PENSANDO NO FIM, por Franco "Bifo" Berardi

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[artigo de Franco 'Bifo' Berardi , publicado em CTXT , em 08/10/2024. Tradução: Haroldo Gomes] Todos os discursos que ouvimos hoje, em 2024, são discursos que preparam o extermínio mútuo. A liberdade dos seres humanos reside única e exclusivamente no fato de que eles falam e se expressam com sinais. Nessa esfera, e em nenhuma outra, eles são livres.  Nessa esfera, eles se emancipam dos desígnios de Deus e, ao mesmo tempo, se emancipam da tirania do particular, do pertencimento e da força bruta. O processo de civilização consistiu em submeter a brutalidade da energia à linguagem. A missão da modernidade era governar a brutalidade e submeter a natureza à linguagem. Aqui reside a vocação dos modernos, pelo menos nas suas intenções. Hoje sabemos que, deste ponto de vista, a modernidade falhou no seu propósito. Não quero dizer que a linguagem tenha saído de cena: pelo contrário, a linguagem acelerou o seu ritmo a ponto de proliferar para além dos limites das capacidades de processa

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático


[Belíssimo texto do Amador Fernandez-Savater, publicado no blog Interferências, eldiario.es (Espanha), em 16/11/2018. Tradução: Vapor ao Vento]
Passamos o dia olhando, porém somos capazes de ver algo? Que relação há entre ver e pensar? E em que sentido a percepção é um problema político?
O escritor Albert Camus disse: “pensar é aprender de novo a ver e ter atenção”. É uma frase surpreendente porque o pensamento não se vincula ao saber, ao conhecer, à análise ou à verdade mas à transformação da percepção e da atenção.
Aprender: ir mais além do sabido. De novo a ver: recrear nosso olhar sobre algo, vê-lo distinto. E a ter atenção: atender outro plano de realidade, outro tipo de sinais.
Vou pousar esta imagem de pensamento, como recreação do olhar e da atenção, em dois exemplos que tenho ao alcance da mão. E animo cada qual a imaginar os seus.  
Renomear a realidade
O primeiro é um artigo breve que minha amiga Amarela Varela me enviou para publicar em eldiario.es. Amarela é professora na Cidade do México e leva muito tempo envolvida – com a palavra e com o corpo – nos movimentos e nas lutas dos migrantes. O artigo fala sobre a caravana de migrantes em sua maioria hondurenhos que estes dias atravessam o México para os Estados Unidos monopolizando a visibilidade midiática global.
Amarela explica que a migração centro-americana massiva não é nenhuma novidade no México. A novidade é como se organiza agora: após uma longa história de prisões, deportações e massacres, os migrantes se puseram a caminhar juntos, autonomamente, sem coiotes como intermediários, com uma voz pública e própria, acompanhados de organizações de direitos humanos e meios de comunicação.
O artigo é uma chamada a ver a politicidade desse gesto de autonomia. A deixar de olhar os migrantes somente como vítimas da fatalidade ou pessoas manipuladas por algum complô dos poderosos. A lhes dar atenção e ouvir sua voz, o que eles mesmos dizem de sua situação e de sua experiência.
Nessa nova politicidade não encontraremos seguramente alguns dos elementos clássicos (programa ou bandeiras anticapitalistas, etc), mas sim uma desobediência praticada com o corpo ao regime de fronteiras e uma interpelação positiva à solidariedade do povo mexicano, que está respondendo com gestos de hospitalidade radical muito esperançosos.
O artigo de Amarela acaba dizendo: “não é caravana de migrantes, mas êxodo de deslocados, mas sobretudo é um novo movimento social que caminha por uma vida vivível”.
Qual é a força do artigo? Consiste, a meu juízo, em sua capacidade de renomear a realidade. Ao renomear a realidade, vemos algo distinto e nossa atenção se ativa. Creio que esses gesto de deslocamento explica o impacto que o texto tem em tantos leitores.
Posso falar disso em primeira pessoa: eu seguia o que passava com a caravana de migrantes pelas imagens da televisão, mas nada do que se dizia ou mostrava rompeu em nenhum momento a barreira dos estereótipos que anestesiava minha percepção: “ah, pobres”. Olhava, mas não via nada. Nada singular, nada que me afetasse.
Porém, de repente, há algo a ver. De repente, abre-se algo que ver.
Vista assim, como nos propõe Amarela, podemos alertar outras coisas na caravana. Não só vítimas empurradas pela desgraça ou manipuladas pelos políticos, mas também capacidade política, inteligência, autonomia. E podemos ouvir também um apelo: a inventar gestos de solidariedade, porém não com a desgraça que sensibilizou os outros mas com uma luta que nos interessa.
Uma imagem distante e fria: “é a desgraça alheia”, “não há como ter confiança dos outros porque estão manipulados”. Enquanto que a outra aproxima e convida: “aqui há uma potencia, há algo que se desconhece”, “tem atenção e volta a olhar”.  
Algo que de outra maneira não está claro. Porque o artigo não muda uma etiqueta por outra, afirmando por exemplo: “não são vítimas, mas outro movimento social”. Esse “novo movimento social” que é a caravana não é óbvio, não é evidente, não é um movimento social clássico. O texto nos propõe nos aproximarmos para ver e pensar algo que ainda não foi visto ou pensado.
Vamos chamar “imagem fecunda” a essa imagem que nos dá algo a ver. À imagem que nos comove e afeta. À imagem que recria nosso olhar e nos dá o que pensar. À imagem aberta e inacabada que requer de nós um movimento.
Não há nada para ver: os estereótipos
Essas imagens podem vir dos mais diversos lugares, do cinema ou do ensaio, da fotografia ou da poesia, do teatro ou da literatura, podem ser fabricadas com materiais muito distintos (palavra, cor, gesto, movimento), etc.
O problema não é portanto que vivamos em meio a uma inflação de imagens, mas de uma inflação de imagens saturadas e saturadoras: os estereótipos.
O estereótipo é um sentido empacotado. Que diz, que faz? “Aqui não há nada para ver”. Ou seja: não há nada que não tenhamos já visto. O mundo está já-visto, já-sentido, já-pensado.
 O estereótipo é uma resposta automática. O resultado de aplicar sobre a realidade um código: midiático, político, ideológico, etc. Desse modo já não vemos ou pensamos, mas simplesmente reconhecemos. Não vemos ou pensamos, mas só recordamos o que está no código.
Os códigos não são sempre conscientes, mas funcionam através do nosso: somos vistos, pensados e atuados por eles. Deslocam-se automaticamente ali onde não há um trabalho de elaboração própria. Somos, durante a maior parte do tempo, estações repetidoras de estereótipos. Acreditamos que somos muito singulares, mas somos feitos em série.
O que é que vemos se pressupomos a realidade a partir de um código? Somente ilustrações de nosso próprio relato prévio, metáforas de nossa explicação do mundo, reflexos servis do código aplicado. Repetidamente o mesmo: nunca objetos singulares ou acontecimentos, sempre casos de uma série. Outra desgraça mais, outra manipulação mais, outro movimento social mais...
O olhar desde o código sempre vê o que quer ver. A realidade se achata, se simplifica, se reduz; descartamos como ruído tudo o que não encaixa no código, que é precisamente tudo o que poderia nos dar a pensar. As sombras, as contradições, as impurezas, a confusão do real.
Segundo o filósofo, a dignidade de qualquer coisa – desde um ser vivo até um acontecimento – consiste em ser tratada como um fim e não como um meio. O olhar codificado é todavia um olhar instrumentalizador: não vê nada mais do que peças e meios de fins. Nada tem valou ou potência em si mesmo, a potência de dar lugar a novos olhares, idéias ou ações.
Nós nos indignamos quando vemos como tratam os códigos alheios à dignidade das coisas que conhecemos e amamos. Porque as forçam até fazê-las se encaixar nos moldes prévios e as violentam até fazê-las dizer o que se quer que digam. Porém, muito raramente revisamos criticamente os códigos próprios.
O estereótipo anestesia nossa percepção, mas não de um modo frio e desapaixonado. Ao contrário: quase nada nos produz mais gozo e inflamação do que repetir estereótipos. Nós os reproduzimos como se estivéssemos afirmando o mais íntimo, o mais profundo e o mais autêntico de nosso ser. Eles nos emocionam, nos excitam, nos levam as lágrimas. Há uma verdadeira paixão pela repetição, pela confirmação, pela mímesis, pela adesão. É o gozo do reconhecimento e da identidade.
Por último, o estereótipo busca o poder: reproduzir-se, difundir-se, convencer, vencer, ocupar todo o espaço de atenção. É um poder de saturação, de assimilação, de normalização. Quer mais de si mesmo, eliminar todo o outro. Que não fique nada por ver, que não fique nada por pensar.
Pensar a partir de detalhes
Um segundo exemplo, esta vez uma história pessoal. Há poucos dias do 15M emergir nas praças de toda Espanha, senti o desejo de escrever sobre o que estávamos vivendo. Se costuma escrever para partilhar o que chegou-se a entender, porém neste caso se tratava de escrever para entender, escrever precisamente porque você não entende.
