Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A felicidade subversiva


 [Artigo de Amador Fernánde-Savater, publicado em CTXT, em 20/5/2023. Tradução: Haroldo Gomes]

A felicidade talvez tenha sido a maneira ocidental de discutir o que agora é chamado de "bem viver" ou "o viver saboroso". Ou seja, discutir a própria definição de vida boa

"Povos felizes não têm história"

A felicidade tem uma fama muito ruim hoje para o pensamento crítico. É considerada uma ilusão, mais uma injunção obrigatória, um sonho trapaceiro de classe média. 

Posto no Facebook uma frase de Pasolini a favor da felicidade e logo alguém responde:"Pasolini capacitista!" A felicidade cancelada.

No entanto, a relação entre felicidade e revolução tem sido muito próxima até recentemente. Um ligava seu destino à outra, como Pasolini chegou a dizer justamente na citação respondida.

A felicidade talvez tenha sido a forma européia e ocidental de discutir o que hoje, na América Latina mais influenciada por tradições indígenas, chama-se “o bom viver” ou “o viver saboroso” (nas belas palavras de Francia Márquez).Ou seja, discutir a própria definição de vida boa.

Os grupos subalternos tinham suas próprias imagens de felicidade, a partir das quais disputavam com a concepção hegemônica. Imagens não só do futuro, de uma felicidade possível depois ou mais tarde, mas aqui e agora, relativa à experiências vividas no presente.

Por acaso esse potencial se esgotou? Será que a ideia de felicidade é algo agora apenas a ser desmontado, denunciado e desconstruído? Não existem imagens de plenitude e alegria fora das concepções hegemônicas? As centelhas de felicidade subversiva se apagaram para sempre?

Felicidade e revolução

Encontramos o primeiro elo entre felicidade e revolução nítido nos discursos públicos - Robespierre, Saint-Just ou Babeuf - durante a Revolução Francesa. 

"O ser humano nasceu para a felicidade e para a liberdade, em toda parte ele é escravo e miserável", afirma Robespierre. Se o ser humano é escravo e miserável, não é por nenhuma fatalidade inscrita nas marcas de nascença, mas pela "corrupção do poder". Ao poder mesmo como corrupção.

Corrupção de quê? Do "estado de natureza" segundo o qual se deveria legislar para devolver a liberdade, a virtude e a felicidade ao povo. Contra a promessa compensatória de uma felicidade só possível no outro mundo, a revolução espalha por toda parte a ideia de uma felicidade terrena e acessível a todos.

“A felicidade é uma ideia nova na Europa”, escreve Saint-Just como toque final de um texto-decreto sobre o confisco de bens dos inimigos da revolução e a indenização dos indigentes. A felicidade é possível e sua ferramenta é a política.

"Pertence às grandes assembleias criar a felicidade comum". Uma legislação revolucionária de acordo com o estado de natureza pode tornar efetiva esta aspiração humana, dissolvendo as desigualdades sociais e promovendo os direitos necessários à assistência, ao trabalho, à educação. É a ideia do Estado social natural.

Os jacobinos apostaram na revolução permanente "enquanto houver apenas um pobre ou miserável na terra", mas o processo terminou no ano II com a reação do Termidor. “A revolução congelou”, observa Saint-Just antes de silenciar para sempre.

O fracasso das revoluções comunistas do século XX

Na década de 1970, o filósofo alemão Herbert Marcuse refletiu com Jürgen Habermas e outros sobre sua própria trajetória política e intelectual. Tudo começou com um fracasso, diz ele, a derrota da revolução espartaquista de 1918-1919 na Alemanha.

“Fiz parte da última concentração de massa em que Rosa Luxemburgo falou; eu estava em Berlim quando ela e Karl Liebknecht foram assassinados". O que eu queria entender era como, com a presença de massas genuinamente revolucionárias, a revolução pôde ser derrotada. Por que o potencial revolucionário daquela época, historicamente raro, não só não foi aproveitado, como foi desperdiçado por décadas? Por que foi desativado diretamente? Significativamente, comecei estudando Freud”.

