PENSANDO NO FIM, por Franco "Bifo" Berardi

[artigo de Franco 'Bifo' Berardi, publicado em CTXT, em 08/10/2024. Tradução: Haroldo Gomes]

Todos os discursos que ouvimos hoje, em 2024, são discursos que preparam o extermínio mútuo.

A liberdade dos seres humanos reside única e exclusivamente no fato de que eles falam e se expressam com sinais. Nessa esfera, e em nenhuma outra, eles são livres.  Nessa esfera, eles se emancipam dos desígnios de Deus e, ao mesmo tempo, se emancipam da tirania do particular, do pertencimento e da força bruta. O processo de civilização consistiu em submeter a brutalidade da energia à linguagem. A missão da modernidade era governar a brutalidade e submeter a natureza à linguagem. Aqui reside a vocação dos modernos, pelo menos nas suas intenções. Hoje sabemos que, deste ponto de vista, a modernidade falhou no seu propósito. Não quero dizer que a linguagem tenha saído de cena: pelo contrário, a linguagem acelerou o seu ritmo a ponto de proliferar para além dos limites das capacidades de processamento da mente humana. Graças à tecnologia conectiva hiper-rápida, a Semiose, atividade de enunciação e projeção, tornou-se Hipersemiose, e a Hipersemiose saturou a atenção, a imaginação e a sensibilidade a ponto de impossibilitar a distinção crítica e a ponto de tornar a linguagem ineficaz. Por isso é necessária uma reflexão última, pensando na Ultimidade. É preciso pensar nas condições em que viveremos no horizonte que está surgindo: o horizonte do desaparecimento da espécie humana no século XXI.

A retórica universalista não resistiu à revelação que Darwin trouxe. Darwin revelou que a natureza não é governada por nenhuma teleologia, nem se ajusta às leis da razão: evolui segundo uma única lei, a da prevalência de indivíduos e espécies capazes de se adaptarem ao meio, e a da eliminação de indivíduos e espécies concorrentes. Após esta revelação, era legítimo perguntar: se na natureza existe um princípio de seleção natural que nada tem a ver com a justiça universal ou com a razão, por que a sociedade humana não deveria funcionar da mesma forma? A resposta não é óbvia.

O pensamento humanista e a sua evolução até ao Iluminismo responderam que a civilização humana consiste precisamente na afirmação da razão ética sobre o instinto natural.

Essa deveria ser a diferença moderna. De Hobbes a Kant, este é o objeto de reflexão: como submeter a lei da natureza à aspiração de uma razão ética universal?

Descobrimos agora que o universalismo, e a diferença que ele faz em relação à natureza, foi provavelmente uma ilusão de ótica dentro da qual se desenvolveu a história da política moderna: a democracia, o Estado de direito, o direito internacional, etc.

Agora descobrimos que a lei não vale o papel em que foi escrita.

De acordo com o darwinismo social, o mercado é o locus da seleção natural e o universalismo não pode fazer nada na esfera do mercado. Descobrimos então que todo o discurso universalista se baseava numa ilusão. A sociobiologia repetiu-nos isso: para Dawkins, os indivíduos são “máquinas de sobrevivência, veículos automáticos programados cegamente para preservar aquelas moléculas egoístas conhecidas como genes”.

Só o marxismo escapou a este cinismo radical e intuiu uma forma de dar concretude e verdade ao universalismo, reconhecendo ao mesmo tempo a força brutal da selecção natural. Se a força é o único juiz das relações entre os humanos, diziam os comunistas, só uma força universalista pode impor uma direcção humana à história. Só a força universalizadora da classe trabalhadora, que visa a sua supressão e a afirmação do interesse social, pode evitar a guerra de todos contra todos e tornar possível a evolução humanística: a igualdade e o internacionalismo.

Contudo, como sabemos, o projecto internacionalista e comunista foi derrotado, anulado, tornado inoperante. Se isso se deve ao erro fundamental dos marxistas (confiar na democracia, que não passava de um engano e uma armadilha), ou se é porque o comunismo era um projeto incompatível com a natureza humana, sobre o qual, no entanto, nada sei, porque sempre pensei que não existisse, não sei dizer.

Seja como for, o genocídio que está ocorrendo no Oriente Médio marca o triunfo da ferocidade no palco da história. Todos os discursos que ouvimos hoje, em 2024, são discursos que preparam o extermínio mútuo. A candidata ao trono presidencial dos EUA, a exoticamente chamada democrata Harris, foi direta: “Garanto a vocês que nossas forças armadas sempre serão da mais alta letalidade".  (Ouça o discurso dela em 23 de agosto de 2024 no YouTube). Putin garante o mesmo ao seu povo. E qualquer pessoa que almeje o poder deve fazer a mesma promessa a si mesma e aos outros: seremos os mais letais. Letalidade é a palavra-chave da política do futuro, que nada tem a ver com política, mas sim com a negação da política.

Israel demonstrou que tem uma letalidade maior que a dos seus adversários, tal como Hitler tinha uma letalidade maior que a dos seus inimigos em 1939. Mas, como demonstra o fim da Alemanha de Hitler, a superioridade técnica é algo que não dura para sempre.

Os palestinos, os judeus do século XXI, aqueles que sobreviverem ao genocídio (porque sabemos que o genocídio raramente é perfeito), não terão outra coisa a fazer a não ser se equipar com técnicas suficientemente letais para vingar o genocídio israelense. Seja qual for a evolução do genocídio que está ocorrendo, nos próximos anos devemos esperar uma explosão mundial de ódio contra a potência colonialista genocida de Israel, que se manifestará (é bom saber) em uma explosão de antissemitismo. O ódio a Israel e aos israelenses preenche o coração de qualquer pessoa que ainda tenha um coração.

Infelizmente, porém, o alvo do ódio não serão apenas os israelenses, que merecem esse ódio: a confusão entre judeus e sionistas, que os sionistas alimentaram de forma irresponsável, certamente se voltará contra os judeus em todos os lugares.

Estou convencido de que no século 22 o planeta estará livre da infecção humana, mas, enquanto isso, este último século será marcado por uma competição de terror. Somente aqueles que sabem como se equipar com ferramentas letais e espalhar o terror poderão participar da história no tempo que resta. É por isso que a única estratégia que me interessa é a deserção. Desertar do terror e do terrorismo, desertar de toda participação na guerra.

Desertar da raça humana, que não foi capaz e nunca será capaz de se emancipar da ferocidade.

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