácil. A Universidade está se convertendo num espaço de
circulação no qual não se espera fazer experiência de nada, senão adquirir
“competências competitivas”. Isso não funciona no caso da filosofia. E então o
que se cria é uma estranha situação não qual ninguém sabe muito bem o que faz
ali. Faz um par de anos escrevi uma carta a meus estudantes. Dizia-lhes: “Só
temos duas opções: ou fugimos daqui, como muitos estão fazendo, ou fazemos de
nossa extravagancia um desafio. (...) O rendimento do que fazemos agora não
depende de vocês. A riqueza, sim”.
Você tem comparado o êxito da “marca
Barcelona” com a exploração dos recursos naturais na América Latina. A
indústria turística de uma cidade não seria muito diferente da que rentabiliza
uma colônia para buscar, digamos, petróleo, madeira.
O turismo não é um fenômeno natural, é um fato induzido que tem uma história
muito curta e que no caso de uma cidade como Barcelona foi promovido pelos
sucessivos governos municipais, especialmente desde 1992. Há que fazer uma
crítica de como chegamos até aqui, uma reorientação não dos efeitos, mas também
da concepção do que cremos que seja uma cidade e um território. Para mim, a indústria
turística funciona hoje como qualquer indústria extrativista: ou seja, que
converte tudo o que toca num recurso a explorar de maneira intensiva e
destrutora. Cria uma riqueza empobrecedora. Alarma ver como Barcelona está tão
explorada quanto uma mina ou quanto um campo de soja.
Qual é a grande diferença entre a
Barcelona de 2015, a de seu avô, o poeta Tomás Garcés, e a de seu pai, o
arquiteto Jordi Garcés?
Meu avô nasceu em 1901, filho da imigração castelã que chegou a trabalhar
a Barcelona para construir a Exposição Universal de 1888. Aos 20 anos já era um
poeta catalão que gozou de reconhecimento e participou ativamente da vida
cultural catalã, apesar do franquismo. Meu pai, como arquiteto, formou parte
dessa geração que deu a Barcelona uma identidade baseada em certo rigor
cultural antes que começassem a chegar os edifícios emblemáticos e as
contratações estrelas. Eu vivo em Barcelona, porém meu trabalho é na
Universidade de Zaragoza. Em um século, portanto, chegada, consolidação e
saída. Ainda que em meu caso a saída de Barcelona seja intermitente, porque
posso me permitir ir e vir, me sinto um pouco parte de um tempo histórico no
qual Barcelona já não acolhe, mas expulsa. Converteu-se numa cidade de passagem.
E, em muitos casos, numa cidade de saída. Preocupa-me. Porque só se enriquecem
socialmente as cidades que permitem chegar, não só circular por elas.
Recomende um livro para uma vida de amor
e compromisso.
O Tratado da Servidão Voluntária,
de Étienne de La Boétie. Escrito no século XVI por um jovem francês que via com
olhos muito comprometidos a vida de sua cidade, Burdeos. Apresentou duas
questões para mim imprescindíveis: por que obedecemos se poderíamos deixar de
fazê-lo, e por que nos maltratamos tanto se o mais natural é confraternizar uns
com os outros. Como viver juntos sem nos dominar: esta é a questão
imprescindível com que nos interpela e não deixa de nos inquietar, ainda hoje,
este livro.