Entrevista com o filósofo
italiano, Franco Berardi (Bifo), feita por Amador Fernández-Savater,
publicada no blog Interferencias, em 19/10/2018. Tradução: Vapor ao Vento.
No começo dos anos 70, Pier Paolo Pasolini falava de “mutação
antropológica” para se referir aos efeitos que a penetração da cultura do
consumo na Itália estava tendo. O consumo alcançava e alterava camadas do ser
que nem sequer o fascismo havia tocado. Todas as respostas – da política, da
cultura, da filosofia – deviam ser repensadas à luz dos acontecimentos, segundo
o poeta-cineasta.
Em seu último livro Fenomenología del fin, um trabalho de mais de 15 anos, Franco
Berardi (Bifo), filósofo e
participante ativo dos movimentos autônomos italianos desde os anos 70,
descreve a “mutação antropológica” de nossos dias: o impacto das tecnologias
digitais sobre nossa percepção e nossa sensibilidade. O que é a sensibilidade?
É a capacidade de interpretar sinais não discursivos, não-codificados. Pois
bem, essa capacidade está se atrofiando por nossa exposição às tecnologias
digitais que funcionam segundo uma lógica muito formatada, uma lógica do
código.
Tudo deve ser repensado, afirma também
Bifo, o alcance da mutação digital é igualmente muito profundo. A atrofia da
sensibilidade implica uma atrofia da empatia, que é a capacidade de sentir-com,
de sentir o outro como prolongamento de minha existência e de meu corpo. A base
sensível da solidariedade. Que
monstros habitam nessa insensibilização radical? Como é possível voltar a
pensar, a criar e a lutar em condições de transformação radical da percepção?
Em que tipo de ser humano estamos nos convertendo?
Uma
epidemia de descortesia
Amador: Diferentemente de outros livros seus,
diria que este é um livro sobre estética, mais do que um livro político. Um
livro onde a estética está em primeiro plano, em todo caso, a política se
redefine como um assunto estético, como algo que tem que ver com nossa
percepção e que afeta à sensibilidade. Está de acordo?
Bifo: Sim, o sentido da palavra “estética” é
muito amplo: é a ciência da percepção, etc. Porém me parece que a estética tem
que ser também uma erótica: a
compreensão da relação entre os corpos. Parece-me que esta dialética entre
estética e erótica é central para entender a mutação contemporânea. Como a
mutação digital modifica a percepção estética e a percepção erótica? Esse é o
objeto do meu livro.
Hoje vivemos um deslocamento de uma
percepção erótica do corpo do outro para uma percepção cada vez mais
informática: o corpo do outro nos aparece como signo, como informação. Essa
mutação tem um forte componente patógeno. É uma mutação que produz muito
sofrimento, efeitos de pânico e depressão pela abertura do organismo sensível
que somos a uma hiper-saturação de estímulos, chegando finalmente a uma
paralisia do corpo erótico.
Amador: No centro de seu livro está um par de
conceitos: a “lógica conjuntiva” e a “lógica conectiva”. Você diz que a mutação
atual se explica pela passagem da primeira para a segunda. Explica.
Bifo: A conjunção é uma dimensão interpretativa
vibratória e ambígua. Talvez o melhor exemplo possa ser um cortejo amoroso: as
palavras que dizemos então se prestam a uma interpretação não codificada. É uma
interpretação de signos ambíguos e o sentido se desloca constantemente durante
a relação mesma. Isso é a conjunção uma
conjunção entre os corpos fundamentalmente.
Pelo contrário, a lógica conectiva é uma
relação na qual a interpretação do sentido está formatada, está reduzida a um
formato. É a relação entre uma máquina e outra máquina – ou entre um ser humano
e uma máquina – onde o signo significa uma só coisa. Se duas máquinas estão formatadas
de maneira diferente não podem se entender: necessitamos uma redução do formato
que permita a interpretação exata dos signos.
Na relação conjuntiva a exatidão não
existe. Não há exatidão porque a relação humana conjuntiva é essencialmente uma
relação de ambiguidade. Naturalmente, é um tipo de relação na qual pode nascer
a violência se não há uma educação para a conjunção, o que na modernidade se
chamou “cortesia”. O que estamos vivendo no mundo, nesse momento, me parece que
é essencialmente uma epidemia de
descortesia, ou seja, de incapacidade de decifrar os signos segundo o
desejo.
