Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Participação: ampliação da democracia ou aperfeiçoamento do controle?

 [Artigo de Amador Fernández-Savater no Portal ctxt – contexto y acción, publicado em 15/5/2022. Tradução: Haroldo Gomes]

A participação ingressou hoje em dia no mundo do trabalho, da comunicação ou da cultura, mas não no da política.

Esta segue funcionando sob o velho modelo-televisão: unilateral, sem possibilidade de réplica ou diálogo, onde as posições de ator e espectador – em suas variantes de eleitor e formador de opinião – estão claramente repartidas e separadas.

Se rege ainda pelo conceito clássico de representação: a presença de uma ausência. A política profissional é um modo de representação que ausenta o que representa: o povo delega (se ausenta) seus representantes.

Por isso, as propostas de incluir modos de participação na política, de complementar a representação com a participação, podem soar como novidades ou inclusive disruptivas. Porém…

Participação fácil e difícil


De que participação estamos falando? Vamos distinguir dois conceitos de participação: fácil e difícil, de baixa ou de alta intensidade. Os modos de participação “fácil” são os que se inscrevem em um guia pré-estabelecido. Manifestam-se como “interação” ou “feedback” dentro de estruturas e canais dados a priori. Desse tipo é a participação que penetrou atualmento no mundo do trabalho, da comunicação ou da cultura. Uma participação sempre sob a partitura.

Pensemos, por exemplo, nos caixas de mensagens de sugestões nas empresas ou as opções de expressão nas redes sociais (“eu gosto”, etc.).

Solicitam certas energias criativas, porém sem questionar ou alterar os esquemas de produção no trabalho ou os algorítimos que organizam as redes. São possibilidades programadas e previstas de antemão.

Modos de interação dentro do que há, porém sem capacidade de tocar ou modificar as regras disso que há.

Fazem parte das novas ideias de “governo aberto”: uma representação que se pretende mais amável, próxima e à escuta das populações, que busca um contínuo mais transparente entre governantes e governados, porém sem por substancialmente em jogo o poder ou as estruturas de representação.

Os partidos políticos, animados desde sempre por essa “paixão de unanimidade” que descreveu há quase um século Simone Weil em sua “Nota para a supressão geral dos partidos políticos”, nem sequer toleram estas formas de participação fácil ou débil. Animam-se muito timidamente a processos de votação internos ou de prestação de contas, a maior parte das vezes pressionados a isso por mudanças na sociedade. São “caixas pretas” em mãos de elites as quais não se lhes passa pela cabeça nenhuma cessão de poder (consultas, fiscalização, transparência).

Comunidade


A diferença entre participação “fácil” e “difícil” é marcada, a meu ver, pela presença de três ingredientes: comunidade, deliberação e conflito.

Em primeiro lugar, a participação difícil é um modo de produção de laço social. De encontro, de cooperação e de autoorganização do comum.

O contexto mesmo da participação difícil está aberto e por fazer. Não só damos “feedback” e escolhemos entre opções programadas de antemão, mas inventamos em parte ou em sua totalidade as regras do jogo. Um certo “vazio” - não está programado, previsto, organizado e bem lubrificado – permite e alenta a reapropriação do processo por seus atores.

Pode haver imprevistos e certo caos (precisamente o “caos” da vida quando não está tudo solucionado de antemão). Não há “garantia” de que tudo vai correr bem e que se chegará a tal ou qual resultado. Pode dar-se o conflito interno e tornar-se necessário inventar formas de negociação entre diferentes.

A participação difícil gera o laço social. Porém, o laço social, como qualquer laço afetivo autêntico (amor, amizade), cozinha-se precisamente no imprevisto, na ausência de garantias, no conflito e no longo tempo de um processo. Há que se arriscar a perda de controle.

Deliberação


Em segundo lugar, a participação dificil é um modo de deliberação. Ensina-nos, mediante a experiência mesma, a raciocinar e decidir com os outros.

O que é deliberar? Pensar juntos. As posições de cada sujeito não estão organizadas de antemão, como ocorre no parlamento antes de cada votação, mas se definem em situação, cada vez, através dos poderes das palavras e da argumentação.

Deliberar, do mesmo modo que pensar, supõe uma transformação. No processo de deliberação nos acontece algo: vemos um novo fio da questão tratada, escutamos algo que desloca nossa posição, inventamos uma maneira nova de enfocar um problema. Fazemos uma experiência: não saímos como entramos.

A deliberação envolve o corpo. É por isso que nas redes sociais só há pensamento? Tão só a confirmação das posições prévias, uma e outra vez. A presença comum e partilhada. Vivemos governados por estruturas sem corpo nem pensamento (partidos, meios de comunicação): a catástrofe está assegurada. Estamos instalados nela.

Delibera-se depois de uma decisão, porém a decisão não é mera eleição entre opções prévias, mas pode envolver a invenção de uma possibilidade não prevista de antemão. Decidir então não é escolher, mas criar uma resposta inédita.

A deliberação não pode se separar da “execução” da decisão tomada: não assumir a responsabilidade pelas consequências da decisão, deixar que outros se encarreguem de aplicá-la, amputa a experiência. Votamos como queremos que seja o desenho de tal ou qual praça de nossa cidade, mas a materialização da decisão não conta para nada conosco. Desse modo, o processo de aprendizagem é bloqueado.

A deliberação, portanto, não é uma sequencia rígida – raciocinar, decidir e executar –, mas um processo completo que requer seu tempo próprio: não pontual ou linear, mas uma temporalidade ad hoc, adequada e apropriada a esse trajeto singular de pensamento e ação.

Conflito


Por último, a participação difícil é um modo de conflito. Ensina-nos a habitar o conflito e a fazer dele um motor de expansão democrática.

Se a vida de Roma foi longa e tantas de suas leis justas, diz Maquiavel, se deveu a que a instituição da sociedade era permeável ao conflito. Ou seja, a fortaleza e a justiça de um sistema político se joga em sua abertura e porosidade às vitalidades populares.

Nesse sentido, podemos afirmar que nossa democracia é débil e injusta: não tolera o conflito, foge dele como se fosse uma peste. Sufoca-o o tempo todo, inclusive no caso da chamada Nova Política: temos visto como Podemos e as candidaturas municipalistas tendem a aplacar o conflito interno – dos modos mais clássicos possíveis: cassação, expulsão, marginalização – em nome da “eficácia” e da “boa gestão”. Não se sai de uma concepção da política como controle só por uma mudança semântica.

A sociedade sempre está dividida, nos lembra Maquiavel. A harmonia e o consenso são ilusões prejudiciais no melhor dos casos, ou imposições autoritárias no pior.

Há sempre divisão entre grandes e pequenos, governantes e governados, poderosos e despossuídos. Os grandes, os governantes, os poderosos, tendem ao monopólio do comum: as possibilidades de ação política e de decisão por um lado, as riquezas e as condições de trabalho por outro. Sem a resistência dos pequenos, dos governados, dos despossuídos, o comum fica privatizado. É o conflito o que põe limite à voracidade dos poderosos e amplia as possibilidades de existência.

Isso tem sido historicamente assim. Pensemos nos movimentos de escravos, de trabalhadores, de mulheres, de minorias racializadas ou sexuais: só graças a eles nossa sociedade hoje é algo mais justa e igualitária. Porém, a democracia atual só reconhece e comemora os conflitos do passado, dos do presente não quer saber nada. Já não teriam supostamente nenhuma razão de ser porque alcançamos a “democracia perfeita”, a democracia plena.

O conflito, na boca da cultura consensual dominante, é sinônimo de desordem, de anarquia, de decadência, de entropia, de guerra de todos contra todos. Assim temos ouvido falar na última década do 15M, da irrupção de novos partidos nos espaços de poder ou do desafio independentista catalão. Não considerando-os como ocasiões para fazer-se perguntas e introduzir reformas necessárias, mas como moléstias e perturbações “inconcebíveis na democracia”.

O confito, a luta social, é finalmente a expressão da participação social mais plena. A que contribui com mais experiência real em termos de comunidade e laço social, de deliberação e raciocínio coletivo, de prática e exercicio efetivo de um conceito de democracia onde o povo não seja uma palavra vazia e uma realidade temida, mas um motor necessário e sempre renovado.

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* Intervenção no congresso “Participação e democracia”, que aconteceu na cidade de León, nos dias 12 e 13 de maio de 2022.

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