Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Uma editora como máquina de guerra: Guy Debord e a subjetividade leitora

Texto de Amador Fernández Savater, publicado em Lobo Suelto, em 3/5/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

Para saber escrever é preciso saber ler e para saber ler é preciso saber viver”
(Guy Debord)

Guy Debord foi um revolucionário durante toda a sua vida.

Nos anos 60, para subverter a realidade, Debord faz parte de um grupo revolucionário: a Internacional Situacionista (IS). A IS concebe a si mesma como a expressão mais elevada das forças revolucionárias da arte e da cultura: “nossas idéias estão em todas as cabeças”.

Nos anos 80, para organizar a resistência, Debord faz parte de… uma editora. Champ Libre, fundada pelo empresário Gérard Lebovici no rastro do cometa do maio francês. Debord se envolve progressivamente nela a partir de 1972, quando reedita La sociedade del espectáculo.

Champ Libre é para o Debord dos anos 80 o que a IS foi nos anos 60: uma arma para ferir a sociedade do espetáculo. Mas, como uma editora pode ser equivalente, de alguma forma, a um grupo revolucionário? O que nos permite fazer essa afirmação, propor essa hipótese?

1. O que aconteceu entre os anos 60 e 80?

À sociedade do espetáculo reinante dos anos sessenta, Debord opõe a revolução proletária.

O espetáculo não se identifica com o simples olhar, nem sequer combinado com o escutar. É o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e correção de suas obras. É o oposto do diálogo. Ali onde há representação independente, o espetáculo se reconstitui”.

(A revolução) é a decisão de reconstruir totalmente o território segundo as necessidades de poder dos Conselhos de Trabalhadores, da ditadura anti-estatal do proletariado, do diálogo executório”.

São duas citações de La sociedad del espectáculo, publicado em 1967. A revolução proletária,
como “diálogo executório”, unidade do pensamento e da ação, realização da filosofia, é concebida como o inverso do monólogo permanente, unilateral e fetichizado, da sociedade espetacular. A força que permitirá, algum dia, derrubá-la e construir outro mundo possível.

Nos anos 80, apagadas já as chamas da contestação revolucionária dos anos 60 e 70, restaurada a ordem abalada por um momento de lutas, o espetáculo alcança segundo Debord seu estágio “integrado”: apresenta-se como um conjunto de flashs midiáticos sem vínculos nem memória, projetados cotidianamente diante da massa atomizada de espectadores. Já sem divisão, nem sequer artificial, entre os regimes do Oriente e do Ocidente.

Esse espetáculo integrado, que derrotou e absorveu a contestação revolucionária, se caracteriza pela dissolução da lógica e da abolição da história. Produz a subjetividade, amnésica e manipulável, que lhe permite reinar sem réplica: o espectador.

O que Guy Debord lhe opõe? A leitura. À subjetividade espectadora, incapaz de pensar e lembrar, se contrapõe a posição do leitor no mundo. O leitor como um modo de estar, como uma forma de vida.

Sem revolução proletária à vista, uma vez dissolvida a Internacional Situacionista, no meio de um vasto processo de restauração geral da ordem abalada por 68, só fica a leitura. Mas não como uma prática melancólica de evasão, de retirada ou compensação, mas como a guerra continuada por outros meios.

2. O que é ler para Guy Debord?

O que é um leitor, uma subjetividade leitora? Ou melhor, o que faz? Através de que práticas se constitui um leitor? Que tipo de operação é ler? E em que sentido é subversivo?

Vamos destacar três operações de leitura presentes em Guy Debord, que são ao mesmo tempo e indissoavelmente outras tantas práticas de escritura.

- a leitura como desvio, o valor de uso do lido frente ao valor de troca. Debord lê e escreve contra a religião da língua, o academicismo e seu monopólio da palabra.

- a leitura como crítica, uma arte da associação ao mesmo tempo sincrônica e diacrônica, dos fatos entre si e com sua própria historicidade. Guy Debord lê dessa forma o excluído por razão de Estado, aquilo que se oculta e se apaga.

- a leitura como lenda, criação de um épico contra os medíocres possíveis vitais autorizados pela sociedade do espetáculo. Ativação do desejo e da imaginação mais além dos limites impostos, testemunho de uma forma de vida que não abdica.

Detenhamo-nos por um momento em cada uma dessas operações.

3. O desvio

Como é bem conhecido, o desvio é uma prática que os situacionistas herdam das vanguardas artísticas e poéticas, por exemplo, do conde de Lautréamont.

O desvio não era inimigo da arte”, diz Debord em 1967, “os inimigos da arte eram antes aqueles que não queriam levar em conta os ensinamentos positivos da ‘arte degenerada’”.

O que é desviar? Desviar é ‘usar’: apropriar-se de um fragmento de cultura e inseri-lo numa nova combinação. Ao mesmo tempo descontextualizar e recontextualizar. Transportar citações ou ideias e colocá-las em um novo terreno, fecundando-o.

Implica uma ideia totalmente diferente de cultura: não um patrimônio a venerar, nem recursos para consumir ou um capital simbólico para acumular, mas uma matéria viva e fluida que exige – e ao mesmo tempo permite – sua constante reatualização.