Donald
Trump, a obscura vitória do barroco
Amador: Em culturas muito diferentes encontra-se
uma mesma rejeição da lógica conjuntiva: o medo do corpo, sobretudo do corpo da
mulher, da mistura e da confusão, da
ambiguidade do sentido, etc. E uma defesa e um elogio do ideal, do modelo, da
pureza. Você encontrou algum húmus cultural alternativo onde haja elementos de
outra socialidade possível, de outra relação entre corpo e signo?
Bifo: Para descrever a transição à hegemonia do
conectivo, me parecia necessário fazer uma espécie de cartografia das formas
culturais que se desenvolveram na história humana. Naturalmente, escolhi só
alguns momentos e reduzi essa investigação antropológica a uma alternativa
essencial: entre o puritanismo e o barroco.
O puritanismo é, culturalmente, mas além de
sua definição propriamente religiosa, um cancelamento da ambiguidade na relação
inter-humana. Portanto, um cancelamento da história mesma. Pensemos na criação
dos Estados Unidos da América. Um historiador disse que os Estados Unidos é a
primeira nação no mundo que nasce como expressão da palavra: primeiro está a
Constituição, logo vem a comunidade. Porém, claro, antes da palavra está a
destruição da história precedente: a história dos povos indígenas que viviam
ali.
E não só isso: também a destruição, o
cancelamento e o esquecimento de tudo o que tem passado antes na Velha Europa.
Os puritanos, os pais fundadores, fogem da Europa para esquecer a suja história
do catolicismo e do protestantismo europeu. Esquecendo a impureza europeia e
suprimindo a impureza indígena, se dizem, fundaremos a pureza, a cidade sobre
as colinas, a Nova Jerusalém. Não podemos estranhar que seja nesta mesma terra,
que nasce da pureza da palavra, onde nasceu a pureza da comunicação digital.
Amador: Por outro lado, está o barroco. Como você
interpreta o barroco?
Bifo: É um fenômeno que acompanha a história do
puritanismo, como uma corrente cultural, estética, perceptual e política
minoritária, porém sempre presente durante os séculos da modernidade. O barroco
é essencialmente a proliferação dos signos, o espetáculo dessa proliferação.
Não é casualidade que o barroco fosse a ferramenta política da Igreja Católica
da Contrarreforma que abriu, não um discurso de persuasão, mas um espetáculo de
sedução. A proliferação dos signos na época do barroco católico é uma história
de espetacularização e de multiplicação das ambiguidades.
O barroco desaparece em certo momento da
história moderna, quando a burguesia puritana, nórdica, constrói um mundo onde
a ambiguidade se considera perigosa. Porém em determinado momento explode de
novo na cena do mundo. Eu diria que esse momento são os anos oitenta do século
XX. Paradoxalmente, o barroco volta como forma dominante, majoritária, graças à proliferação de signos que a
comunicação puritana e digital produziu. A máquina digital produziu tal
excesso e proliferação de signos que a recepção estética é incapaz de produzir
uma interpretação adaptada, adequada. E o barroco explode nos anos oitenta,
noventa e hoje de maneira dominante. Eu creio que a vitória eleitoral de Donald
Trump é essencialmente a vitória do barroco, como capacidade de indecifrar
signos totalmente contraditórios.
Amador: Você pode nos explicar melhor esta
relação entre um fenômeno como Trump e o barroco?
Bifo: Sugiro a leitura de uma feminista
americana que se chama Ilama Angela Nagle. Nagle escreveu um livro muito
interessante – e muito ambíguo também – que não partilho essencialmente, mas
que contém muitos elementos para entender a vitória de Donald Trump. O título
do livro é Kill All Normies e é um livro sobre a alt-right culture, sobre a relação da cultura libertária,
transgressora, e a cultura da direita extrema, que é uma direita paradoxalmente
irônica ou, melhor, cínica.
O que é a ironia, o que é o cinismo? É
justamente o problema que o barroco propõe. A ironia é a consciência da
ambiguidade. Essa consciência da ambiguidade tem duas caras possíveis. A cara
cortês, ou seja, quando os signos são ambíguos e decifro esta ambiguidade
segundo o desejo, para incrementar meu prazer e teu prazer.
