Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A visão no ouvido


Por um 'comunismo' da atenção

Entre o íntimo e o coletivo, entre o social e o político, entre o psíquico e o ecológico, surge hoje a linha transversal da atenção. A atenção como prática e como demanda, como um novo bem comum

[Artigo de Amador Fernández-Savater, em CTXT, em 22/4/2023. Tradução: Haroldo Gomes]

Amador Fernández-Savater é um pesquisador independente, ativista, editor, 'filósofo pirata'. Publicou recentemente "Habitar y gobernar; inspiraciones para una nueva concepción política" (Ned ediciones, 2020) e "La fuerza de los débiles; ensayo sobre la eficacia política" (Akal, 2021).Suas diversas atividades e publicações podem ser acompanhadas em www.filosofiapirata.net.

Existe alguma relação entre crises de pânico ou ansiedade (essa epidemia do presente) e as mobilizações ambientalistas pelo levante da terra? Os problemas na escola e as lutas dos profissionais de saúde em toda a Espanha têm algo em comum? Vamos nos aventurar um pouco.

Primeiro, a sensação de transbordamento como mal-estar de época. Corpos que disparam, têm dificuldade em respirar e sentem que estão morrendo. Lugares cotidianos de trabalho despossuídos de tempo e de recursos para enfrentar a multiplicação de demandas. Atravessamento dos limites físicos e biológicos da terra. Transbordamento, enfim, dos corpos e dos tempos, dos postos de saúde e das escolas, do próprio planeta. 

Segundo, a atenção como chave das lutas coletivas. Os trabalhadores da saúde lutam por contextos de trabalho adequados para ouvir cada um dos pacientes e não ter que os despachar rapidamente.Os movimentos ambientalistas apontam o que lá de cima não quer se ver: os danos da emergência climática e a necessidade de uma mudança radical de paradigma. Os feminismos colocam o cuidado com a vida no centro da ação e da agenda política.

Por um lado, a exploração até o esgotamento de todos os recursos: mentais, sociais e naturais. De outro, a renovação e o cuidado das energias vitais através de movimentos que estabelecem uma outra relação com o mundo. Nenhuma diferença entre "natureza interior" e "natureza exterior". O colapso é ao mesmo tempo psíquico, social e ecológico. Também devem sê-lo a mudança e a transformação.

A capacidade humana de atenção, em seu duplo sentido de cuidar de si e cuidar do outro, surge como a transversal que conecta o mal-estar da época e as lutas contemporâneas.

A atenção como experiência plena do presente, diante do transbordamento (culpabilizado) de uma vida que se repete mil vezes ao longo do dia: "Não chego", "Não sou suficiente", "Não aguento".

A atenção como faculdade de escuta profunda do mundo e de cada um de seus habitantes, sejam eles formas de vida humanas ou não humanas, diante do extrativismo que considera o meio físico como um grande posto de gasolina onde pode se servir à vontade.

Atenção como indagação sobre o sofrimento do outro como fundamento da relação ética e política, diante do vínculo instrumental com tudo o que hoje é dominante.

São os sentidos que o livro coletivo que coordeno junto com Oier Etxebarria tenta pensar juntos e acaba de ser publicado sob o título El eclipse de la atención.

Qual é o seu tormento?

O que é atenção? A pensadora francesa Simone Weil, que fez dessa questão o cerne de sua filosofia, responde: atenção é a capacidade de esperar. Uma espera não resignada, mas ativa, intensa, alerta.

Simone Weil distingue atenção e concentração: atenção não é um esforço laborioso da vontade, mas um estado de abertura e disponibilidade. Ao mundo, aos outros e à situação que habitamos. Não requer tanto de um trabalho ou de uma disciplina penosa, como de uma relação com o desejo e a alegria. Se há desejo há atenção, prestamos atenção ao que desejamos. Não consiste tanto em “enfocar” ou “centrar”, mas em esvaziar-se de preconceitos para ser capaz de acolher algo desconhecido e não previsto de antemão.

É a qualidade, para Simone Weil, de toda aprendizagem e de toda relação não instrumental com os outros.

A única coisa que deve ser ensinada na escola, recomenda Weil provocativamente, é justamente a prestar atenção. Um exercício de lógica ou de filosofia, de matemática ou de literatura, são apenas maneiras diferentes de exercitar a capacidade de atenção. Primeiro, resistir a todas as tentações de “querer saber rápido demais”: julgamento imediato, tomada de posição automática, uso de rótulos e estereótipos para se orientar. Em seguida, elaborar um ponto de vista singular e próprio sobre tudo o que nos é apresentado ou que nos afeta.

A faculdade da atenção, como passividade ou espera ativa, desafia-nos a experimentar uma temporalidade não imediatista: não se precipitar ou lançar-se, não se encher prematuramente, não opinar sobre tudo o que acontece ou saber sempre de antemão qual é a opção correta, mas sustentar o tempo de elaboração de uma verdade própria.Um tempo de processo, esse "tempo de ver, compreender e decidir" de que também falava o psicanalista Jacques Lacan.

O segundo sentido da atenção para Weil é a atenção ao outro. A atenção como base sensível da relação com o outro. Em que sentido?

Weil explica através da parábola do samaritano: o fundamental na relação de cuidado com o outro é a pergunta "qual é o seu tormento?". Também para um paralítico, diz Weil, você deve perguntar a ele qual é o seu tormento. Ou seja, não pressupor, falar ou pensar pelo outro, considerá-lo segundo sua aparência ou sua origem, mas sempre perguntar e ouvir. Atender a sua diferença, a sua singularidade, a seu caráter de sujeito.

O cuidado é sempre único e mutável. Solicita, de nossa parte, uma pergunta e um diálogo constante com o outro. Caso contrário, também pode ser algo opressivo, alienante, sufocante: ser cuidado como um objeto, uma unidade em uma série, parte de um rebanho. O que costumamos chamar de má vontade.

O domínio do automático

No atual colapso da atenção, entendida como a capacidade de esperar e escutar singularmente o outro, quem ou o que se encarrega do mundo por nós? Os automatismos. Todo tipo de padrões, protocolos e algoritmos organizam a vida individual e coletiva hoje. O automatismo não espera: ele sabe de antemão. O automatismo não escuta: pressupõe e calcula. O problema atual não é que estejamos muito distraídos, mas sim a delegação massiva de nossa atenção a mecanismos que veem, compreendem e decidem por nós.

Os automatismos, dizem-nos, "são mais eficazes". Mas, eficácia para quê? A eficácia dos automatismos é a eficácia das coisas: aquela que trata o mundo como um conjunto de coisas calculáveis ​​e controláveis. Eficácia do lucro e do curto prazo. Eficácia do resultado e não do processo. Eficácia que nos considera como objetos, mas nunca como sujeitos. Uma eficácia "extrativista", explica Yves Citton no livro, voltada para o benefício final, mas que negligencia o pano de fundo ou a trama da vida, essa trama invisível e não quantificável que torna possível a existência.

Os automatismos organizam o que virá em função do que foi, segundo uma ciência estatística feita de correlações. Os algoritmos de mercado nos propõem esta ou aquela mercadoria com base no que consumimos antes. Os protocolos institucionais nos alertam sobre este ou aquele problema se for semelhante aos problemas que existiam antes. Os automatismos sempre nos encerram no círculo do mesmo, enquanto que a atenção é a capacidade de esperar e acolher o novo.

Os automatismos são, no melhor dos casos, simplesmente “saberes cristalizados”. Mas o mundo é feito de situações singulares em constante movimento: a vida também consiste no não calculável, no não previsível, no não controlável. A delegação nos automatismos nos torna incapazes de sentir e captar por nós mesmos essas mudanças muitas vezes quase imperceptíveis. Por exemplo, pensamos que este ou aquele protocolo institucional contra o abuso escolar será suficiente para nos manter alertas e deixamos de nos esforçar para ouvir diretamente as crianças nos espaços presenciais.

Comunizar a atenção

A vitória da lógica do lucro sobre qualquer outro valor social provoca esse transbordamento em que vivemos. As vidas individuais, os centros de atenção básica, as escolas e o próprio planeta são explorados, precarizados e "não dão conta". Os automatismos aparecem como o único mecanismo capaz de atender às demandas contemporâneas de imediatismo e eficácia. Transbordamento, crise dos cuidados e automatismos como única resposta: é um círculo vicioso catastrófico. Como sair?

Entre o íntimo e o coletivo, entre o social e o político, entre o psíquico e o ecológico, surge hoje a linha transversal de atenção. A atenção como prática e como demanda, como um novo bem comum. O que imaginamos com o nome “comunismo da atenção”? Não um regime ou uma instituição, mas práticas de comunização da atenção. De exercício e proteção da atenção.

A atenção é um problema material, não apenas privado ou psicológico. Requer tempo, recursos e contextos institucionais adequados. O médico ou professor que quer fazer bem o seu trabalho não depende apenas do seu esforço ou da sua boa vontade, mas de uma série de condições coletivas. Existem ambientes que favorecem a atenção e outros que a dificultam. Não é um problema meramente pessoal, mas coletivo e político. O “comunismo da atenção” disputa tempos, recursos e controle dos contextos onde nossa atenção se exerce: postos de saúde precários, a rua invadida pela publicidade, a abolição geral do silêncio, etc.

Mas a atenção não é apenas uma demanda ou um objetivo, mas algo que se pratica e se compartilha. Defender a atenção requer novas formas de ativismo e compromisso. Frente a um ativismo ansioso e bulímico, orientado pelo imediatismo e resultados, também assolado por automatismos, trata-se de activar e sustentar outros tempos e outros processos, militantes capazes de trabalhar sobre si próprios, grupos que não competem pelo narcisismo das pequenas diferenças, mas que cuidam do ecossistema que sustenta o comum (espaços, informações, climas afetivos).

A terapia individual permanece estreita sem preocupação com o mundo comum. A luta coletiva não vai muito longe sem atender a dimensão pessoal e subjetiva. A atenção é a interface entre meu sistema nervoso e a crosta terrestre. A arte de nos mover na reciprocidade, na relação, no “entre” que sustenta o mundo.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal