Quem espiona quem? O governo espiona à oposição, a oposição se espiona entre si, ambos espionam à população, os serviços secretos espionam todos.
E se o Estado fosse uma grande maquinação, o lugar onde se entrecruzam uma multidão de complôs? É a tese desenvolvida por Ricardo Piglia em sua Teoria do complô: a intriga é o nó da política.
Para fora, o relato dominante – que é o relato dos que dominam – nos repete que a política democrática funciona pelo consenso, através da transparência, de acordo com uma série de regramentos e normas públicas. Porém, para dentro tudo é complô.
A impostura é um fato básico da política. O político mente inclusive quando diz a verdade. A mentira é uma estratégia de conquista. De quê? Do poder.
Aquele que rasga suas roupas pelo complô do outro, na realidade queria ter o monopólio exclusivo da faculdade de tramar.
A lógica complocionista é necessariamente paranóica: tudo é poder, todos buscam o poder, a realidade é um efeito do poder. O manipulador – que trata tudo como objeto – só vê manipuladores por todos os lados.
Há um nó íntimo entre ficção e complô, entre complô e política. A literatura nos mostra isso. Robert Alt, Borges, Macedonio Fernández… A ficção nos torna menos crédulos, menos ingênuos, menos crentes.
A economia como super conspiração
Porém, hoje, o Estado só é, diz Piglia, um “lugar de passagem” no complô. Um meio, um trânsito, uma ponte. Para onde? A favor de que a política trama hoje? Por trás do complô estatal se traça o complô da economia.
A economia tem também seu relato legitimador para ingênuos: o relato liberal. O indivíduo guiado por seu próprio interesse, a competição justa, a oferta e a demanda que ajustam racionalmente os preços, a auto regulação, final feliz de tudo isso pela mão invisível do mercado.
E por baixo? As conversas telefônicas entre Gerard Piqué e Rubiales (1).
A economia é a guerra por outros meios. Violências conquistadoras, depredadoras, repressivas. Espionagem industrial e corrupção estrutural. Mentira e fraude. Manipulação dos preços e dos sujeitos.
O “indivíduo racional” da economia, diz Piglia seguindo Burroughs, é na realidade um “viciado”: viciado no trabalho, viciado no consumo, viciado em todos os fetiches que compensam no mercado da amputação essencial do desejo.
O objetivo final do complô da economia é tornar impossível qualquer indicio de vida independente, eliminar toda distancia entre sujeitos e economia, qualquer outra fonte de desfrute e de riqueza social: bens comuns, relações e amizades, circulação não mercantil de objetos e favores.
“A economia é uma manipulação invisível e múltipla que amarra e ata os indivíduos e os conjuntos aos movimentos de dinheiro”.
Impotência da crítica
A crítica – nosso esporte nacional por excelência, esquecendo do futebol e do tênis – não muda nada. Poderíamos pensá-la inclusive como outra forma de compensação: um desabafo, um alivio, uma exibição de superioridade moral ou intelectual, uma forma de vício como qualquer outra.
O objetivo da crítica não é construir uma força alternativa, mas a “indignação moral”. A crítica denuncia a corrupção, a fraude, o delito político. Mas apenas reforça assim a ideia de que estamos enfrentando algumas anomalias, dentro de uma estrutura essencialmente boa, quando na realidade são o óleo da política e do negócio.
A crítica não muda o marco do relato dominante, se limita a por na picota(2) alguns de seus objetos, alguns de seus nomes. Distrai as energias, confunde e passiviza. É funcional ao complô de poder.
O problema de fundo é, como sempre, filosófico: vivemos metidos dentro de construções filosóficas muito antigas. O que chamamos “dura realidade” é a montagem que urdiram há milênios alguns filósofos conspiracionistas. O Estado Profundo não é os serviços secretos, mero efeito da superfície, mas sempre uma metafísica: uma concepção do mundo.
Quê filosofia nos governa? Desde Platão até a Ilustração, passando pelo cristianismo, o dualismo idealista: o corte entre o que há e o que deveria haver, entre o sensível e o inteligível, entre a lei e às forças. O idealismo condena todos os valores terrestres em nome dos princípios mais puros e abstratos: a Idéia, Deus, o Dinheiro e o Mercado autorregulado.
Esse dualismo explica nossos teatros cotidianos da política e da economia: para fora, a máscara da legalidade, a racionalidade, a transparência. Para dentro, todos os tráficos possíveis.
Não há empresa do país que trabalhe sem o caixa 2, simplesmente porque é impossível equilibrar as contas. Quanto mais burocracia, mais trapaças e mentiras. Quanto mais regulamentos, mais corrupção. Somos diariamente forçados à astúcia e à dissimulação simplesmente para poder sobreviver.
Finalmente, cada um tem dentro de si seu próprio caixa 2: os atos falhos, os lapsos, estes e os sintomas são ações de sabotagem do inconsciente conspirador contra o reinado ilusório do Eu.
A crítica é moralista: condena o que há em nome do que deveria haver. Não sai do dualismo. Devemos passar da crítica ao contra complô
Estabeleçamos então uma distinção operativa entre complô e conspiração.
O complô quer o poder: o dominio dos outros. O que faz complô é o reflexo do Homem de Estado, sua sombra, seu Mr. Hyde. A conspiração busca o contrário, defender-se do poder. Conspirar significa respirar juntos, os que conspiram se dão ar uns aos outros contra a asfixia que produz o poder do negócio sobre a vida inteira. Não se limita a denunciar, mas sim, como diz Piglia, “tenta modificar relações de força e tem a fuga por condição”.
Faz-se complô por interesse. Por isso, os grupos que tramam complôs são tão frágeis, neles e entre eles reina a desconfiança e a paranóia, estão sempre à beira da traição, o interesse não constrói nenhum laço comum. Porém se conspira por amizade, entre pares, com os amigos; os grupos de afinidade do anarquismo são o melhor exemplo histórico.
O que faz complô pratica a hipocrisia: apela para o consenso, para a lei e para a transparência, mas exerce a intriga, a mentira e a trapaça. O conspirador dissimula: é cínico em suas relações com seus chefes, mas ético com seus pares. Todos nós conhecemos de primeira mão esta experiência da dissimulação, só temos que lhe dar valor, remover a má consciência, organizá-la.
O complô se disfarça com o relato. O relato fabrica crença: uma fé desajeitada no que se diz, desvinculada do que acontece. A crença na “democracia plena”, no “mercado perfeito”. A conspiração con-fabula: não se trata então de legitimar o existente, mas de criar uma nova realidade. Não se critica tal ou qual nome próprio, mas se muda o marco de referência.
A linguagem é amiga dos conspiradores, porque por ruim que seja para os adoradores da “comunicação” está cheia de mal-entendidos, de duplos sentidos, de lapsos.
A força do conspirador – carente de meios, de armas e de dinheiro – é sempre poética: transformar os marcos de percepção e de sensibilidade. Piglia põe o exemplo das vanguardas artísticas: pequenos grupos, indivíduos inclusive, que foram capazes de transformar as relações entre a arte e a vida. Seu poder de impacto era qualitativo e não quantitativo.
Ou pensemos mais perto de nós nos inicios do punk: encontros underground, corpos respirando e suando juntos, uma sociedade secreta onde se acumulou a energia suficiente para mudar mais tarde a vida de milhões de pessoas por todo o mundo e ao longo de décadas.
A conspiração sobrevive deixando de lado os grandes fetiches atuais da política: a comunicação, a opinião pública, as “maiorias”. Devemos partir das intensidades e não das grandes abstrações. Porém, atuar das sombras não significa constituir um gueto, mas dar-se o tempo e o espaço para construir novas amizades – relações não instrumentais – da autonomia.
Conspirar é confraternizar: encontrar-se, tratar-se, falar-se, caminha e imaginar juntos. Não há maior intensidade do que a de saber-se parte de uma conspiração benéfica. Entre iguais, entre pares, entre amigos.
Tudo o que circula por fora do mercado – favores, cumplicidades, relações e objetos – toma parte da conspiração. Tudo o que escapa ao mandato de produtividade e rendimento dentro e fora de nós mesmos – nossos prazeres e nossos fracassos – conspira.
Qual é o maior risco do conspirador? Sem dúvida, converter-se em trapaceiro (alguém que faz complô). Cair na paranóia do poder, querer tomar de assalto as instituições e acabar falando sua linguagem. Entrar na guerra no espelho pelo poder.
Nosso mundo é dual: diz paz e prepara a guerra, diz lei e trapaceia, diz consenso e provoca a discórdia, diz transparência e promove o engano, diz riqueza e é apenas negócio. Contra o dualismo, nossa duplicidade. Nossa dissimulação. Nossa conspiração.
Uma conspiração também metafísica, enfim, porque não dissocia (moralmente) entre o que há e o que deveria haver, mas que aprende a fazer (estrategicamente) com o que tem. E inventa assim uma racionalidade dos vicios, uma ética das forças, uma economia libidinal.
NOTAS:
(1) O autor se refere a polêmica em que Gerard Piqué se pôs no centro na Espanha. Áudios vazados e publicadas pelo jornal 'El Confidencial' indicam que o zagueiro do Barcelona participou das negociações para o acerto entre a Federação Espanhola e o governo da Arábia Saudita para que Supercopa da Espanha fosse disputada no país.
(2) O termo picota, antigamente, se dizia de uma coluna de pedra ou tijolo que havia na entrada de alguns povoados e onde se expunham as cabeças dos executados, ou os presos, à vergonha pública.
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