Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A política como complô


 
[Artigo de Amador Fernández-Savater publicado no Portal ctxt – contexto y acción, publicado em 7/5/2022. Tradução: Haroldo Gomes]

Nosso mundo é dual: diz a paz e prepara a guerra, diz a lei e trapaceia, diz consenso e provoca a discórdia, diz riqueza e é apenas negócio


Para Hugo, Chale, Vale e os amigos da oficinas das segundas-feiras, parceiros



Tem que se construir um complô contra o complô” (Ricardo Piglia)



Quem espiona quem? O governo espiona à oposição, a oposição se espiona entre si, ambos espionam à população, os serviços secretos espionam todos.

E se o Estado fosse uma grande maquinação, o lugar onde se entrecruzam uma multidão de complôs? É a tese desenvolvida por Ricardo Piglia em sua Teoria do complô: a intriga é o nó da política.

Para fora, o relato dominante – que é o relato dos que dominam – nos repete que a política democrática funciona pelo consenso, através da transparência, de acordo com uma série de regramentos e normas públicas. Porém, para dentro tudo é complô.

A impostura é um fato básico da política. O político mente inclusive quando diz a verdade. A mentira é uma estratégia de conquista. De quê? Do poder.

Aquele que rasga suas roupas pelo complô do outro, na realidade queria ter o monopólio exclusivo da faculdade de tramar.

A lógica complocionista é necessariamente paranóica: tudo é poder, todos buscam o poder, a realidade é um efeito do poder. O manipulador – que trata tudo como objeto – só vê manipuladores por todos os lados.

Há um nó íntimo entre ficção e complô, entre complô e política. A literatura nos mostra isso. Robert Alt, Borges, Macedonio Fernández… A ficção nos torna menos crédulos, menos ingênuos, menos crentes.

A economia como super conspiração

Porém, hoje, o Estado só é, diz Piglia, um “lugar de passagem” no complô. Um meio, um trânsito, uma ponte. Para onde? A favor de que a política trama hoje? Por trás do complô estatal se traça o complô da economia.

A economia tem também seu relato legitimador para ingênuos: o relato liberal. O indivíduo guiado por seu próprio interesse, a competição justa, a oferta e a demanda que ajustam racionalmente os preços, a auto regulação, final feliz de tudo isso pela mão invisível do mercado.

E por baixo? As conversas telefônicas entre Gerard Piqué e Rubiales (1).

A economia é a guerra por outros meios. Violências conquistadoras, depredadoras, repressivas. Espionagem industrial e corrupção estrutural. Mentira e fraude. Manipulação dos preços e dos sujeitos. 

O “indivíduo racional” da economia, diz Piglia seguindo Burroughs, é na realidade um “viciado”: viciado no trabalho, viciado no consumo, viciado em todos os fetiches que compensam no mercado da amputação essencial do desejo.

O objetivo final do complô da economia é tornar impossível qualquer indicio de vida independente, eliminar toda distancia entre sujeitos e economia, qualquer outra fonte de desfrute e de riqueza social: bens comuns, relações e amizades, circulação não mercantil de objetos e favores.

“A economia é uma manipulação invisível e múltipla que amarra e ata os indivíduos e os conjuntos aos movimentos de dinheiro”.

Impotência da crítica

A crítica – nosso esporte nacional por excelência, esquecendo do futebol e do tênis – não muda nada. Poderíamos pensá-la inclusive como outra forma de compensação: um desabafo, um alivio, uma exibição de superioridade moral ou intelectual, uma forma de vício como qualquer outra.

O objetivo da crítica não é construir uma força alternativa, mas a “indignação moral”. A crítica denuncia a corrupção, a fraude, o delito político. Mas apenas reforça assim a ideia de que estamos enfrentando algumas anomalias, dentro de uma estrutura essencialmente boa, quando na realidade são o óleo da política e do negócio.

A crítica não muda o marco do relato dominante, se limita a por na picota(2) alguns de seus objetos, alguns de seus nomes. Distrai as energias, confunde e passiviza. É funcional ao complô de poder.

O problema de fundo é, como sempre, filosófico: vivemos metidos dentro de construções filosóficas muito antigas. O que chamamos “dura realidade” é a montagem que urdiram há milênios alguns filósofos conspiracionistas. O Estado Profundo não é os serviços secretos, mero efeito da superfície, mas sempre uma metafísica: uma concepção do mundo.

Quê filosofia nos governa? Desde Platão até a Ilustração, passando pelo cristianismo, o dualismo idealista: o corte entre o que há e o que deveria haver, entre o sensível e o inteligível, entre a lei e às forças. O idealismo condena todos os valores terrestres em nome dos princípios mais puros e abstratos: a Idéia, Deus, o Dinheiro e o Mercado autorregulado.

Esse dualismo explica nossos teatros cotidianos da política e da economia: para fora, a máscara da legalidade, a racionalidade, a transparência. Para dentro, todos os tráficos possíveis.

Não há empresa do país que trabalhe sem o caixa 2, simplesmente porque é impossível equilibrar as contas. Quanto mais burocracia, mais trapaças e mentiras. Quanto mais regulamentos, mais corrupção. Somos diariamente forçados à astúcia e à dissimulação simplesmente para poder sobreviver.

Finalmente, cada um tem dentro de si seu próprio caixa 2: os atos falhos, os lapsos, estes e os sintomas são ações de sabotagem do inconsciente conspirador contra o reinado ilusório do Eu.

Conspirar é respirar juntos

A crítica é moralista: condena o que há em nome do que deveria haver. Não sai do dualismo. Devemos passar da crítica ao contra complô

Estabeleçamos então uma distinção operativa entre complô e conspiração.

O complô quer o poder: o dominio dos outros. O que faz complô é o reflexo do Homem de Estado, sua sombra, seu Mr. Hyde. A conspiração busca o contrário, defender-se do poder. Conspirar significa respirar juntos, os que conspiram se dão ar uns aos outros contra a asfixia que produz o poder do negócio sobre a vida inteira. Não se limita a denunciar, mas sim, como diz Piglia, “tenta modificar relações de força e tem a fuga por condição”.

Faz-se complô por interesse. Por isso, os grupos que tramam complôs são tão frágeis, neles e entre eles reina a desconfiança e a paranóia, estão sempre à beira da traição, o interesse não constrói nenhum laço comum. Porém se conspira por amizade, entre pares, com os amigos; os grupos de afinidade do anarquismo são o melhor exemplo histórico.

O que faz complô pratica a hipocrisia: apela para o consenso, para a lei e para a transparência, mas exerce a intriga, a mentira e a trapaça. O conspirador dissimula: é cínico em suas relações com seus chefes, mas ético com seus pares. Todos nós conhecemos de primeira mão esta experiência da dissimulação, só temos que lhe dar valor, remover a má consciência, organizá-la.

O complô se disfarça com o relato. O relato fabrica crença: uma fé desajeitada no que se diz, desvinculada do que acontece. A crença na “democracia plena”, no “mercado perfeito”. A conspiração con-fabula: não se trata então de legitimar o existente, mas de criar uma nova realidade. Não se critica tal ou qual nome próprio, mas se muda o marco de referência.

A linguagem é amiga dos conspiradores, porque por ruim que seja para os adoradores da “comunicação” está cheia de mal-entendidos, de duplos sentidos, de lapsos.

A força do conspirador – carente de meios, de armas e de dinheiro – é sempre poética: transformar os marcos de percepção e de sensibilidade. Piglia põe o exemplo das vanguardas artísticas: pequenos grupos, indivíduos inclusive, que foram capazes de transformar as relações entre a arte e a vida. Seu poder de impacto era qualitativo e não quantitativo.

Ou pensemos mais perto de nós nos inicios do punk: encontros underground, corpos respirando e suando juntos, uma sociedade secreta onde se acumulou a energia suficiente para mudar mais tarde a vida de milhões de pessoas por todo o mundo e ao longo de décadas.

A conspiração sobrevive deixando de lado os grandes fetiches atuais da política: a comunicação, a opinião pública, as “maiorias”. Devemos partir das intensidades e não das grandes abstrações. Porém, atuar das sombras não significa constituir um gueto, mas dar-se o tempo e o espaço para construir novas amizades – relações não instrumentais – da autonomia.

Conspirar é confraternizar: encontrar-se, tratar-se, falar-se, caminha e imaginar juntos. Não há maior intensidade do que a de saber-se parte de uma conspiração benéfica. Entre iguais, entre pares, entre amigos.

Tudo o que circula por fora do mercado – favores, cumplicidades, relações e objetos – toma parte da conspiração. Tudo o que escapa ao mandato de produtividade e rendimento dentro e fora de nós mesmos – nossos prazeres e nossos fracassos – conspira.

Qual é o maior risco do conspirador? Sem dúvida, converter-se em trapaceiro (alguém que faz complô). Cair na paranóia do poder, querer tomar de assalto as instituições e acabar falando sua linguagem. Entrar na guerra no espelho pelo poder.

Nosso mundo é dual: diz paz e prepara a guerra, diz lei e trapaceia, diz consenso e provoca a discórdia, diz transparência e promove o engano, diz riqueza e é apenas negócio. Contra o dualismo, nossa duplicidade. Nossa dissimulação. Nossa conspiração.

Uma conspiração também metafísica, enfim, porque não dissocia (moralmente) entre o que há e o que deveria haver, mas que aprende a fazer (estrategicamente) com o que tem. E inventa assim uma racionalidade dos vicios, uma ética das forças, uma economia libidinal.


Referencias: 


– “Teoría del complot”, Ricardo Piglia, en Antología personal (Anagrama).
– Economía libidinal, Jean-François Lyotard, FCE.
– Manifeste conspirationniste, editorial Seuil. [Próxima aparición en la editorial Pepitas de Calabaza].
"Petit Manuel à l’usage des conspirant.es: stratagèmes des fraternisations” Ut Talpa (Lundi Matin)


NOTAS:
(1) O autor se refere a polêmica em que Gerard Piqué se pôs no centro na Espanha. Áudios vazados e publicadas pelo jornal 'El Confidencial' indicam que o zagueiro do Barcelona participou das negociações para o acerto entre a Federação Espanhola e o governo da Arábia Saudita para que Supercopa da Espanha fosse disputada no país.

(2) O termo picota, antigamente, se dizia de uma coluna de pedra ou tijolo que havia na entrada de alguns povoados e onde se expunham as cabeças dos executados, ou os presos, à vergonha pública.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal