"O CAPITALISMO NÃO PARA DE REVOLUCIONAR CONSTANTEMENTE SUAS PRÓPRIAS BASES SOCIAIS."

[Entrevista com a filósofa Clara Ramas San Miguel por Hugo de Camps Mora e publicada em CTXT , em 20/072024. Tradução: Haroldo Gomes] Sem sombra de dúvida, a nostalgia e a melancolia se tornaram duas das emoções mais características do momento em que vivemos. Há saudosistas de praticamente todos os matizes ideológicos e, como se a possibilidade de vislumbrar um futuro fosse necessariamente cancelada, parece que a necessidade de “voltar para casa” tornou-se hoje mais intensa do que em outros períodos históricos. Nesse contexto, a questão que inevitavelmente surge é o que fazer com esses sentimentos.  Deveríamos permitir que eles formassem a base de um programa político ou deveríamos desconfiar de nós mesmos quando nos deparamos com a "saudade" de uma era perdida? Lendo a obra de Proust de uma perspectiva marxista e psicanalítica, a filósofa Clara Ramas San Miguel (Madri, 1986) tentou responder a essas perguntas em seu último livro, El tiempo perdido. Contra la Edad Dorada: u

A GUERRA NA LINGUAGEM. COMO NOS PROTEGER?

 [Artigo de Amador Fernández Savater, publicado em El Salto, em 2/7//2024. Tradução: Haroldo Gomes]

Não se trata de responder ao brutalismo da direita com o brutalismo da esquerda, competindo em certezas e seguranças, entrincheirando-se nas linguagens de refúgio dos já convencidos.

Há uma guerra na linguagem. A linguagem agora é entendida como uma "máquina para traduzir" afetos em percepções, orientações e ações.

A linguagem brutalista da extrema direita contemporânea traduz a frustração da vida em agressão contra os mais fracos, a humilhação diária em delírio persecutório, o desespero em desejo de vingança.

O que é a linguagem brutalista? Basta ver Milei, Trump, Jiménez Losantos argumentarem: mentem como metralhadoras, dizem isso e o contrário em questão de segundos, imediatamente se ofendem e atacam, desqualificam e insultam, apontam bodes expiatórios para o mal-estar. Eles só querem vencer e usam a linguagem como uma arma de destruição em massa.

É uma linguagem brutal porque destrói a igualdade entre os falantes, o tempo para a elaboração das palavras, a abertura para o outro, o jogo com as distâncias. Em seu significado literal, instantâneo e automático, a linguagem brutalista nada mais é do que a linguagem da comunicação radicalizada ao extremo.

A linguagem é um vírus, diz William Burroughs. A linguagem brutal ativa esse vírus dentro de nós. Os afetos se obscurecem, os corpos ficam tensos, os discursos se tornam cruéis. Estamos possuídos. É impossível argumentar racionalmente com uma pessoa possuída.

Então, como podemos nos proteger? A deserção não pode ser topológica: para outro lugar. Não há nada fora da linguagem. Você precisa desertar sem sair do lugar. Um gesto de subtração protetora: outra prática de linguagem. Onde quer que estejamos, na vizinhança ou na escola, em casa ou no trabalho, até mesmo nas redes, passamos para o outro lado da linguagem.

Chamamos isso de conversa

A conversação é a prática da linguagem que pressupõe a igualdade entre os falantes: ninguém sabe, nós conversamos e discursamos juntos. Envolve um tempo de elaboração: não há acesso direto à “coisa”, apenas desvios e deambulações. Ela abre um espaço para o outro: eu falo, você responde, nós pensamos.  Cada orador refina sua voz singular em um enredo comum, de todos e de ninguém.

A conversação permite um processamento diferente dos afetos, ela pode causar um curto-circuito na tradução brutalista dos afetos e da posse. Ela cria sentidos no limite entre a total falta de sentido e os sentidos absolutos. O círculo protetor da linguagem é desenhado onde temos a conversa. Sem garantias, a proteção vem e vai, a conversa deve sempre ser retomada.

O que é psicanálise? Uma conversa de cura, a descoberta de que a linguagem é o corpo e que existem palavras comoventes que curam. O que é a educação? Quando não se reduz ao ato de transmissão entre os que sabem e os que não sabem, pode ocorrer um diálogo em que a apropriação singular do conhecimento é possível. O que é a amizade? A longa conversa entre amigos, de acordo com Hannah Arendt, que juntos dão sentido a um mundo que não tem sentido. E a política?  Poderia ser terapia, educação e amizade se renunciasse à propaganda, a palavra instrumental e instrumentalizadora por excelência...

Não se trata de responder ao brutalismo da direita com o brutalismo da esquerda, de competir em certezas e seguranças, de se entrincheirar nas linguagens de refúgio dos já convencidos, de monologar a partir do "lado certo" da história, mas de abrir e ampliar os espaços de conversa com o maior número possível de estranhos. A conversa é irônica, permite-nos brincar com as nossas identidades, as nossas opiniões, as nossas bandeiras. Afastando-nos de nós mesmos, a ironia é um antídoto para a possessão.

Somos animais de linguagem. A linguagem não é apenas uma ponte entre você e eu que deixa intacto o que nos une, mas o mundo compartilhado que nos arrasta e nos transforma. Não a base da política, mas a própria experiência política. Não a superestrutura, mas a infraestrutura.

Há uma guerra de linguagem.

Como podemos nos proteger da possessão?

Onde há perigo, o que salva também cresce.

Outra prática linguística, as comunidades de conversação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma década esquizofrênica

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático