Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Erótica, estética, revolução: as utopias concretas de Herbert Marcuse

Texto de Amador Fernández Savater, publicado em ctxt - contexto y acción, em 4/3/2023. Tradução: Haroldo Gomes.

Ingênuo? Seguramente, sim. Mas com essa “ingenuidade” de quem persegue o que seu tempo julga impossível e que é a única força que fez o mundo progredir em termos de liberdade e igualdade

É a voz, a beleza, a calma de outro mundo
aqui na terra"
[Herbert Marcuse]

Herbert Marcuse foi talvez o filósofo mais popular e influente nas décadas de sessenta e setenta do século passado, no auge dos movimentos contraculturais e da chamada Nova Esquerda. Por que sua leitura diminuiu atualmente?

Arriscamos o seguinte: o declínio do interesse por Marcuse é paralelo ao declínio da capacidade utópica das sociedades. Ou seja, ao triunfo do que hoje se chama "realismo capitalista" e que vem repetir o seguinte: o que há é o que há.

No próprio pensamento crítico, prevalece um certo deleite na impotência: diverte-se com a descrição infindável de nossa submissão aos dispositivos de poder e de como toda tentativa de libertação é redirecionada para dentro do sistema. (“Você vê? Eu lhe disse”).

A posição de vítima perante o mundo é hoje hegemônica: a crítica vitimista não quer realmente mudar nada, mas simplesmente tem prazer em "fazer nascer" os culpados do que está acontecendo, como se isso não tivesse nada a ver conosco.

Nada disso descobriremos ao ler Marcuse, determinado ao longo de sua vida a localizar as "rotas de fuga" que nos permitissem desbloquear as situações que se nos apresentam aparentemente sem saída.

Esses caminhos são o que ele chamou, retomando o termo de seu colega Ernst Bloch, de "utopias concretas". As utopias concretas não são especulações sobre o futuro, nem planos ou sistemas ideais, mas sim "potenciais" já inscritos no presente e prenhes de outros futuros possíveis, mas que o estado de coisas reprime e sufoca.

Teorizar, para Marcuse, é abrir o ouvido para esses potenciais e contribuir para desdobrá-los com o pensamento: acompanhá-los com nomes e conceitos, procurar o seu contágio pela palavra, discutir entre os envolvidos seus problemas estratégicos.

Ele encontrou esses potenciais no âmbito das pulsões, da estética e dos movimentos políticos de seu tempo.

Erótica

É espantoso, cem anos depois das descobertas de Freud, a quantidade de sociologia supostamente crítica que se desenvolve como se a vida dos seres humanos passasse inteiramente no âmbito do explícito e transparente, do racional e consciente, do mero pertencimento à classe social e seus interesses.

Marcuse pensa não só a partir de Marx, mas também a partir de Freud. Ele aceita que o ser humano é antes de tudo um animal desejante constituído estruturalmente por duas pulsões – de vida e de morte, Eros e Tânatos – abertas à sociedade e à história, ou seja, cujos objetos e canais mudam a cada época.

Somente nesse encaixe entre o psíquico e o social podemos penetrar no segredo da "servidão voluntária": Por que os seres humanos lutam por sua escravidão como se fosse sua salvação? As revoluções não são derrotadas apenas por fora, mas também por dentro. Conhecem, diz Marcuse, seu próprio "Termidor psíquico".

O que o filósofo alemão encontra na socialização sob o sistema capitalista é um "excesso de repressão" que implica uma severa mutilação da sensualidade e do princípio do prazer. O corpo e suas pulsões são vistos com desconfiança pela tradição ocidental em geral, como aquilo que deve ser reprimido para fabricar seres humanos que girem essencialmente em torno da necessidade de trabalhar.

Se essa "repressão excedente" já teve uma razão de ser, por razões de luta pela existência, certamente não é mais assim. Há uma abundância material que não só poderia ser melhor distribuída, como também servir de base para o desejo de uma vida diferente, cujos valores centrais não fossem a produtividade, o lucro e a competição.

Entre os principais objetivos dos movimentos políticos segundo Marcuse está, portanto, a reativação da sensualidade e do prazer como formas de se relacionar com o mundo. Como isso soa para nós hoje? É uma proclamação hedonista como costumamos ouvir da boca de uma política neoliberal como Isabel Díaz Ayuso?

Nada a ver. Nossas sociedades estão enganchadas no gozo do consumo: formas de vício e compulsão, satisfações substitutivas e compensatórias de uma vida mutilada. Todas as grandes indústrias de nosso mundo – do turismo aos narcóticos, passando pela bebida, o sexo ou o esporte – são negócios, não de prazer, mas de tranquilizantes, de alívio e de desafogo. Tampam o poço sem fundo da insatisfação por um momento.