E como escrever sobre o que você não entende? Em conversações a respeito com amigos no Sol, um deles me dita uma frase do historiador grego Heródoto sobre seu método: “anoto tudo o que não entendo”. Comecei então a registrar detalhes da praça que chamam minha atenção e me dão o que pensar: micro-percepções, sensações, perguntas, notas de conversações, tal cena, tal bandeira, tal pichação, tentativas de interpretação ou reflexão ao fio do que passa, tal intervenção em assembleia, um grito, uma vibração, um tom afetivo...
Componho assim um “caderno de detalhes” que vou publicando por entregas (até nove) em meu blog no diário Público com o nome de “Anotações do acampamentosol”.
Ver é o mais difícil, porque primeiro tem que parar o mundo. Isso diz o bruxo Don Juan a seu aprendiz Carlos Castaneda naquela série de livros míticos dos anos 60-70. O que significa para o mundo? Deter a descrição que lhe da forma dia após dia, a descrição que partilhamos e constrói uma percepção do mundo consensual e normalizada. Deter os automatismos.
Em meu caso, parar o mundo significou também parar as teorias filosófico-políticas entre as quais vivo – por vocação e profissão – e que se mobilizaram em seguida para dar explicação do que se passava. Porque qualquer coisa pode se converter em código e não nos deixar ver, também uma teoria muito sofisticada que nasceu para dar conta da complexidade social. Aplicá-la sobre a realidade pode ser uma maneira como qualquer outra de pressupor o que passa com esquemas prévios e não escutar. Então, no lugar de ver a praça do 15M ou o que seja, vemos o código de Jacques Rancière, de Toni Negri ou de Ernesto Laclau. E a materialidade das coisas vivas se dissolve em abstrações espectrais.
Por um pouco entre parênteses as teorias e pensar a partir de detalhes: essa foi minha particular maneira de parar o mundo para ver. Um modo de entrar em contato, deixar-se tocar e afetar pelo que acontecia.
Enquanto que aplicar um código qualquer é um modo de desmaterializar a realidade, o detalhe é pelo contrário um golpe de cor, de voz, de afeto ou de intensidade. E digo golpe porque não somos nós exatamente que o elegemos: o que chama nossa atenção é o detalhe, não é a nossa atenção que descobre o detalhe. Exige de nós uma atenção que não é de caça e captura, mas sim de atenção flutuante.
Não podemos reconhecer ou recordar o detalhe. Não é ilustração, metáfora ou reflexo de um código prévio. É o que está por ver e por pensar. Não é a conclusão de algo, mas uma abertura, um começo de viagem. Já não tem sentido: é o que abre a via de criação de sentido.
O detalhe é sempre singular: nunca o caso de uma série, mas sempre tal, assim, esse, essa, aqui, agora.
E uma singularidade um tanto opaca ou misteriosa. É o que não encaixa, nos faz perguntas, nos apresenta problemas, nos incomoda, nos move do lugar. Por essa razão, os que querem elevar a “clareza” e a “comunicabilidade” a regra geral da expressão ou da criação, na realidade não querem ver ou pensar nada: só o já visto e pensado é claro e transparente, “imediatamente comunicável”.
O detalhe passa pelo corpo, porém de maneira diferente do gozo do estereótipo. Não nos confirma frente a realidade, mas nos põe em relação com ela. Emociona-nos: nos tira de nossas casas e nos abre ao outro. Apressa-nos, abre nossos olhos, ativa nossa curiosidade, nos conecta e enreda com o mundo. Não é o gozo da estabilidade, mas o prazer de uma certa desestabilização.
Por último, o detalhe não quer o poder: um detalhe não se opõe a outros e pode haver tantos detalhes como viagens de pensamento. O detalhe não satura o visível, mas o abre. Não pretende dizer o que tem que pensar, mas dar o que pensar.
Intensificar um sabor
Toda uma tradição venerável de pensamento desconfia radicalmente dos detalhes. Platão dizia: “para pensar tem que se arrancar os olhos”. O sensível leva a erro: vemos uma coisa, porém a verdade está em outra parte. Tem que suspeitar do que passa e perseguir o eterno, fixo e imutável. Os detalhes são só aparências ou sintomas do que é essencial e verdadeiro. Trata-se de abstraí-los, ver o mundo com o olho da mente.
Seguindo essa tradição, em  nossas academias e universidades se obriga hoje os estudantes que fazem um trabalho a elaborar em primeiro lugar um “marco teórico”. Primeiro, fabricar-se umas lentes. Logo aplica-las sobre tal ou qual objeto de pensamento. Na realidade, o que se ensina assim é a desconfiar do que se vê. Do que se pode ver por si mesmo, dos detalhes que afetam e que podem ativar o pensamento.
Duas consequências nefastas desse procedimento. Em primeiro lugar, o estudante fica inseguro e fragilizado: nunca o marco teórico será suficientemente sólido, sempre faltarão referencias e leituras. Na idéia do saber como acumulação sempre estaremos em déficit, em falta. Em segundo  lugar, o estudante se converte em repetidor: só vê o que o marco teórico (um autor ou uma combinação de autores) lhe deixa ver. Não se autoriza a ver por si mesmo, a converter-se ele mesmo no autor.
Pensar é fugir desse cárcere. Autorizar-se a pensar a partir dos detalhes que nos afetam, como o único modo de produzir algo distinto e próprio.
O detalhe não é o pequeno, o isolado, o que encontra seu sentido em outra parte (a parte de um todo), mas que contém em si o mundo (o todo está na parte). Podemos estirar o detalhe: tirar e tirar dele até desfraldar o mundo inteiro que contém.
As referência existentes podem servir para intensificar os detalhes. Pensemos que o detalhe é um sabor. Que acompanhamentos intensificam esse sabor? Há acompanhamentos (e modos de combiná-los) que apagam o sabor, anulam-no. Porém outros podem prolonga-lo e refiná-lo. Tal autor ou tal teoria valem se e só si intensificam o sabor singular do detalhe.
É questão de cozinha. O bom acompanhamento segura e realça o sabor do detalhe. E o mau, cobre-o: não nos permite apreciar a materialidade de uma situação, a particularidade de tal ou qual detalhe da realidade. Não nos deixa saborear o mundo de uma perspectiva singular, a perspectiva de alguém. O esquema teórico substitui o detalhe ao invés de intensifica-lo. E então todos os detalhes sabem igual. Reconhecemos assim um mal autor.
Crer no mundo
Compreender sem pensar, pensar sem escutar, escutar sem sentir: o domínio dos estereótipos é profundamente nihilista. Ausenta-nos do mundo. Como é isso?
Nada do que há se toma afirmativamente, por sua potencia de dar lugar, mas sempre em função de nosso código, do que queremos ver. Com o estereótipo nunca acontece nada, mas sempre volta algo.
O importante não está nunca aqui e agora, diante dos olhos, mas nas linhas de nosso código. O mundo e seus detalhes já não nos importam, já não nos requerem: é a vitória da indiferença e da desconfiança em relação ao que há, em relação ao que passa.
Pelo contrário, a imagem fecunda faz acontecer algo, relança e partilha algo que nos aconteceu. Permite-nos assim voltar a “acreditar no mundo”: há coisas que ver, coisas que pensar, coisas que fazer. A imagem fecunda nos abre para a riqueza do dado por óbvio, do aprisionado no estereótipo. O que (nos) passa importa. O mundo está cheio de detalhes, está cheio portanto de pontos de potencia. Podemos confiar nele.
A pobreza ou nulidade de uma situação está antes em nosso olhar estereotipado do que na própria situação. Pensar (e dar o que pensar) é aprender de novo a ver e a ter atenção. É, em definitivo, a aprendizagem de estar presentes no mundo, de estar vivos na vida.
Referências:
Essa é uma versão das notas que li recentemente em dois contextos de trabalho sobre a imagem cinematográfica: Zineleku (Vitoria) e Cine por Venir (Valencia).
As melhores referencias, como sempre, são as conversas com todos os amigos e mestres na arte de ver: Marta Malo, Hugo Savino, Amarela Varela, Miriam Martin, Arantza Santesteban, Diego Sztulwark, Juan Gutiérrez, Jun Fujita, Lucía Gómez, José Miguel Fernández-Layos, Franco Ingrassia (a quem roubo a expressão “imagem fecunda”), Francisco Jodar (quem me fez ver a questão de “acreditar no mundo” a partir de Gilles Deleuze).
O sabor dos detalhes e dos estereótipos se intensificaram com as noções de “signos” e “tensores” de Jean-François Lyotard, em Economia Libidinal.
A imagem que encabeça é um detalhe da obra Esto es lo verdadero, de Rafael Sánchez-Mateos Paniagua e Fernando Baena, também mestres em ver, deixar ver. [Referencia do autor a imagem que encabeça seu texto em Interferencias]

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