Ler (debordianamente) é, pois, um exercício de reapropriação do lido: fazê-lo acontecer por si mesmo, a própria biografia, a própria experiência, a própria vida.

A fronteira entre ler e escrever se esfumaça: ler é reescrever.

Graças às notas de leitura sobre estratégia, poesia e marxismo que foram editadas recentemente na França, temos acesso à cozinha de Debord como leitor. Exercício ativo, diálogo muitas vezes crítico e tenso com o que foi lido e prática permanente de desvio: fragmentar o texto, transgredir sua suposta unidade, imaginar e anotar de imediato usos possíveis de tal ou qual citação, de tal ou qual passagem.

O espetáculo integrado diz o que ‘é’ a realidade. Apresenta-nos um texto fechado que pede nossa adesão e nunca uma resposta. Signos como mera informação e letra morta. Representação independentizada.

Desviar é intervir no texto do mundo, alterar e modificar o código. Desfetichizar: devolver os signos a seu estado fluido, energético, móvel. Sempre em processo, nunca resultado (do todo) acabado.

Desviar é o mesmo que derivar, mas na linguagem.

4. A crítica

O espetáculo integrado, como dizíamos, dissolve a lógica e abole a história. Algumas citações dos Comentarios sobre la sociedad del espectaculo que surgiram em 1988:

A imagem escolhida por outro tornou-se a principal relação com o mundo”.

O fluxo de imagens arrasta tudo, isola o que mostra do passado, das intenções, das consequencias”.

A destruição da lógica, ou seja, a capacidade de captar de imediato o importante, o menos importante, o irrelevante; o incompatível e o complementar, o que tal enunciado implica, o que impede”.

A leitura é subversiva porque diante da imagem espetacular, onde você pode justapor tudo e não deixar tempo para reflexão, ela nos exige “um verdadeiro julgamento em cada linha”. Discernir o verdadeiro do falso: o que se segue e o que não se segue, se uma coisa se deduz da outra, a consistência final de um processo de raciocínio.

O leitor se opõe ao espectador. O espectador é incapaz de compreensão crítica: pode-se lhe dizer qualquer coisa sobre qualquer tema. O que lhe é mostrado é "ilógico": abstraído do entorno, do passado, das intenções e das consequências. Perdeu a capacidade de um julgamento independente, baseado sempre numa experiência pessoal e na capacidade de raciocinar.

A leitura é um tipo de conversação e de lógica dialética – para Debord a razão simplesmente – se formou socialmente no diálogo. Aprendemos a raciocinar em comum. Só há um eu que pensa se há um tu que responde. Essa resposta mantém o pensamento em marcha, mostra as sombras, o ainda não pensado. O desaparecimento dos espaços de diálogo é o maior fator de novas irracionalidades.

Em seu lindo livro sobre sua relação com Guy Debord, o pintor Pierre Besson lembra até que ponto a amizade era pra Debord uma espécie de boa conversa. E se admira de como Debord maneja a arte da conversa, que inclui a escuta, os silêncios e a capacidade de retomar os tópicos. De sua capacidade de acompanhar várias conversas ao mesmo tempo em uma mesa ajudando cada um a colocar alguma ordem nas ideias em fuga e à deriva, com observações sempre precisas e úteis.

A leitura nos permite também, segundo Debord, “acessar a vasta experiência pré-espetacular”. Ou seja, enquanto o espetáculo integrado se apresenta como regime eterno, reich de mil anos, a leitura como repertório de possibilidades históricas nos lembra que na realidade acaba de chegar.

No espetáculo integrado, a história é substituída pelo instantâneo da comunicação. O que perdemos ao perder a capacidade de nos orientar na história? Uma distância do que é apresentado como novidade. Uma certeza sensível da contingência. A capacidade de distinguir a verdadeira mudança da inovação trivial. A percepção de que a sociedade é sempre transformável.

Sem compreensão crítica, arte da associação e sentido da historicidade, permanecemos portanto pregados ao existente. Sem margem, sem diferença, sem autonomia.


5. A lenda

Debord, já desde muito jovem, pratica a leitura-escritura como uma fábrica de lenda.

Primeiro, nos anos 60, é a lenda da Internacional Situacionista. Os situacionistas se apresentam através de sua revista, nos textos e nas imagens, como os últimos aventureiros de um mundo que aboliu a aventura, o último reduto da “verdadeira vida”. Essa lenda foi sempre sua principal arma: não uma força quantitativa, mas qualitativa. Poética.

Como atesta Daniel Blanchard, antigo membro de Socialismo e Barbárie e companheiro durante um tempo de Guy Debord, que ficou fascinado ao receber na caixa de correio do grupo o número 3 da revista situacionista:

acontece que folheando as páginas daquela brochura absolutamente única, descobri que um pequeno grupo de desconhecidos tinha coisas apaixonantes a nos contar (…) A crítica da arte e da cultura se delineou em uma utopia de vida liberada que esses jovens experimentavam já em práticas poéticas como a ‘deriva’ através da cidade, ou a descrição ilustrada de uma cidade fantasmagórica, a ‘Cidade Amarela’. Esta forma de vida parecia habitar virtualmente seus rostos, que algumas fotos cinzas mostravam reunidos ao redor da mesa de um bar, atravessando as noites conduzidos por uma conversa ardente sem fim”.

Logo, nos anos 80, Debord constrói a lenda… de si mesmo. Através de filmes como In girum imus nocte ou de livros como Panegírico. Lenda das cidades vivas e livres onde viveu: Paris, Florença. Lenda de seus amigos e da amizade como complô. Das mulheres que amou. Da vida semi-clandestina que levou. De si mesmo como única testemunha do autêntico, contra a falsificação espetacular de tudo. Uma vida efetivamente vivida, ou seja, gasta, esbanjada, nos excessos da amizade, do amor, da revolução, da deriva…

A lenda fabrica um possível: pode-se viver de outro modo. Apela à imitação, estimula a imaginação e o desejo, transborda a produção em série da subjetividade espectadora: dócil, passiva e alienada ao existente.


6. Champ Libre como fortaleza

Se a subjetividade que resiste à produção industrial e espetacular do ser humano é a subjetividade leitora, capaz de desvio, de crítica e de lenda, que melhor máquina de guerra do que uma editora? Champ Libre, para Debord, não é só um lugar onde se publicar a si mesmo, mas também um espaço onde partilhar a própria biblioteca: uma série de citações, uma série de referências, um conjunto de práticas de leitura-escritura.

Debord não trabalha em Champ Libre, como de resto não trabalha em nenhum outro lugar, mas colabora ativamente com Lebovici e sua amizade de aliados se intensifica com o passar dos anos, até o misterioso assassinato do mecenas em 1984. Propõe livros, desaconselha outros, escreve pequenos prólogos ou notas de contracapa, supervisiona traduções, redige cartas.

Propõe livros de estratégia, de Clausewitz a Jomini, porque a estratégia é o dominio do pensamento concreto. O pensamento vinculado a uma prática, um espaço e um tempo concretos, um risco e um obstáculo por atravessar. O contrário do discurso universitário.

Propõe autores clássicos, como Baltasar Gracián, porque eles trazem uma historicidade que desmente o “presente perpétuo” da sociedade do espetáculo. Mostram que há escrituras capazes de estar sempre ativas, sempre presentes, transbordando o tempo instantâneo da comunicação, interpelando todas as épocas.

Propõe textos revolucionários, de Bakunin a Orwell, mostrando assim um ponto de vista subversivo e revolucionário por fora do comunismo autoritário. A via não esgotada da transformação social, o “tesouro” da tradição libertária, conselhista, autônoma.

Propõe finalmente a leitura, mais além dos conteúdos, como uma experiência e um modo de subjetivação anti-espetacular, uma prática de transformação e de cuidado de si.

Os idiotas confundem uma editora e a Comuna de Paris”, dirá em carta a Jaime Semprún, “uma reedição de Gracián e a insurreição dos anabatistas de Munzer”. A leitura não é uma atividade revolucionária, no paradigma da revolta proletária, mas um exercício de resistência sob o domínio do espetáculo integrado.

Champ Libre é uma fortaleza inquebrável, bloqueada e sitiada”, prossegue dizendo Debord, “mais do que uma manobra de invasão com golpes rápidos e temíveis”. Uma defesa estratégica, dirá seu admirado Clausewitz, mais que uma guerra de conquista. Guerra de desgaste e usura que enfraquece as forças do invasor gota a gota. A penetração espetacular das subjetividades, neste caso.

Em sua função crítica geral, o aspecto diretamente político é o menos importante, as teses ideológicas (…) Contra a 'erudição morta' da história social, quase todos os ‘clássicos’ que Champ Libre publicou são ricos em atualidades (Ardant du Picq), de alguma beleza impactante na teoria ou na expressão (Jomni, Junius). Lembro que os precedentes textos raros (Seby ou o Incontrolado) eram, como textos, realizados e belos”.

O subversivo da experiência leitora, o que resiste ao espetáculo integrado, não é tão só um quê (o que se lê), mas um como: a leitura como operação. Atualização permanente mediante o desvio, potencia esclarecedora da compreensão crítica e beleza contagiosa da lenda.


* Redação das notas que serviram para uma conversa virtual em 27 de maio de 2022, no marco das jornadas sobre “Imagem capital: o situacionismo e a sociedade do espetáculo” organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade Metropolitana de Ciências da Educação (Santiago do Chile).


Referências: 

Guy Debord, La sociedad del espectáculo (1967). 

Comentarios sobre la sociedad del espectáculo (1988). 

Stratégie; la librairie de Guy Debord (2018) 

Poésie; la librairie de Guy Debord (2019)

Marx & Hegel; la librairie de Guy Debord (2021). 

Daniel Blanchard, Crisis de palabras (2007)

Bessonpierre, La amistad de Guy Debord, rápida como una carga de caballería ligera (2020)

Editions Champ Libre, Correspondance (vol. 1 y 2, 1978 y 1981)   

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