O princípio da realidade continua comandado por mandatos: ontem, o mandato do superego da autoridade, da religião ou da moralidade que diz "não faça"; hoje, o superego imperativo do lucro, da produtividade e da competição que diz “faça!”. Ambos, como mandatos, igualmente mortificantes. Daí a necessidade de pulsões compensatórias.

A liberação da sensualidade e do prazer, a força de Eros, nada tem a ver com aumentar as oportunidades de consumo ou encontros sexuais (muitas vezes a mesma coisa), mas sim com a ativação de um relacionamento amoroso com o mundo: trabalho criativo e não alienante, tempo livre autônomo, relação de cuidado com o ambiente natural e social.

Só a derrota política dos projetos coletivos dos anos sessenta e setenta explicam que hoje se reduza a libertação de Eros a um problema de escolhas pessoais e privadas: poliamor, crítica à monogamia, multiplicação de parceiros sexuais, etc. Para os movimentos contraculturais tratava-se de “fazer amor” com o trabalho, a cidade e o cosmos. Reinventar a relação com toda a realidade a partir de um elo sensível. O que Marcuse chamava de “sublimação criativa”, diferente da sublimação repressiva ou compensatória.

Mas o corpo instintivo não é apenas Eros, mas também Tânatos: energia destrutiva, agressividade, instinto de morte. Marcuse aceita essa dualidade freudiana dos princípios pulsionais e conclui: só Eros pode segurar Tânatos, só a força de Eros é capaz de colocar Tânatos a trabalhar a seu serviço, como energia agressiva para defesa ou resistência.

Uma sociedade que reprime Eros está condenada a ver a lógica e a paixão do sacrifício reproduzidas em todos os lugares: da natureza, doa laços sociais e da própria vida. Só a reativação das energias eróticas pode privar os fascismos de ontem ou de hoje do combustível afetivo de que necessitam. O desejo é o campo de batalha.

Política é terapia social: reativação e retreinamento das capacidades eróticas e desejantes do ser humano.

Estética


Como estabelecer uma outra relação com o mundo? Não por mandatos ou imperativos do que "deve ser feito", ainda que sejam racionais ou ideológicos, nem por impulsos agressivos de dominação e controle. A resposta de Marcuse é a sensibilidade.

A transformação social consiste em passar de uma cultura da conquista da realidade (pela força ou pela razão instrumental) a uma cultura de acolhida do mundo (através da sensibilidade). Uma ativação individual e coletiva da capacidade de receber. A receptividade criadora contra a produtividade repressora, obrigatória, como uma nova forma de habitar.

O órgão dessa receptividade, explica Marcuse, seguindo Kant e Schiller, são os sentidos. Tanto passivos quanto ativos: registram as impressões que o mundo nos deixa e lhes dão uma forma não coercitiva. A percepção é uma questão política: o que vemos e a experiência associada a essa visão.

A estética também é organizada para Marcuse como uma área da arte e da ficção. Esta área deve ser autônoma. Ou seja, a arte e a ficção não são e nem devem ser qualquer “reflexo” da realidade, ao contrário, propõem “formas” que a estilizam e intensificam. A arte é política por sua capacidade de despedaçar nossa representação estereotipada do mundo e propor outra através das formas que cria.

A arte emancipa não porque confirme o que já sentimos ou pensamos, mas sim pela sua capacidade de nos dar algo novo para ver e algo novo para pensar. A experiência política da arte é a ampliação de nossos sentidos, não a confirmação de nossas ideias. A redução da politicidade da arte à sua mensagem ou conteúdo é uma mutilação de suas virtudes emancipatórias.

Marcuse debate com o marxismo de seu tempo. Esse reduz a obra de arte às suas determinações sociais: julga o autor por sua origem econômica e social, os personagens como expressão daas determinações estruturais, etc. A potência da arte, porém, para Marcuse, sempre vai além de seu contexto, dá forma a anseios e tragédias que fazem parte do próprio humano, dirige-se a qualquer pessoa.

Hoje se persegue a redução da arte e da ficção ao sentido e à mensagem a partir de lógicas identitárias que não são apenas de classe, mas também de gênero ou raça, mas o problema é o mesmo: celebrar ou condenar as ficções conforme reflitam ou se adaptem a valores ou conteúdos julgados corretos. Independentemente da configuração material da obra, onde de fato reside seu poder emancipador.

Por fim, a forma artística, essa apresentação estilizada e intensificada da realidade, é subversiva porque mantém viva a promessa de felicidade: a ânsia de uma vida não dividida entre o prazer e a realidade, entre razão e sensibilidade, entre corpo e ideia. Um anseio que para Marcuse está enraizado nas memórias de infância que sempre carregamos conosco como uma ferida aberta.

Política é estética social: ruptura da percepção estereotipada, enriquecimento e ampliação dos sentidos.


