Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A era do espírito de seriedade

Artigo de Amador Fernández-Savater, publicado em CTXT - Contexto y Acción, em 11/10/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

 As identidades, em vez de serem tomadas como ponto de partida, são consideradas hoje como ponto de chegada. O outro é o que é a priori – homem/mulher, heterossexual/homossexual, branco/negro, classe média/popular – e não o que poderia ser

Há um homem sério como um papa. 
Há aquele sorriso e aquela voz falsa como a dos anjos. (L. Aragon)
 

O que acontece, o que acontece conosco, quando participamos de um movimento de emancipação, em qualquer escala? Eu diria que se produz, em nós e na própria sociedade, uma abertura, um deslocamento.

Saímos das categorias nas quais estamos normalmente presos: sociológicas, geográficas, profissionais. Há um encontro entre aqueles que não estavam destinados a se encontrar e a criação coletiva de novas formas de habitar o mundo, novas formas de vida.

Operários e estudantes no maio de 68, piquete e panela na Argentina de 2001: um movimento de emancipação, a qualquer nível, é um movimento de aliança entre diferentes e de abertura para ser algo diferente do que somos a priori.

Na vida normal, normalizada, estamos localizados em um lugar, um rótulo ou uma identidade, mas de repente saímos do lugar juntos e a sociedade inteira sai de suas dobradiças. Mulheres que não obedecem mais o que deveriam ser, trabalhadores que rejeitam o trabalho alienado, pessoas não-brancas que não se consideram mais inferiores. A emancipação envolve a subversão dos papéis, das funções e dos papéis sociais estabelecidos. Uma desordem fecunda.

O poder teme isso mais do que tudo e coloca todo o seu esforço diário para manter a ordem das classificações. Cravar cada um em seu lugar, evitar cruzamentos e alianças imprevistas. Seja pela força bruta ou por estereótipos que espalham desconfiança no outro, por meio da polícia ou dos meios de comunicação, trata-se sempre do mesmo: isole e você vencerá.

Olhar do poder

No entanto, acontece que, nos últimos tempos, um forte impulso identitário atravessa (e paralisa?) aos próprios grupos e movimentos de emancipação de dentro.

As identidades, em vez de serem tomadas como ponto de partida, são consideradas pontos de chegada. Nós nos percebemos a partir de nossos rótulos e categorias, a partir da desconfiança e da acusação. O outro é o que é a priori – homem/mulher, heterossexual/homossexual, branco/negro, classe média/popular – e não mais o que poderia ser. Não o que poderíamos fazer juntos.

Jean Paul-Sartre elabora um conceito que pode nos dar o que pensar: o espírito de seriedade. O espírito de seriedade toma o mundo pelo lado do objeto, do mecânico, do automático. Por nosso lugar ou identidade de origem, não pelo nosso potencial de mudança e de metamorfose. Pelo que somos e não por como somos o que somos (há um milhão de maneiras de ser homossexual ou heterossexual, por exemplo).

É a seriedade das coisas, a seriedade que implica nos tomar e nos tratar como coisas: fechadas, pesadas, inertes, acabadas, auto-referentes. Assim nos cegando para tudo que não cabe em nós, a tudo que em nós foge, a tudo que em nós trai nossa identidade. O mandato da masculinidade nos homens, o mandato de classe entre a burguesia ou a classe média, o mandato de raça entre os brancos, etc.

Tomando-nos uns aos outros pelo que somos, só multiplicamos e difundimos o olhar do poder. Porque as identidades a priori são as marcas do poder em nossos corpos: marcas de raça, de gênero ou de classe. Ao ver-nos a nós mesmos (e aos demais) unicamente daí, em vez de ouvir também os deslocamentos, as fugas e as traições que nos atravessam, nos tratamos como meros efeitos de poder, sem poderes de mudança.

A beleza impura

Nosso tempo é do espirito de seriedade e suas paixões. A paixão de apontar, a paixão de corrigir e a paixão de castigar (ou cancelar). A paixão da pureza. Por toda parte levantam-se vozes inquisitoriais acusando de ser isto ou aquilo ou de não ser suficiente. Um olhar frio é instalado em grupos e indivíduos que impede a captura do que se move, que poderia servir de base para forjar alianças entre diferentes. Os movimentos são analisados ​​a partir do que são sociologicamente e não do que se tornam ou chegam a ser por meio de suas práticas.

Muitos movimentos começam reivindicando igualdade, direitos e visibilidade para suas identidades particulares. É inevitável, compreensível e razoável. Mas as lutas por reconhecimento e integração ocorrem necessariamente no interior do sistema que distribui lugares e funções. A emancipação começa quando novas formas de vida são inventadas: outras formas de ser mulher, de ser trabalhador ou de ser negro. É o que pode espalhar rebote para aqueles que ocupam, ou ocupamos, as posições hegemônicas de um desejo diferente, de um querer ser de outra forma, de uma mudança de pele. E, assim, bagunçar todo o mapa de classificações.

Sem contágio e encontro entre diferentes – homens e mulheres, classes médias e populares, urbanos e rurais, com toda a sua inevitável parcela de choque, tensão e mal entendido –, o poder mantém intacta a capacidade de gerenciar cada casinha separadamente.

Belo como uma insurreição impura”, dizia um grafite dos coletes amarelos franceses, cujo poder consistia justamente em abrir espaços de encontro – as rotundas – para elaborar mal estares comuns sobre o mundo em que vivemos. Para fazer em comum, a partir do que cada um é e do que cada um faz com o que é.

Ironia e espontaneidade

Contra o espírito de seriedade, Sartre recomendava uma pitada de ironia e um pouco de espontaneidade.

A ironia, entendida como distância entre o sentido literal e o sentido real, entre nosso papel social e nosso desejo, entre nossas etiquetas e nossos devires. Precisamos de uma pitada de ironia sobre quem somos, ao que devemos fazer de acordo com o que somos, para não acabar petrificados em coisas, em personagens, em papéis.

A espontaneidade, entendida como capacidade de fazer surgir o imprevisto, o não programado, o ainda não visto. Somos espontâneos quando deixamos de representar tal ou qual papel ou identidade para satisfazer a um público, uma clientela ou uma norma social. Representar uma identidade é nos tornarmos previsíveis para os demais e para nós mesmos, perder a espontaneidade.

Assim, através da ironia e da espontaneidade, mantemos uma reserva de confiança na possibilidade de um deslocamento coletivo, que ponha em primeiro plano o que podemos fazer juntos e não o que somos a priori. Para não acabar cada um no seu canto, reclamando ressentidos contra os outros por serem o que são, incapazes de ouvir o que poderiam ser, o que de fato estão sendo já de outro modo, dissimuladamente.

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