Mas também há uma cara cínica do ironismo.
E o cinismo, o que é? É uma pergunta muito difícil. Eu diria que o cinismo é
uma consciência da ambiguidade, mas que aceita apenas como interpretação
possível à interpretação do poder. O mais forte é o que interpreta. Os signos
são ambíguos, então os interpreto segundo minha vontade porque eu sou o mais
forte.
Onde nos encontramos hoje? Estamos no território
do triunfo total do puritanismo digital, mas, paradoxalmente, esse triunfo
produziu um efeito híper-barroco na dimensão erótica e social, onde
continuamente perdemos a orientação.
“Não
é não”: quando a ambiguidade se torna
perigosa
Amador: Você diz no livro que, ainda que possa
soar paradoxal, o pornô é o ponto de chegada de uma transformação puritana
do mundo.
Bifo: Como digo, creio que a relação entre os
corpos se empobrece por causa do deslocamento da comunicação desde a relação
empática para o terreno da comunicação conectiva. Há pouco lia uma mensagem de
um garoto de 19 anos que dizia: “Desde que nasci minha relação principal foi
sempre com autômatas inteligentes que encontrei na rede, por que tenho que ter
relações sexuais com humanos? Os humanos são mais brutais, menos inteligentes e
menos interessantes do que os autômatos”. Parece-me que está claro: os seres
humanos estão falando com autômatos e perdendo a capacidade de falar com outros
seres humanos. A relação entre seres humanos se tornou uma relação sem cortesia, sem esse tipo de sabedoria
especial que é o decifração da ambiguidade em condições de empatia. O pornô é
justamente a sexualidade sem ambiguidade, onde a ambiguidade é cancelada desde
o começo. Sabe-se sempre o que vai acontecer.
Amador: Os movimentos de mulheres são talvez,
atualmente, os movimentos que demonstram mais vitalidade na Espanha e não só.
Ontem saímos à rua contra a sentença sobre os membros de La Manada que não
considera violação os fatos provados. Bifo também estava ali. Que
potencialidade você pensa que pode ter estes
movimentos para repensar e refazer os códigos afetivos e de comunicação
inter-humana?
Bifo: Não sei se Camille Paglia é conhecida na
Espanha... O que diz Camille Paglia? Antes de mais nada diz: eu sou barroca,
sou católica e latina. Segundo: minha figura de referência é Madonna. E seu
trabalho é um trabalho de crítica ao feminismo puritano, que tem um papel
fundamental, provavelmente majoritário, na experiência do feminismo americano.
A leitura de Camille Paglia, para mim e falando em geral para as mulheres de
minha geração, foi uma experiência enriquecedora. Porém, em certo momento, as
coisas mudaram e a atitude de Camille Paglia se fez cada vez mais minoritária e
hoje está, me parece, completamente desaparecida, pelo menos nos EUA.
Por quê? É que as mulheres feministas se
tornaram muito puritanas e moralistas? Não, é que o mundo mudou, o mundo mudou
de uma maneira que é cada vez mais difícil interatuar de maneira ambígua e cortês. A ambiguidade se torna perigosa
porque a cortesia desapareceu e então estamos obrigados a dizer “sim é sim, não
é não”. Eu não gosto dessa binarização da comunicação, porém nos dias de hoje
me parece inevitável. Porque fora da redução “sim-sim, não-não” se tem
constantemente o perigo da violência.
Se não há ambiguidade não há erotismo,
porque o erotismo é essencialmente o fenômeno da detecção da intenção implícita
numa comunicação ambígua. Porém se caem os contextos onde é possível
interpretar a ambiguidade desde o prazer da relação e da empatia, então a única
maneira de se entender é “sim-sim” e “não-não”. A mutação atual não é só
tecnológica, mas comunicativa: a mutação das possibilidades de interpretação
produziram um efeito de “pornografização” do panorama erótico contemporâneo.
Política
crítica, política memética
Amador: Como você interpreta o ascenso da
ultradireita que vemos por todas as partes?
Bifo: Creio que este regresso do fascismo ao
qual estamos assistindo a nível planetário tem que ser interpretado de uma
maneira nova. Há certamente muitos signos do fascismo clássico: o nacionalismo,
a agressividade, a difusão da guerra, o racismo... Porém, a gênese do fenômeno
atual é diferente, e temos que interpretá-lo em sua diferença.
O que está se passando? Eu creio que estamos
saindo – ou saímos já – da dimensão que fez possível a política da modernidade,
ou seja, o pensamento crítico. O que é o pensamento crítico? O que é a crítica?
A crítica é a capacidade de distinção do verdadeiro ou do falso, do bom ou do
mau, numa enunciação , numa informação, num acontecimento. Porém, para
discriminar criticamente necessitamos tempo.
A crítica se fez possível quando a
escritura e a imprensa permitiram uma re-leitura, uma reversibilidade e
sobretudo um tempo para a
discriminação critica. A burguesia ilustrada fez da crítica a faculdade
essencial da decisão política. Os acontecimentos ocorrem, as informações nos
narram, porém nós temos que decidir se isso é verdadeiro ou falso, bom ou mau.
E a partir dessa discriminação se torna possível uma decisão politicamente
crítica.
Porém isso já não existe mais. A situação
na qual nos encontramos hoje não permite a decisão política de tipo crítico. De
fato já não falamos mais de “governo”, mas de “governança”. O que é a
governança? É uma automatização da decisão. Se pensamos o que passa no
território das finanças, por exemplo, onde há bilhões e bilhões de informações
que circulam continuamente no mundo à velocidade da luz, como podemos decidir
em qual direção investir? Não podemos! Então automatizamos a decisão.
E o que acontece no território da política?
A decisão racional e sequencial se substitui por uma forma de comunicação que
chamamos “memética”. O meme que produz os efeitos da política contemporânea. O
que é um meme? Um meme é uma unidade mínima hiperintensa e hipersugestiva,
porém não racional, de comunicação política. La Rana Pepe, o símbolo usado
pelos supremacistas norteamericanos favoráveis a Trump, parece que teve um
efeito enorme na decisão de voto de milhões de jovens americanos. O livro de
Angela Nagel tem muita informação sobre esta forma de comunicação.
Marshall McLuhan, em seu livro de 1964
Understanding Media, que é provavelmente um dos livros fundamentais para
entender o que está acontecendo hoje, diz: quando o universo da técnica de
comunicação passa da sequencialidade alfabética impressa para a dimensão da
simultaneidade eletrônica, o pensamento cessa de ser crítico e se transforma em
pensamento mitológico. O que é a mitologia? A mitologia é um pensamento, não é
uma loucura, é um pensamento, porém um pensamento no qual, como no inconsciente
freudiano, não funciona o principio da contradição. Apolo, o deus, pode estar
morto e vivo: hoje está morto e amanhã vive de novo. Pode ser branco e pode ser
negro ao mesmo tempo. Isso é a mitologia: a convivência de uma possibilidade
contraditória. Justamente o contrário da crítica. Segundo McLuhan, a transição
da sequencialidade alfabética para a simultaneidade eletrônica produz um efeito
de aniquilação da possibilidade mesma da crítica. Porém isso quer dizer que
aniquila ao mesmo tempo com a política.
Amador: Você pensa que a esquerda deve retomar a
tradição do pensamento crítico ou aprender a mover-se nessas “novas” condições
mitológicas?
Bifo: Num artigo recente Geert Lovink se
pergunta: “A esquerda sabe ‘memar’?” Ou seja, podemos utilizar o meme como
forma de comunicação? É um problema sério. Minha resposta imediata é que sim.
Em minha história pessoal, as experiências políticas de movimento nos anos
setenta italianos foram mais um fenômeno de comunicação mitológico-memética do
que um fenômeno de comunicação crítica. E toda a cultura rock, particularmente
nos anos oitenta, foi uma experimentação na mitologia do pensamento coletivo.
Porém, ao mesmo tempo, a pergunta é: podemos renunciar à decisão crítica?
Podemos renunciar ao entendimento crítico que funda a decisão? Não tenho uma
resposta para esta pergunta. Tenho o sentimento de que se não se pode decidir
politicamente sem discriminação crítica isso significa que o fascismo está aqui
para ficar e a verdade é que isso não é engraçado.
A
revolução do tédio
Amador: Celebrou-se recentemente os aniversários
da Revolução Russa, da morte do Che, do Maio de 68... Queria te pedir uma última
palavra sobre a necessidade de reimaginar a mudança social, a revolução. Se,
como você explica, a emancipação já não pode ser esse projeto racional,
articulado por uma estratégia de meios e fins, porque tudo isso pertenceria
mais ao paradigma da crítica, como
podemos repensá-la, reimaginá-la?
Bifo: Convidam-me muito para falar do 68: eu
tinha então 18 anos, estava inscrito na faculdade de Filosofia de Bolonha.
Enfim, sou um tipo com sorte: tudo me pareceu perfeito, o mundo era exatamente
o que eu estava imaginando, desejando e pensando.
Porém, podemos pensar hoje em replicar algo
similar? Não digo que não, mas problematizo a coisa dizendo o seguinte: o 68 nasce do tédio. Os anos sessenta
são anos de tédio, num bom sentido. O tédio não é algo mau, é passar uma tarde
imaginando coisas, não sabendo exatamente que fazer. A intensidade era muito
grande nos anos sessenta, são anos de grande vitalidade cultural, artística,
musical. Há um mundo inteiro que se abre. Porém, eu estou aqui, em minha
casinha com a avó, e me chateio muito. Então desejo a aventura, tenho desejo de
aventura.
Hoje vivemos na condição totalmente
contrária: uma condição de angustia, de excesso de aventuras, muitas aventuras
que, ademais, não vivo. Não vivo a aventura, mas a aventura me rodeia, me obrigam
a viver algo que não estou vivendo. Essa parece ser a condição presente.
Acabo de ver o segundo filme de Zvyagintsev,
um diretor russo muito triste, muito glaciário, que se chama Loveless. Loveless é a história da relação entre uma mãe e um menino de 8
anos que se chama Alyosha e que em certo momento desaparece. Por quê? Por que é
“loveless”, “sem amor”? Porque a mãe, por razões sociais, relacionais, de
casal, de trabalho, de precariedade, do smartphone
que sonha constantemente, não é capaz de amar. E diz: “tive um filho mas foi um
erro, porque não sou capaz de amar, não sei como se pode amar a este menino”.
O menino desaparece. Buscam-no em todos os
lugares porém não o encontram. Está morto ou escondido ou foi assassinado, não
sabemos. O filme termina assim, não sabemos. Esse é o problema hoje, que não sabemos.
Não sabemos se no interior de uma situação angustiante, de aceleração, de
hipersaturação do espaço de atenção, se pode reativar o prazer da relação entre
corpos que falam.
A palavra foi descolada do corpo. Falamos
muito, mas os corpos não se encontram. E quando os corpos se encontram não
sabem falar. Esse é o problema da relação erótica, porém também o problema da
relação política e da relação social.
Amador: Uma política de emancipação começaria
então pelo encontro entre os corpos?
Bifo: Temos que começar, não só um discurso,
mas uma prática de relaxamento das expectativas, em primeiro lugar na dimensão
da existência cotidiana mas não só. Tem que dizer: “sim, a aceleração e o
desejo de ter muitas coisas ganhou, mas, e eu que me importo?” O importante,
repetindo Carlos Castaneda, não é ganhar ou perder, mas permanecer impecáveis. E o que significa permanecer impecável?
Impecável significa que não há regras, que eu decido as regras com os meus
amigos. E a única regra que vale é a regra que nós decidimos. Pode-se fundar
uma política sobre a idéia de que não há regras, só as regras que decidimos de
maneira afetiva, erótica, sempre tentativa, sempre redefinível.
Essa é também a maneira de enfrentar o
medo. De que temos medo? Temos medo da percepção de que a vida está nos
escapando e não a vivemos. Mas, porque temos que pensar que a vida tem de ser a
aventura que lemos ou vimos no cinema? Quem disse? Quem disse que a vida tem
que ser como Maio de 68? A boa vida pode ser voltar ao tédio. Voltar ao tédio
como terapia da angustia me parece que é uma maneira possível de enfrentar o
problema.
A verdade é que não tenho muitas respostas.
Nosso problema atual é que todas as respostas do passado não funcionam porque o
contexto relacional mudou totalmente. Porém, ao mesmo tempo, insistimos em por
perguntas que implicam uma resposta do passado. Um movimento de relaxamento das
expectativas de aventura poderia ser um começo para uma nova aventura.
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