Revolução


Marcuse sempre se preocupou, como mostra cada intervenção e cada entrevista, com as questões políticas mais básicas: abolição da pobreza, direitos civis e sociais, progresso material, etc. Para ele, as lutas do desejo (revoluções culturais) não negam, mas radicalizam e ampliam as lutas de interesse. É a abundância que o desenvolvimento científico e técnico busca que possibilita e dá lugar ao projeto utópico.

A transformação social é “mais um esforço”: não apenas uma melhor distribuição da riqueza, mas também o nascimento de uma outra concepção de riqueza ou de vida boa. O socialismo, como uma sociedade qualitativamente diferente da capitalista, é a criação de uma “segunda natureza”: outra relação com a linguagem, o corpo, o trabalho, a vida e a morte. Configuração de seres fisiologicamente e psicologicamente diferentes.

Entre os movimentos de seu tempo que manifestaram potencialidades utópicas, há dois que ressoam poderosamente no presente: ambientalismo e feminismo.

O que Marcuse diz sobre o ambientalismo que pode ser inspirador hoje? Ele enfatiza que o ambientalismo não deve se preocupar apenas com a "natureza exterior", mas também com a natureza "interior". Enquanto a sociedade capitalista busca o domínio repressivo tanto das pulsões quanto do mundo físico, a transformação social deve cuidar e proteger ambos. Uma depende da outra.

O ambientalismo também é uma questão de sensibilidade: seu desafio é transformar a percepção social para que o mundo não apareça diante de nós como um objeto de propriedade e conquista, mas como "um cosmos com suas próprias potencialidades". O que significa isso?

As coisas do mundo são forças em si mesmas, têm sua medida inerente e sua própria “verdade”. Os sentidos, se os refinamos para isso, podem descobrir essas possibilidades imanentes e trabalhar a partir delas. Relacionaremo-nos, então, com o mundo como um artesão com sua matéria: sem forçá-la, mas ouvindo suas próprias inclinações.

Não conquistar, não dominar, não violentar, mas ouvir e estender qualidades que são imanentes à existência. A natureza, segundo Marcuse, também espera a revolução: a atualização dos possíveis que contém e que só uma nova sensibilidade pode detectar e despertar. Os seres humanos e a natureza podem se encontrar novamente na dimensão estética.

E em relação ao feminismo, o que Marcuse diz? A partir de uma observação cuidadosa e afetada dos movimentos de mulheres de seu tempo, Marcuse pensa a política revolucionária como uma política em códigos femininos. Encontre nas imagens femininas tradicionais o germe dessa nova sensibilidade baseada em Eros. O cuidado protetor da vida, a escuta atenta das necessidades físicas e materiais, a receptividade criativa ao invés da produtividade, da competição, da guerra.

Mas essas imagens do feminino não são construídas a partir de um olhar masculino? É a discussão que Marcuse mantém com suas companheiras feministas da época.

Sim, é verdade, responde ele, mas "a imagem projetada pelos homens se volta contra os criadores de imagens". Ao invés de rejeitar as qualidades historicamente atribuídas às mulheres, Marcuse se compromete a vê-las e valorizá-las como potências, empunhando-as como ferramentas de transformação, socializando-as e universalizando-as como valores.

Política é antropologia social: surgimento de um novo tipo de ser humano, capaz de estabelecer uma outra relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

Lucidez e utopia


Ingênuo Marcuse? Certamente sim. Mas com aquela “ingenuidade” de quem persegue o que seu tempo julga “impossível” e essa é a única força que sempre fez o mundo progredir em termos de liberdade e igualdade. Muitas coisas em seu pensamento devem ser discutidas, todas devem ser atualizadas, mas certamente podemos nos inspirar em seu "ouvido utópico": a capacidade de captar as tendências atuais que podem transformar a realidade e interpretá-las.

A mudança social não depende de esforços titânicos e heroicos, nem de modificações radicais e violentas, mas sim de disposições mais humildes e simples: escutar as potencialidades de libertação que se expressam em ínfimos detalhes e muitas vezes passam despercebidas. A utopia não é ativa, concepção e execução de ideais e programas, mas sim passiva: sensibilidade, acolhida e atenção ao que já está acontecendo.

Algo dentro das coisas que nos cercam se move e temos que responder a isso. Isso que se agita não é “mensagem” –significado, ideologia, identidade, conteúdo–, mas energia, potencial, possibilidade. Ainda não tem forma. Cabe a nós construí-lo. Para que a força passe, aconteça e possa mudar o mundo.

Obra de Herbert Marcuse consultada:
Eros y civilización (1955), Contrarrevolución y revuelta (1973), Un ensayo sobre la liberación (1969), La dimensión estética (1976), Psicoanálisis y política (1969).

A editora Materia Oscura está fazendo um grande esforço para estimular a leitura de Marcuse e acaba de publicar La Nueva izquierda y la década de los años 60 y Filosofía, psicoanálisis y emancipación (ambos em 2022).

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