A derrota de 1918-19 antecipa outro fracasso: o das vitoriosas revoluções comunistas do século XX. Também nelas o potencial revolucionário das massas é inutilizado e o sonho coletivo de liberdade e felicidade se transforma em um pesadelo de terror e escravidão. Como é possível?

O que Marcuse pensa é que as revoluções são derrotadas não apenas por forças externas, como a repressão ou a cooptação de revolucionários, mas também por dinâmicas internas e inconscientes. Ao Termidor histórico-social acrescenta-se um "Termidor psíquico" cujo mistério deve ser penetrado para compreender algo da maldição das contrarrevoluções.

As revoluções comunistas do século XX retomam sem questionar o imaginário do progresso: desdobramento das forças produtivas, domínio da natureza e da fabricação de bens de consumo. O socialismo é definido como a redistribuição igualitária do progresso industrial, que Lênin resume em sua famosa fórmula: “o comunismo são os sovietes mais a eletricidade”.

O problema, diz Marcuse, é que esse imaginário já pressupõe um tipo de corpo. Somente o corpo reprimido e insatisfeito, que aprendeu a adiar o prazer e a se sublimar em ideais futuros, é capaz de impulsionar o progresso quantitativo infinito. Só esse tipo de corpo pode experimentar a vida como um trabalho sem prazer baseado na produtividade e na promessa de um futuro.

Como se "educa" esse corpo? Claro, a partir de todos os tipos de violência externa: nós os conhecemos bem graças às obras de Marx, Foucault ou Silvia Federici. Mas não só. O que Freud permite a Marcuse é pensar a "interiorização do poder" através do próprio fato cultural. 

O acesso à cultura e à linguagem impõe a cada ser humano o sacrifício do corpo pulsional em favor do princípio da realidade. O delegado do princípio de realidade dentro de cada um de nós é chamado de superego. Este vigilante interno, que tomamos como a voz da consciência moral, trabalha para manter a ordem com as armas mais eficazes que existem: o sentimento de culpa e dívida, a angústia à menor transgressão, o desejo de punição como redenção. E nessa estrutura (ontológica) que se enraízam os diferentes poderes histórico-sociais.

No caso do princípio de realidade capitalista, o mandato transmitido pelo superego é primeiro a renúncia pulsional em favor da produtividade. A pulsão amorosa (Eros) será reduzida à sexualidade genito-reprodutiva. E a pulsão destrutiva (Thanatos) será instrumentalizada contra os "inimigos do progresso" externos e internos: as paixões inúteis, inclinações à vagabundagem e à preguiça, tudo o que resiste a sacrificar a felicidade do presente à produtividade.

Agora podemos entender melhor o fracasso das revoluções comunistas do século XX: ao copiar o imaginário burguês do progresso como ele é, querendo simplesmente colocá-lo a serviço de outras finalidades, reproduziram o mesmo “tipo humano”, o corpo da renúncia pulsional e da sublimação ao futuro, o corpo sempre insatisfeito e infeliz.

Esse corpo se materializa na subjetividade que concebe a revolução como “trabalho”, a militância como “sacrifício”, o tempo como “espera” e o comunismo como sociedade da produtividade total. A luta pelo socialismo – e logo o próprio socialismo – se objetiva e reifica. O potencial pulsional e criativo das massas fica inutilizado. A revolução é derrotada por dentro.

A libertação de Eros

Ao contrário de Robespierre, não nascemos para a liberdade e a felicidade. O acesso à cultura nos predispõe antes à alienação e à infelicidade. A revolução política não é suficiente, pensa Marcuse, é necessária uma revolução cultural. Uma mudança radical na estrutura das necessidades pulsionais, invariante e ao mesmo tempo aberta à modificação histórica.

Essa revolução cultural consiste em reativar as forças eróticas reprimidas. A libertação como felicidade. O que é Eros? O impulso de proteger, enriquecer e embelezar a vida, o instinto de cooperação, a energia capaz de compor coletivos a partir de uma solidariedade sentida (e não apenas forçada), única força capaz de deter a destruição. 

A libertação de Eros é antes de tudo um protesto: contra o mundo da produtividade autopropulsada, da agressividade permanente e da instrumentalização de tudo. Sem esse fio negativo, sem esse poder de rejeição, Eros corre o risco de ser reduzido a uma mera compensação tolerada.

E também é uma afirmação. O aparecimento de um novo tipo de ligação entre os seres, as coisas e o mundo. Um vínculo sensível e afetivo capaz de cuidar de cada ser vivo como uma potência singular, como sujeito e não como objeto. Uma nova sublimação da energia libidinal, não mais repressiva ou compensatória, mas criativa.

A força de Eros, antes antecipada e reservada ao campo da estética, deve agora impregnar a vida toda: organizar o trabalho, orientar a construção de ambientes habitáveis, determinar as relações com a natureza, encharcar os espaços educativos.

Esta libertação implica uma outra temporalidade, não mais o tempo da espera infinita, mas o dos processos que trazem em si a recompensa. O tempo de amadurecimento, crescimento e desdobramento do que já está aí, como semente e potencia. O tempo do processo e não do progresso.

Implica um outro corpo, não mais o do militante sempre insatisfeito e em guerra com o mundo, sem nada a perder a não ser suas correntes, mas um corpo que tira sua força dos mil laços amorosos que já o prendem ao mundo: as formas de vida desejáveis, os territórios que habitamos, as memórias e histórias que nos constituem.

Em suma, implica uma nova concepção da revolução, como mutação antropológica, mudança de pele e surgimento de uma nova sensibilidade. Essa nova concepção, reivindicada teoricamente por Marcuse desde a década de 1950, vai se concretizar praticamente nos movimentos da década de 1960: os estudantes pacifistas contra a Guerra do Vietnã, o feminismo e as primeiras lutas ambientalistas, anticoloniais e raciais. Os diferentes atores do que Marcuse chamou de Grande Rejeição.

O mandato de desempenho

A Grande Rejeição não consegue derrubar o capitalismo, mas força uma reorganização geral em resposta. É o que se conhece como passagem entre fordismo e pós-fordismo, ou sociedade industrial e neoliberalismo; e implica também uma mudança profunda no nível psíquico e subjetivo, que é o que nos interessa agora. 

O sujeito industrial torna-se o sujeito performático dos nossos dias. Não mais definido pela renúncia pulsional, mas pelo envolvimento total na guerra econômica: entrega, motivação, participação. Não por obediência e conformismo, mas por desenraizamento e auto-superação constante. Não por ascetismo puritano, economia ou moderação, mas por excesso: hiperatividade, hiperexpressividade, hiperestimulação. 

A acumulação como principal característica do capitalismo é internalizada, tornando-se uma modalidade subjetiva e modo de vida. Além do próprio trabalho, afetando toda a existência.

O novo mandato do superego dita: "você deve sempre tirar vantagem, tirar o máximo proveito de cada situação". A energia amorosa de Eros é subjugada sob todas as formas de hiper-sexualização. A energia destrutiva de Thanatos é instrumentalizada para a competição geral e a guerra de todos contra todos.

E o desconforto? Como fica o sofrimento psíquico nesse tempo de desempenho obrigatório? 

É a sensação constante de que o tempo está se acelerando, de que “não consigo chegar lá” ou “não tenho vida”. A sensação de estar sempre em falta, sempre em déficit, de não ser suficiente, de não fazer o suficiente, de não ter o suficiente. A dificuldade vivida na relação com o outro, sempre rival e nunca cúmplice, um constante medir-se pela inveja e pela frustração, uma exigência sufocante.

Se Freud ofereceu a Marcuse um esquema para pensar a internalização do poder, o psicanalista Jacques Lacan acrescentou posteriormente mais um elemento, bastante perturbador: o mandato do superego se regogiza. Somos nós mesmos que aceleramos a roda do hamster, que entramos na competição com o outro, que cobramos de todos e de tudo um resultado imediato.

Há uma alegria nisso tudo, uma satisfação na insatisfação, um certo apego emocional, uma espécie de vício. O reclamante basicamente não quer mudar nada, a vítima está satisfeita com sua posição.

Sem pensar profundamente em todas essas questões, sem entrar seriamente no “ninho de víboras” da subjetividade, os apelos à transformação social permanecem mero discurso, um cadáver na boca, a preparação de um novo Termidor psíquico.

A felicidade do desertor

E então, hoje, felicidade? Não, claro, a felicidade obrigatória do mandato de desempenho (“seja feliz, aproveite!”), mas a felicidade de justamente desfazer todos os comandos, a felicidade que subverte, a felicidade de Eros. 

Vamos ensaiar um pouco, sem negar outras possíveis linhas de interpretação, nem tê-las todas conosco. Hoje há quem abandone o emprego, quem rejeite o consumo como relação privilegiada com o mundo, quem dê as costas à política e aos meios de comunicação, quem se vá, quem desapareça. Grande Resignação, declínio, êxodo das cidades, novos comunalismos, mil tentativas de desligar e desacelerar a vida, desamor libidinal.

O pano de fundo da época, pelo menos no Norte global, é esse vasto movimento de afastamento dos mecanismos de ansiedade. Às vezes sozinho e outras em grupo, às vezes trocando de lugar e às vezes sem sair do lugar, às vezes com fala e outras vezes apenas por instinto. Não se trata exatamente de lutas ou movimentos sociais, mas de uma espécie de deslocamento de placas tectônicas, em que novas lutas e movimentos podem surgir. Estou pensando, por exemplo, na atual desidentificação geral em relação ao trabalho, considerado por décadas como a principal fonte de auto-realização e felicidade. Não pode faltar ao trabalho, porque é dinheiro e renda, mas toma distância.

Franco Berardi (Bifo) propõe a imagem da deserção para pensar esse movimento de retirada. A deserção vai além do simples desligamento momentâneo: uma licença médica, uma fuga, um verão. Porque implica precisamente um gesto de renúncia: de subtração e desapego do nó que nos prendia, de elaboração da armadilha em que estamos presos, de abertura a novos ritmos e respirações. 

A deserção implica uma ruptura subjetiva. Um corte com o gozo do desempenho. Uma perda de certas certezas às quais nos apegávamos e a passagem dessa angústia.

Atrever-nos a perder. Essa é a proibição por excelência sob o imperativo de desempenho: perder tempo e não fazer render, perder prestígio na disputa por visibilidade, perder posições na guerra econômica. A famosa síndrome FOMO (fear of missing out), o medo constante de perder algo, expressa essa terrível ansiedade.

O perdedor (el loser) é a figura mais desvalorizada do neoliberalismo, o espantalho com o qual nos assustamos e normalizamos. Mas só ousando perder podemos enfraquecer esse mandato do superego que nos mortifica. Perder, como diz Jorge Alemán, sem se identificar com o que se perde, sem melancolia. 

Perde-se, também, por amor. Como aconteceu na excepcional história de "Loco" Pérez, o jogador que abriu mão de um contrato de dois milhões de euros e caiu para a Terceira Divisão por seu amor de infância a La Coruña. Perder como forma de dar e doar-se sem cálculo, na fidelidade ao que verdadeiramente sustenta a vida.

Perder, não para depois ganhar, como dizem os atletas de elite e os loucos empresários, mas para aprender a viver em uma perda, no sentido de que o desejo - ao contrário do gozo - não acumula, fica à deriva o tempo todo, tem maré alta e baixa, se dissipa, constrói labirintos sem saída. 

A felicidade do desertor passaria por esse abandono da obrigação-alegria de ceder, de acumular, de controlar. Essa deserção pode se tornar um movimento coletivo, estratégico, organizado? Um movimento de engenheiros, técnicos e pesquisadores franceses, unidos em sua rejeição a "robotizar, mecanizar, otimizar, acelerar e desumanizar o mundo", autodenominaram-se recentemente "os desertores felizes" e convidam a uma grande renúncia construtiva, criativa, ofensiva.

Marcuse fala em algum lugar sobre "felicidade sem mérito". Não aquela que se consegue com esforço, aquela que se adquire ou conquista, aquela que é prêmio ou decretada, mas aquela que pode irromper, sem garantias e inesperadamente, justamente se ousarmos perder.

Referencias: 

Filosofía radical: conversaciones con Herbert Marcuse, Jürgen Habermas y otros, Gedisa (2018).

“La idea del progreso a la luz del psicoanálisis”, Herbert Marcuse (1969).  

La nueva razón del mundo, Pierre Dardot y Christian Laval, Gedisa (2013).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal