MONSTRUOSO
Imagem: Syaibatul Hamdi
[Texto de Franco "Bifo" Berardi, publicado em Il DISERTORE, em 26/05/2025. Tradução: Haroldo Gomes]
Que palavra pode definir a arrogância da desumanidade que está se espalhando?
Mas não posso.
Disse Bertolt Brecht:
EM MINHA LUTA
ENTUSIASMO PELA MACIEIRA EM FLOR
E HORROR AOS DISCURSOS DO PINTOR
MAS APENAS O SEGUNDO
ME EMPURRA PARA A MESA DE TRABALHO
O horror que sinto pelos discursos de Netanyahu e pelas provocações covardes dos colonos israelenses é forte demais para que eu consiga me preocupar com qualquer outra coisa.
Hoje não posso deixar de mencionar Yussuf al-Samary:
"Yussuf al-Samary é um garoto de 15 anos, originário da cidade de Gaza, mas que vive com sua família deslocada no campo de al-Mawassi, na praia de Khan Younis. É seu último local de evacuação. Agora, toda a família vive em uma barraca feita de ripas de madeira e plástico transparente. Eles estavam anteriormente em uma escola em Hay Tuffah. Yussuf tentou comprar um sanduíche na semana passada, mas o preço era alto. Ele entrou na fila de uma cozinha humanitária que distribuía arroz e lentilhas, mas quando chegou lá as refeições já estavam prontas e as panelas estavam vazias. Ele decidiu ir para o último quarto que eles ocuparam em Hay Tuffah. Ele convenceu sua família a ir ver se a despensa ainda estava intacta e a trazer de volta o saco de farinha e a caixa de macarrão, que eles haviam abandonado às pressas sob a pressão militar do exército israelense. Seu pai tentou dissuadi-lo: “Olha, Hay Tuffah fica além do Corredor Wadi”, o corredor ocupado pelos israelenses, completamente arrasado, com todas as casas demolidas e sob o controle do exército. A resposta imediata de Yussuf: "Sei que estou em risco. Mas se ficarmos parados, certamente morreremos de fome." Yussuf chegou ao quarto da evacuação anterior e encontrou todas as mercadorias que haviam deixado lá intactas. Ele arrumou sua mala e pendurou o saco de farinha no ombro. “Fiquei feliz, porque tinha feito e estava ansioso pelo pão quentinho que minha mãe prepararia, num forno improvisado feito de pedras e barro”, disse ele em sua cama de hospital.
Na viagem de volta, Yussuf foi alvo de um drone israelense e atingido por uma bomba que cortou suas pernas. “Senti como se estivesse voando, depois perdi a consciência. Não me lembro de nada até acordar na cama do hospital com meu pai ao meu lado segurando minha mão. Não me arrependo. Não tenho pernas, mas ainda estou vivo. É o preço da ocupação. Nós, palestinos, devemos lutar para viver, para não sucumbir sob o domínio dos soldados invasores."
Por que Gaza, então?
Não é a primeira vez que testemunhamos o horror do colonialismo. Gaza não é a única área do mundo onde ocorrem genocídios. O genocídio está ocorrendo em muitas áreas do planeta, na fronteira entre o Norte e o Sul, na fronteira onde o supremacismo branco conduz uma guerra racial. O genocídio está ocorrendo no Mediterrâneo, onde milhares de pessoas estão se afogando a mando de racistas como Piantedosi, Salvini e os governos europeus como um todo.
O genocídio está ocorrendo na fronteira entre o México e os Estados Unidos.
O genocídio está ocorrendo onde a deportação em massa está sendo planejada, o internamento no Gulag Global está em construção e o extermínio está sendo preparado.
O genocídio é o programa - o único programa - dos governos brancos, tanto trumpistas quanto demo-liberais. O genocídio é o programa da raça branca senescente e demente, tornada agressiva pelo cheiro de sua senescência, de sua extinção iminente.
Gaza é um símbolo do que está acontecendo na atual era terminal. O símbolo e o anúncio do que está sendo preparado. Falamos de Gaza porque o evento desse genocídio, há muito preparado por Israel, a reencarnação do Terceiro Reich, é a prova do destino de que a humanidade está acabada.
Organismos conectados ao autômato cognitivo, mas privados de consciência ética e destinados a um futuro de violência terminal.
BUSCANDO A PALAVRA
No pequeno volume Canzone nera (Adelphi) li os primeiros poemas publicados por Wislawa Szimborszka: o primeiro que ela publicou intitula-se Buscando a palavra. Não é essa a melhor maneira de definir a poesia em si? Uma busca capaz de realizar o impossível: encontrar, ou melhor, criar palavras que capturem o significado.
Escrito em 1945, podemos lê-lo como se tivesse sido escrito hoje. Vamos lê-lo:
“Quero defini-los com apenas um termo,
mas qual?
Pego palavras comuns e roubo algumas dos dicionários,
Eu as meço, peso, testo:
Nenhuma correspondência.
Todos os mais ousados são covardes,
Todos os mais desdenhosos ainda são inocentes.
Todos os mais cruéis, muito fracos,
Todos os mais detestáveis, não muito fervorosos.
Eu quero uma palavra crua
que esteja encharcada de sangue,
Que, como as paredes de uma prisão
Cerque todas as valas comuns.
Que descreva de forma mais clara e precisa
Quem eles eram, tudo o que aconteceu.
Porque o que eu ouço,
O que está escrito sobre isso -
Não é mais suficiente. Nunca foi o suficiente.
Nosso idioma é impotente,
Seus sons, de repente pobres.
Busco, forço a mente
Busco a palavra
Mas não a encontro.
A PALAVRA MONSTRUOSO
Szimborska conheceu os nazistas e diz que não consegue encontrar uma palavra para defini-los. Hoje conhecemos os trumpistas, os sionistas, os sádicos que desencadeiam uma crueldade repugnante em nome da superioridade branca e ocidental, e nos faltam palavras para definir a arrogância do mal que está se espalhando.
Vemos Kristi Noem, uma dominatrix que anda por aí de salto alto e calças justas em frente a gaiolas nas quais grupos de homens tatuados estão presos.
Vemos os colonos armados por Smotrich atacando as crianças nas ruas da Cisjordânia, atacando como uma manada de porcos os lugares sagrados da população palestina. Testemunhamos o espetáculo, mas nos faltam palavras para definir a demonstração de horror.
A palavra “repugnante” não é suficiente para descrever o gosto de humilhar alguém que lhe é submisso, que não pode se rebelar, como o pobre Zelenskyy, empurrado pelos americanos a sacrificar o povo ucraniano, e depois crucificado por outros americanos para a alegria dos espectadores americanos.
Para definir todo o horror que está invadindo o planeta como se todos os esgotos tivessem estourado, falta-nos a palavra, mas não é uma questão de linguagem. O dicionário regurgita palavras como hediondo, atroz, horrível, desprezível, maligno, humilhante, nojento, desolador, excruciante, repulsivo, horripilante, assustador, perverso, cruel, abjeto, abominável.
Cada uma delas se aplica ao comportamento daqueles que tomaram o poder político e econômico e o exercem por meio de ameaça, chantagem e violência.
O que essas palavras não explicam é como é possível que a maioria das pessoas escolha esses monstros com entusiasmo.
Talvez não entendamos por que continuamos a pensar que a mente humana responde à lógica humana e possui sentimentos humanos. A mente humana foi modificada e não tem quase nada de humano, porque o humano foi apagado, esperando que o autômato finalmente assumisse o controle.
A chave do sucesso está na monstruosidade: a exibição de desumanidade se tornou a nova fronteira do entretenimento. Monstruoso é o que fascina.
A palavra “monstruoso” é a chave para a compreensão.
Monstruoso é o que deve ser mostrado, o que desejamos que seja mostrado, o que a mente exaurida pela eletrocussão permanente aos estímulos infonervosos deseja receber para ainda ser despertada.
Um século de publicidade infantilizou a linguagem, substituindo todos os critérios de avaliação lógica, ética e estética pela estupefação.
Quase um século de televisão desativou a capacidade reativa da mente e transformou o cérebro coletivo em um mingau incapaz de distinguir a realidade do fluxo que sai da tela onipresente.
Por fim, o bombardeio ininterrupto de celulares paralisou a capacidade da mente de perceber a existência do outro, reduzindo cada indivíduo a um átomo hiperconectado que se tornou insensível.
É por isso que não conseguimos encontrar a palavra: porque as palavras não significam mais nada, o monstruoso as substituiu.
Não há necessidade de se preocupar com o perigo de extinção da humanidade.
A humanidade já está extinta há muito tempo, aqueles que desfilam pelas ruas de Jerusalém gritando “Morte” são terminais passivos do espetáculo ininterrupto da monstruosidade.
Hoje, 26 de maio, um povo de zumbis desfila pelas ruas da cidade da vingança eterna gritando Jerusalém é nossa, Morte aos árabes, Esta cidade é nossa, Deus a deu para nós.
Não muito longe dali, o genocídio continua.
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