Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

“Vivemos submetidos a uma cruel tirania do gozo permanente”

Entrevista feita por Amador Fernández-Savater / María García Pérez / Oche Zamora com Fernando Martín Adúriz, psicoanalista, autor de La ansiedade que no cesa (Xoroi, Barcelona, 2018) e Por qué se escribe. Cinquenta escritores (M.Gómez, Málaga, 2022), publicada no portal ctxt.es, em 7/6/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

O ponto de partida da teoria crítica, diziam os situacionistas, é a insatisfação. Nessa época, os anos sessenta, tratava-se do mal estar de uma vida submetida à repressão: na casa, na escola, na fábrica, no quartel. Sociedade disciplinar. E hoje? O mal da época, sem sombra de dúvida, são as crises de ansiedade e as crises de pânico. De que nos falam? O que nos dizem do mundo que habitamos?

O mal estar social, intensificado na época da pandemia, recentemente ultrapassou os umbrais do mainstream. Fala-se sobre eles no Parlamento e na televisão, figuras conhecidas aparecem perante o grande público mostrando o lado b do êxito: depressão, exaustão, ansiolíticos.

No entanto, a abordagem que prevalece é a do “reparador”. A crise de saúde mental é considerada como um “problema”. Mas nossos colapsos, nossos fardos, nossos sintomas não são só fraturas por consertar ou preocupações a acalmar, com tranquilizantes ou exercícios respiratórios, mas também potências a se desdobrar. Pontos de vista sobre o mundo, perguntas a explorar, energias de mudança.

Apelam, não só aos modos de estabilização do sujeito, mas também a metamorfoses. Individuais e coletivas. Curas que não passam por adaptação mas pela transformação dos modos de vida.

Falamos de tudo isso com Fernando Martín Adúriz, psicoanalista, autor de La ansiedade que no cesa (Xoroi, Barcelona, 2018) e Por qué se escribe. Cinquenta escritores (M.Gómez, Málaga, 2022).

Não saber perder

Como caracterizar a insatisfação atual? Algumas sensações muito comuns: nunca estar bem ali onde se está, querer estar sempre noutro lugar. É nomeado como síndrome de FOMO (fear of missing out) esse medo de estar se perdendo algo, essa comparação constante com a vida dos outros.

Vivi muitos anos sem saber nada sobre a síndrome FOMO, estou ausente desse novo nome para o velho fenômeno de sentir-se à margem, por-se do lado de fora. Acontece que não estar em cena sempre foi, na história da psicopatologia, um procedimento do sujeito histérico, que se ausentava por vontade própria para saborear essa ausência. O ingrediente atual é que a velocidade da narração dos acontecimentos é tal que todos podem verificar instantaneamente o que acontece, o que o outro está fazendo, o mais recentos dos mais recentes. Perder-se algo, dizem-nos os divulgadores da notícia FOMO, é muito grave para muitos.

Talvez possamos incluí-lo neste grave problema que é não saber perder. Esse assunto é suspenso com muita frequência, mas sem tirar uma boa nota nessa disciplina, a vida pode se tornar muito difícil. Convém não esquecer que desde a infância perdemos e que percorremos um itinerário de perdas. 

Por outro lado, a acumulação de objetos parece ser um objetivo triste, uma necessidade peremptória das sociedades de consumismo desenfreado. Seria melhor lembrar Sócrates e sua expressão naquele mercado: “Quantas coisas eu não preciso!” Nem estar atualizado nem ter tudo parece servir para conseguir uma certa tranquilidade, à luz desta epidemia de consumismo ansiolítico.

A ansiedade, você diz, é a embalagem da angústia. O ataque de ansiedade está nos dizendo algo mas temos dificuldade de ouvi-lo. Por quê?

Ansiedade e angústia são dois nomes do mesmo. Uma envolve a outra. O objeto angustiante, diferente para cada um de nós, aparece sem avisar. É por isso que a reação indefesa nos leva a manifestações ansiosas em nosso corpo, mesmo que também em nosso organismo.

Reduzindo o problema à embalagem, à manifestação ansiosa, ao enfrentá-lo com o ansiolítico (“tome o comprimido e cale a boca”), não se toca na causa desencadeante. O resultado lógico será a cronificação da ansiedade. Mas a angústia requer um exame cuidadoso que deve incluir uma revisão das formas únicas de fazer cada um com o que sendo estranho não deixa de ser familiar.

Além disso, o que se repete diariamente é a contingência, o imprevisto, encontros e circunstâncias bizarras, novas, surpreendentes; o mundo de hoje é muito diferente do mar pacífico, seguro, lento, inquestionável que viveram nossos ancestrais.

Querer preencher

Em vez de aprender a lidar com a angústia, nós a encobrimos. Nós a tapamos. Por todos os lados nos são oferecidas formas de tentar preenchê-la, sempre falsas, claro. Mas essa rolha nos estressa: de repente há muito (muitos projetos, muitas coisas que fazer, muitos estímulos). O que causa a sensação tão comum hoje de agonia. Por que não podemos lidar com a angustia, habitá-la? O que acontece que precisamos tapá-la? Parece irracional cair nessa cadeia infinita de compensações que se retroalimentam com o mal estar de fundo.

É certo. Essa palavra nos pertence, é de agora, pronunciamo-la todos os dias, várias vezes: agonia. Pedimos que os outros não nos agoniem. Até a aventura amorosa circula pela agonia e é essa agonia que nos convida a nos separar. Os outros nos assediam com suas constantes demandas. Daí que, vomo fez Lord Byron, “saímos à rua a renovar nosso apetite de solidão”, mas logo voltamos a nossa biblioteca. Acreditamos que nosso abrigo nos salva, que nos desangustia do encontro perturbador com o outro e seus desejos, suas reclamações e solicitações.

Porém, o olhar do Outro é invisível. Irrompeu o novo panóptico de Bentham, o smartphone, como novo vigia que nos traz esse olhar do Outro em letras maiúsculas, o outro como figura de saber e poder, e dos outros. A cada dia ouvimos mais como é caro desviar o olhar daquele objeto chamado "tela", o heróico de desligá-las na hora. Quem será capaz, no futuro, em algum bom dia, de apagar essa câmera de vigilância que nos observa enquanto nos faz crer que somos nós os que assistimos?

O principal negócio desta sociedade é a indústria de compensação, dos modos de compensar e preencher a falta incurável do ser humano: comida, bebida, sexo, consumo, entrada no trabalho, nas emoções fortes. Vicio, vícios, o que você chama de “gozo”. Porém, um gozo sem usufruto, nada agradável no fundo, uma espécie de constante “empanturramento”. Para preencher o que nunca é preenchido.

É impossível viver sem a falta, daí aquele lema: “Que não lhe falte a falta”. Pois sem ela não haveria desejo em movimento. Este é o ensinamento daqueles que ao cumprir quase todos os seus desejos, alcançam essa tristitia, essa ausência de interesse pelo mundo. É o ensinamento de quem tem e tem, e não cabe mais, mas ainda assim a insatisfação lhe visita. O cheio é o objetivo do consumo. Vivemos sob uma tirania cruel, a didatura enjoy, a perpétua chamada ao desfrute permanente, objetivo impossível, pois não há gozo do gozo. A dimensão agradável encontra sua oposição no desprazer. Mas o transbordamento, a passagem de fronteira para uma dimensão diferente, é imperceptível. É o passo para essa dimensão mortífera, para o godimento, que tem nomes da sabedoria popular como o de vício. Uma dimensão acéfala, sem limites, que se encaminha para o final, que destrói. Parar, abandonar, reduzir, são termos que falam do quão difícil é abandonar essa dimensão, especialmente em nome da moderação que os clássicos proclamaram.

Em seu livro, você afirma que a pressa (outra expressão geral do mal da época) não tem a ver com o tempo objetivo, mas com a verdade. “Não ter tempo” seria então uma espécie de fuga da verdade, evitar parar para entender o que está acontecendo conosco. A tal ponto que até “gozamos” com a pressa. Em que medida ambas estão unidas, pressa e ansiedade? Até que ponto tornam impossível uma relação com o outro?

Leonard Bernstein acreditava que o sucesso na vida vinha se você tivesse "pouco tempo", querendo insinuar assim que se você tem muito tempo acaba desperdiçando. Aproveitar o pouco tempo que se tem parece mais eficaz do que a queixa generalizada do “não tenho tempo”, lamento de nossa época. As horas estão cheias de ativismo suspeito, especialmente nesses momentos de paz do entardecer. Para o sujeito ansioso de nossos dias, a solução encontrada, a da hiperatividade e a da pressa ruim, é uma solução falida, o horizonte é mais ansiedade. Não se sabe que a pressa não é uma questão de tempo cronológico, mas de tempo lógico: aprender a não curto-circuitar o momento da compreensão, da reflexão, contanto que ele não se dedique à ruminação obsessiva e ao hobby de procrastinar, de adiar a decisão. É possível sair desse circuito infernal.

Passar de vítima a sujeito.

Você atribui grande importância ao primeiro episódio de ansiedade experimentado pelo sujeito. Por quê?

Negar à criança o primeiro encontro com a solidão ou a tristeza é deixá-la indefesa. Da mesma forma acontece com o fenômeno da angústia, que aparece de repente e pode inaugurar a temporada de ansiedade. É uma lástima que não investiguemos as condições em que se produz esse primeiro desencadeamento e que tratemos a ansiedade exclusivamente com psicofármacos, dando assim as costas à verdade de cada sujeito. As coordenadas desse primeiro encontro não nos servem para fins hermenêuticos, mas dão luz ao conhecimento incompleto do próprio sujeito e lhe confiam o segredo que ele guardava a si mesmo por política tranquilizadora. Porém, sabemos com Borges que “só há uma coisa não há, o esquecimento”.

Você também faz alusão a uma espécie de tipologia de mal-estar descrevendo várias modalidades de “sujeito”: o sujeito fóbico, o histérico, o obsessivo, o psicótico. Se lhe entendemos bem, cada um deles se comportaria de forma diferente em relação ao “desejo do Outro”, mandados e exigências sociais. Como se explica essa diversidade? Responde à história pessoal ou podemos encontrar certos padrões que se repetem atualmente? Qual deles predomina hoje?

A “escolha” é subjetiva, decisão insondável. Podemos ler, de acordo com a literatura psicopatológica, como sujeitos obsessivos, fóbicos, histéricos, melancólicos, perversos… É certo. Mas o essencial é a invenção, a resposta singular e única que cada um dá com seu sintoma às grandes questões do viver, do ser, do sentir, do aparecer. E não há dois iguais. Isso, a diferença absoluta, é o que nos faz radicalmente diferentes do próximo, o que ele nos aconselha é não imitar as soluções sintomáticas de outras pessoas, mas apostar nas próprias, sem exibição. Diante do mal estar, a idéia de construir um bom laço social não deveria impedir o bom uso da distância e do desapego, e o respeito a essa grande invenção civilizatória que é o segredo.

Atravessar o vazio da angústia, sem negá-lo. Franquear ao desejo, um desejo próprio. Devir sujeitos desejantes e autônomos, não objetos do desejo do Outro. É sua proposta. Isso acaba com a ansiedade?

Sem dúvida, a aposta é ousada. Um convite a correr o risco de começar a trabalhar para decifrar seu próprio segredo. A canção do covarde é exatamente o contrário: preferir não saber a verdade, escolher a reclamação frente a interrogação. A ansiedade cessa se houver ousadia diante do recolhimento narcisista e se o sujeito quer se fazer responsável por suas escolhas, mesmo que não esteja ciente de tê-las feito. Sair do conforto da reclamação ou do entusiasmo pela culpa requer essa dose de valentia diante do atalho do ansiolítico ou, o que é pior, dessa redução do psicológico à ginástica respiratória. Melhor o livre exercício da palavra contra os determinismos cerebrais. A sabedoria popular sabe muito bem dizer “traições do inconsciente” e suspeita que isso que se produz lhe incumbe.



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