Artigo de Amador Fernández-Savater, publicado
no blog Interferências, no periódico El Diário (Espanha), em 21/09/2018. Tradução: Vapor
ao Vento.
A catástrofe da sociedade contemporânea é produzir um tipo de relação
com o mundo: a posição de espectador e de vítima. Não se trata de oferecer
novos conteúdos mas de sair dela.
Em A Sociedade do Espetáculo,
um livro que desde seu aparecimento em 1967 se converteu num clássico (ou seja,
um livro sempre contemporâneo), o
pensador francês Guy Debord afirma que a verdadeira catástrofe da sociedade
moderna não é um acontecimento por vir, nem sequer um processo em marcha
(mudança climática etc), mas um tipo de
relação com o mundo: a posição de espectador, a subjetividade espectadora.
Em que sentido? O espectador não entra em contato com o mundo, ele o
vê frente a si. De um “mirante” (o espetáculo) que concentra o olhar:
centraliza e virtualiza, separa da diversidade de situações concretas que
compõem a vida. O espectador é incapaz de pensamento e de ação: limita-se ao juízo
exterior (bem/mal), às generalidades e à espera. É uma figura do isolamento e
da impotência.
O espectador de Debord não foi superado nem mesmo pela “interação”
das redes sociais: converteu-se simplesmente no “opinador” de nossos dias, que
sempre tem algo a dizer sobre o que passa (na tela), porém não tem nenhuma
capacidade de mudar nada.
O espectador é uma categoria abstrata não alguém concreto. É por
exemplo qualquer um que se relacione com o mundo opinando sobre os temas
midiáticos, sem se dar a si mesmo nenhum meio adequado para pensar ou atuar a respeito.
Qualquer de nós pode se colocar na posição de espectador e também qualquer um
pode sair. Isso é o que nos interessa agora: Como sair?
O espectador assombrado
Acaba de aparecer na Argentina La
brujería capitalista (Hekht libros), um livro da filósofa Isabelle Stengers
e do editor Philippe Pignarre que nos permite avançar nessas questões.
Inclusive por caminhos diferentes dos de Guy Debord. Que quero dizer?
Para Debord, o espectador é um ser enganado e manipulado. Ele
explica isso muito claramente, sobretudo, em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo, o livro que escreveu
em 1988. Stengers e Pignarre, deslocam essa questão: não se trata de mentiras
ou ilusões, mas de “fascínio”. Ou seja, o problema é que nossa capacidade de
atenção está capturada e nossa potencia de pensamento está bloqueada. Portanto,
a emancipação não passa por ter ou dizer a Verdade, mas por gerar “contra-fascinios”:
transformações concretas da atenção, da percepção e da sensibilidade.
Vejamos isso mais devagar. O espectador é pego uma e outra vez no
que os autores chamam “alternativas infernais”. Por exemplo: ou bem levantam cercas
altas e pontiagudas ou se produzirá uma invasão migrante. Ou bem se baixam os
salários e desmantelam os direitos sociais ou as empresas marcharão para outro
lugar com o trabalho. Isolado em frente a sua tela, o espectador é refém da
alternativa entre dois males. Como escapar?
Não se trata de “crítica”. De fato, o espectador pode ser muito
crítico, assistir por exemplo indignadíssimo – como todos nós hoje – ao espetáculo da corrupção, gozar vendo
rodar as cabeças dos poderosos etc. Porém isso não muda nada. Seguimos na
posição espectadora: vítimas da situação, reduzidos ao juízo moral, às
generalidades (“são todos corruptos”, a “culpa é do sistema”) e à espera de que
alguém “solucione” o problema.
Saímos da posição espectadora quando nos tornamos capazes de pensar
e atuar. E nos tornamos capazes de pensar e atuar produzindo o que os autores
chamam um “agarramento” ou um “ponto de apoio”. Ou seja, um espaço de
pensamento e ação a partir de um problema concreto. Nesse momento já não
estamos diante da tela, opinando e à espera, mas envolvidos numa “situação de
luta”. Tanto hoje quanto ontem, são essas situações de luta que criam novos enfoques, novos possíveis e põem
a sociedade em movimento.
Sem pensamento nem criação é impossível que haja alguma mudança
social substancial e o mal (a corrupção ou qualquer outro) reproduzirá seus
efeitos mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, enquanto bloqueia o pensamento
e a criação, a sociedade do espetáculo é uma sociedade presa, um caracol
infinito dos mesmos problemas.
Situação de luta
Não se abre uma situação de luta porque se sabe, mas precisamente para saber. Não se cria uma situação de
luta porque tomamos consciência ou finalmente aberto os olhos, mas para pensar e abrir os olhos em companhia.
A luta é uma aprendizagem, uma transformação
da atenção, da percepção e da sensibilidade. O mais intenso, o mais potente.
Os autores apresentam vários exemplos: por exemplo, a luta dos
medicamentos anti-AIDS. Em 2001, 39 empresas farmacêuticas mundiais, sustentadas
por suas associações profissionais, abrem processo contra o governo sul-africano
que garantia a disponibilidade a custo moderado de medicamentos para a AIDS. A
alternativa infernal então dizia: ou tem patentes e preços altos ou é o fim da
pesquisa. O progresso tem um custo e um custo.
Porém as associações de pacientes de AIDS saem de seu papel de
vítimas e politizam a questão que lhes afeta: pesquisa, disponibilidade dos
medicamentos, direitos dos enfermos, relação com os médicos. Pensam, criam,
atuam. Suscitam novas conexões com associações humanitárias, outros afetados,
empresas farmacêuticas sensíveis, Estados favoráveis como o Brasil etc. Porque
o mapa de uma situação de luta (os amigos e os inimigos) nunca está claro antes
que se abra, senão que a luta o redesenhe. Não há “sujeito político” a priori, a situação
de luta o cria.
A alternativa infernal perde força e os industriais acabam retirando
sua demanda. Não porque os afetados lhes tenham oposto bons argumentos críticos,
mas porque criaram nova realidade:
novas legitimidades, maneiras de ver, sensibilidades, alianças. Numa situação
de luta, nos dizem os autores, os diagnósticos críticos são “pragmáticos”, ou
seja, inseparáveis da questão das estratégias e dos meios adequados. É
definitivo, só se sai das alternativas infernais “pelo meio”: através de
situações concretas, por meio de práticas, desde a vida.
Podemos pensar o mesmo sentido das lutas dos últimos anos: da PAH até
o Eu Sim Saúde Universal, passando pelos movimentos de aposentados e de
mulheres. Uma situação de luta é o “intelectual” mais potente: não só descreve
a realidade, como a cria, suscitando novas conexões, problematizando novos
objetos, inventando novos enunciados. De fato, os intelectuais-portavozes
(novos e velhos) surgem, muitas vezes, na ausência de situações de luta, para
representar aos que não pensam.
Sem situações de luta não há pensamento. Sem pensamento não há
criação. Sem criação somos pegos pelas alternativas infernais e espetaculares. A
representação se separa da experiência social. Só ficam os juízos morais, as generalidades
e a espera. O zunzum cotidiano do espetáculo midiático e político, assim como
nossas redes sociais.
Que as pessoas pensem
Hoje vemos crescer, um pouco por todas as partes, movimentos
ultraconservadores. Como combate-los? A subjetividade que todos estes movimentos interpelam é a subjetividade espectadora e
vitimista: “o povo sofrido”. A vítima critica, porém não empreende um processo
de mudança; considera a algum Outro culpado de todos os seus males; delega suas
potencias a “salvadores” em troca de segurança, ordem, proteção.
Escutamos hoje em dia as pessoas de esquerda dizer: disputemos o
vitimismo à direita. Façamos como Trump ou Salvini, porém com outros conteúdos,
mais “sociais”. É uma nova alternativa infernal: fazer como a direita para que
a direita não cresça. Um modo de reproduzir a catástrofe que, como dizíamos a
princípio, está inscrita na própria
relação espectadora e vitimizadora com o mundo.
Em 1984, a uma pergunta sobre o que é a esquerda, o filósofo francês
Gilles Deleuze respondia: “a esquerda necessita que as pessoas pensem”. A estas
alturas me parece a única definição válida e a única saída possível. Não
disputar com a direita a gestão do ressentimento, do medo e do desejo de ordem,
mas sair da posição de vítimas. Que as pessoas pensem e atuem, como se fez
durante o 15M, a única barreira contra a direitização que funcionou durante
anos neste país.
Deixar de repetir que “as pessoas” não sabem, que as pessoas não
podem, que não têm tempo nem luzes para pensar ou atuar, que não podem aprender
ou produzir experiências novas, que só podem delegar e que a única discussão
possível – entre os “espertos”, claro, entre os que não são “as pessoas” – é sobre
que modos de representação são melhores que outros. Há muita direita na
esquerda.
Que as pessoas pensem: não convencer ou seduzir as pessoas,
consideradas como “objeto” de nossas pedagogias e nossas estratégias. Abrir
processos e espaços onde apresentar juntos nossos próprios problemas, tecer
alianças inesperadas, criar novos saberes. Aprender a ver o mundo por nós
mesmos, ser os protagonistas de nosso próprio processo de aprendizagem.
Pensar é o único contra-feitiço possível. Implica ir mais além do
que se sabe e começa por assumir um “não saber”, arriscar-se a duvidar ou
vacilar. É a arte de liberar a atenção de sua captura e volta-la para a própria
experiência. Por no corpo, precisamente o que falta à posição de espectador, de
tertuliano, de comentarista da política, de polemista nas redes sociais.
Seguramente necessitamos uma nova poética política. Por exemplo, uma
palavra nova para falar de luta, que associamos muito rapidamente à mobilização,
à agitação ativista, a um processo separado da vida etc. Reinventar o que é
lutar. Na realidade uma luta é um
presente que nos damos: a oportunidade de mudar, de nos transformar ao
mesmo tempo que transformamos a realidade, de mudar de pele. Não há muitas.
Uma situação de luta não é nenhum caminho de salvação. Assim só a vê
o espectador, que se relaciona com tudo de fora. De dentro, é uma trama
infinitamente frágil, muito difícil de sustentar e avivar. Mas também é esse presente.
A ocasião de aprender, junto a outros, de que está feito o mundo que habitamos,
de estendê-lo e nos estender, de prova-lo e nos provar. Para não viver e morrer
idiotas, ou seja, como espectadores.
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