PENSANDO NO FIM, por Franco "Bifo" Berardi

Imagem
[artigo de Franco 'Bifo' Berardi , publicado em CTXT , em 08/10/2024. Tradução: Haroldo Gomes] Todos os discursos que ouvimos hoje, em 2024, são discursos que preparam o extermínio mútuo. A liberdade dos seres humanos reside única e exclusivamente no fato de que eles falam e se expressam com sinais. Nessa esfera, e em nenhuma outra, eles são livres.  Nessa esfera, eles se emancipam dos desígnios de Deus e, ao mesmo tempo, se emancipam da tirania do particular, do pertencimento e da força bruta. O processo de civilização consistiu em submeter a brutalidade da energia à linguagem. A missão da modernidade era governar a brutalidade e submeter a natureza à linguagem. Aqui reside a vocação dos modernos, pelo menos nas suas intenções. Hoje sabemos que, deste ponto de vista, a modernidade falhou no seu propósito. Não quero dizer que a linguagem tenha saído de cena: pelo contrário, a linguagem acelerou o seu ritmo a ponto de proliferar para além dos limites das capacidades de processa

A política como complô


 
[Artigo de Amador Fernández-Savater publicado no Portal ctxt – contexto y acción, publicado em 7/5/2022. Tradução: Haroldo Gomes]

Nosso mundo é dual: diz a paz e prepara a guerra, diz a lei e trapaceia, diz consenso e provoca a discórdia, diz riqueza e é apenas negócio


Para Hugo, Chale, Vale e os amigos da oficinas das segundas-feiras, parceiros



Tem que se construir um complô contra o complô” (Ricardo Piglia)



Quem espiona quem? O governo espiona à oposição, a oposição se espiona entre si, ambos espionam à população, os serviços secretos espionam todos.

E se o Estado fosse uma grande maquinação, o lugar onde se entrecruzam uma multidão de complôs? É a tese desenvolvida por Ricardo Piglia em sua Teoria do complô: a intriga é o nó da política.

Para fora, o relato dominante – que é o relato dos que dominam – nos repete que a política democrática funciona pelo consenso, através da transparência, de acordo com uma série de regramentos e normas públicas. Porém, para dentro tudo é complô.

A impostura é um fato básico da política. O político mente inclusive quando diz a verdade. A mentira é uma estratégia de conquista. De quê? Do poder.

Aquele que rasga suas roupas pelo complô do outro, na realidade queria ter o monopólio exclusivo da faculdade de tramar.

A lógica complocionista é necessariamente paranóica: tudo é poder, todos buscam o poder, a realidade é um efeito do poder. O manipulador – que trata tudo como objeto – só vê manipuladores por todos os lados.

Há um nó íntimo entre ficção e complô, entre complô e política. A literatura nos mostra isso. Robert Alt, Borges, Macedonio Fernández… A ficção nos torna menos crédulos, menos ingênuos, menos crentes.

A economia como super conspiração

Porém, hoje, o Estado só é, diz Piglia, um “lugar de passagem” no complô. Um meio, um trânsito, uma ponte. Para onde? A favor de que a política trama hoje? Por trás do complô estatal se traça o complô da economia.

A economia tem também seu relato legitimador para ingênuos: o relato liberal. O indivíduo guiado por seu próprio interesse, a competição justa, a oferta e a demanda que ajustam racionalmente os preços, a auto regulação, final feliz de tudo isso pela mão invisível do mercado.

E por baixo? As conversas telefônicas entre Gerard Piqué e Rubiales (1).

A economia é a guerra por outros meios. Violências conquistadoras, depredadoras, repressivas. Espionagem industrial e corrupção estrutural. Mentira e fraude. Manipulação dos preços e dos sujeitos. 

O “indivíduo racional” da economia, diz Piglia seguindo Burroughs, é na realidade um “viciado”: viciado no trabalho, viciado no consumo, viciado em todos os fetiches que compensam no mercado da amputação essencial do desejo.

O objetivo final do complô da economia é tornar impossível qualquer indicio de vida independente, eliminar toda distancia entre sujeitos e economia, qualquer outra fonte de desfrute e de riqueza social: bens comuns, relações e amizades, circulação não mercantil de objetos e favores.

“A economia é uma manipulação invisível e múltipla que amarra e ata os indivíduos e os conjuntos aos movimentos de dinheiro”.

Impotência da crítica

A crítica – nosso esporte nacional por excelência, esquecendo do futebol e do tênis – não muda nada. Poderíamos pensá-la inclusive como outra forma de compensação: um desabafo, um alivio, uma exibição de superioridade moral ou intelectual, uma forma de vício como qualquer outra.

O objetivo da crítica não é construir uma força alternativa, mas a “indignação moral”. A crítica denuncia a corrupção, a fraude, o delito político. Mas apenas reforça assim a ideia de que estamos enfrentando algumas anomalias, dentro de uma estrutura essencialmente boa, quando na realidade são o óleo da política e do negócio.

A crítica não muda o marco do relato dominante, se limita a por na picota(2) alguns de seus objetos, alguns de seus nomes. Distrai as energias, confunde e passiviza. É funcional ao complô de poder.

O problema de fundo é, como sempre, filosófico: vivemos metidos dentro de construções filosóficas muito antigas. O que chamamos “dura realidade” é a montagem que urdiram há milênios alguns filósofos conspiracionistas. O Estado Profundo não é os serviços secretos, mero efeito da superfície, mas sempre uma metafísica: uma concepção do mundo.

Quê filosofia nos governa? Desde Platão até a Ilustração, passando pelo cristianismo, o dualismo idealista: o corte entre o que há e o que deveria haver, entre o sensível e o inteligível, entre a lei e às forças. O idealismo condena todos os valores terrestres em nome dos princípios mais puros e abstratos: a Idéia, Deus, o Dinheiro e o Mercado autorregulado.

Esse dualismo explica nossos teatros cotidianos da política e da economia: para fora, a máscara da legalidade, a racionalidade, a transparência. Para dentro, todos os tráficos possíveis.

Não há empresa do país que trabalhe sem o caixa 2, simplesmente porque é impossível equilibrar as contas. Quanto mais burocracia, mais trapaças e mentiras. Quanto mais regulamentos, mais corrupção. Somos diariamente forçados à astúcia e à dissimulação simplesmente para poder sobreviver.

Finalmente, cada um tem dentro de si seu próprio caixa 2: os atos falhos, os lapsos, estes e os sintomas são ações de sabotagem do inconsciente conspirador contra o reinado ilusório do Eu.

Conspirar é respirar juntos

A crítica é moralista: condena o que há em nome do que deveria haver. Não sai do dualismo. Devemos passar da crítica ao contra complô

Estabeleçamos então uma distinção operativa entre complô e conspiração.

O complô quer o poder: o dominio dos outros. O que faz complô é o reflexo do Homem de Estado, sua sombra, seu Mr. Hyde. A conspiração busca o contrário, defender-se do poder. Conspirar significa respirar juntos, os que conspiram se dão ar uns aos outros contra a asfixia que produz o poder do negócio sobre a vida inteira. Não se limita a denunciar, mas sim, como diz Piglia, “tenta modificar relações de força e tem a fuga por condição”.

Faz-se complô por interesse. Por isso, os grupos que tramam complôs são tão frágeis, neles e entre eles reina a desconfiança e a paranóia, estão sempre à beira da traição, o interesse não constrói nenhum laço comum. Porém se conspira por amizade, entre pares, com os amigos; os grupos de afinidade do anarquismo são o melhor exemplo histórico.

O que faz complô pratica a hipocrisia: apela para o consenso, para a lei e para a transparência, mas exerce a intriga, a mentira e a trapaça. O conspirador dissimula: é cínico em suas relações com seus chefes, mas ético com seus pares. Todos nós conhecemos de primeira mão esta experiência da dissimulação, só temos que lhe dar valor, remover a má consciência, organizá-la.

O complô se disfarça com o relato. O relato fabrica crença: uma fé desajeitada no que se diz, desvinculada do que acontece. A crença na “democracia plena”, no “mercado perfeito”. A conspiração con-fabula: não se trata então de legitimar o existente, mas de criar uma nova realidade. Não se critica tal ou qual nome próprio, mas se muda o marco de referência.

A linguagem é amiga dos conspiradores, porque por ruim que seja para os adoradores da “comunicação” está cheia de mal-entendidos, de duplos sentidos, de lapsos.

A força do conspirador – carente de meios, de armas e de dinheiro – é sempre poética: transformar os marcos de percepção e de sensibilidade. Piglia põe o exemplo das vanguardas artísticas: pequenos grupos, indivíduos inclusive, que foram capazes de transformar as relações entre a arte e a vida. Seu poder de impacto era qualitativo e não quantitativo.

Ou pensemos mais perto de nós nos inicios do punk: encontros underground, corpos respirando e suando juntos, uma sociedade secreta onde se acumulou a energia suficiente para mudar mais tarde a vida de milhões de pessoas por todo o mundo e ao longo de décadas.

A conspiração sobrevive deixando de lado os grandes fetiches atuais da política: a comunicação, a opinião pública, as “maiorias”. Devemos partir das intensidades e não das grandes abstrações. Porém, atuar das sombras não significa constituir um gueto, mas dar-se o tempo e o espaço para construir novas amizades – relações não instrumentais – da autonomia.

Conspirar é confraternizar: encontrar-se, tratar-se, falar-se, caminha e imaginar juntos. Não há maior intensidade do que a de saber-se parte de uma conspiração benéfica. Entre iguais, entre pares, entre amigos.

Tudo o que circula por fora do mercado – favores, cumplicidades, relações e objetos – toma parte da conspiração. Tudo o que escapa ao mandato de produtividade e rendimento dentro e fora de nós mesmos – nossos prazeres e nossos fracassos – conspira.

Qual é o maior risco do conspirador? Sem dúvida, converter-se em trapaceiro (alguém que faz complô). Cair na paranóia do poder, querer tomar de assalto as instituições e acabar falando sua linguagem. Entrar na guerra no espelho pelo poder.

Nosso mundo é dual: diz paz e prepara a guerra, diz lei e trapaceia, diz consenso e provoca a discórdia, diz transparência e promove o engano, diz riqueza e é apenas negócio. Contra o dualismo, nossa duplicidade. Nossa dissimulação. Nossa conspiração.

Uma conspiração também metafísica, enfim, porque não dissocia (moralmente) entre o que há e o que deveria haver, mas que aprende a fazer (estrategicamente) com o que tem. E inventa assim uma racionalidade dos vicios, uma ética das forças, uma economia libidinal.


Referencias: 


– “Teoría del complot”, Ricardo Piglia, en Antología personal (Anagrama).
– Economía libidinal, Jean-François Lyotard, FCE.
– Manifeste conspirationniste, editorial Seuil. [Próxima aparición en la editorial Pepitas de Calabaza].
"Petit Manuel à l’usage des conspirant.es: stratagèmes des fraternisations” Ut Talpa (Lundi Matin)


NOTAS:
(1) O autor se refere a polêmica em que Gerard Piqué se pôs no centro na Espanha. Áudios vazados e publicadas pelo jornal 'El Confidencial' indicam que o zagueiro do Barcelona participou das negociações para o acerto entre a Federação Espanhola e o governo da Arábia Saudita para que Supercopa da Espanha fosse disputada no país.

(2) O termo picota, antigamente, se dizia de uma coluna de pedra ou tijolo que havia na entrada de alguns povoados e onde se expunham as cabeças dos executados, ou os presos, à vergonha pública.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma década esquizofrênica

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo