Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Vivência e experiência na crise do coronavírus



Artigo de Amador Fernández-Savater publicado no site espanhol Filosofía Pirata, em 1/4/2020. Tradução: Vapor ao Vento.
Durante uma conversa pela manhã por whatsapp, um amigo disse: “isso é o mais profundo coletivamente que nos aconteceu em várias gerações”.
Trocamos mais algumas mensagens a partir dessa afirmação. Eu questiono a noção de experiência: é o que acontece conosco ou algo mais? E questiono também a noção de coletivo: é o que nos acontece a todos ao mesmo tempo ou outra coisa?
A resposta fica no ar, como tantas coisas hoje. Meu amigo tem que atender a sua mãe em casa. Eu, com menos obrigações, decido aproveitar o tempo suspenso para seguir deduzindo sobre as perguntas que abrimos juntos.
Recorro a outro amigo, um daqueles que você não conhece mais do que através dos livros mas que às vezes faz mais companhia do que tantos que vivem perto: o pensador argentino Ignacio Lewkowicz. Busco nele não tanto respostas como bons termos para apresentar a pergunta, melhores ferramentas para ouvir e atender a realidade. Soa para mim que Ignacio tem coisas sobre essa questão, vasculho a biblioteca e dou com isso.
No livro Del fragmento a la situación, que Ignacio escreveu com Mariana Cantarelli e o Grupo Doce, pode-se ler que “ter uma experiência é fazer algo com o que faz você”. Haveria então uma distinção entre, digamos, vivência e experiência. Uma diferença certamente com seu ponto de abstração, porque na realidade está tudo muito misturado, porém que pode nos ajudar a pensar e refinar a percepção.
Vivência é o que nos acontece, a impressão ou o reflexo em nós do que se passa. Vivência coletiva é aquilo que nos acontece a todos juntos ou ao mesmo tempo. Porém, uma experiência seria diferente: não só uma impressão que reflete o que acontece, mas mais uma marca que nós inscrevemos, como uma tatuagem. Produzir essa marca através de algum tipo de “nós” seria uma experiência coletiva.
Essa situação de crise pelo coronavírus é, pois, uma vivência ou uma experiência? Ou seja, somos contemporâneos de algo ou estamos “fazendo algo a partir do que isso nos faz”? É uma situação que padecemos ou uma situação que conseguimos elaborar com os próprios sentidos, habitar?
Não vou ao mercado do bairro até as 11h – sempre vazio, ao contrário do supermercado, por quê? – então sigo pensando um pouco mais com Lewkowicz.
Encontro no mesmo livro outro jogo conceitual que pode nos levar mais longe ainda: a distinção entre “subjetividade instituída”, “avesso subjetivo” e “subjetivação”, tomando a subjetividade em seu sentido mais geral e sensível: maneiras de ver, de viver, de atuar, de sentir e de pensar.
A subjetividade instituída é a série de operações que devemos fazer para constituir parte de uma certa lógica, a série de comportamentos obrigados para nos adaptar a uma situação. Subjetividade instituída = adequação.
O avesso subjetivo é a distância, o oco ou o buraco que se abre entre a norma e nós: dúvidas, mal-estar, perguntas, tudo aquilo que em nós não encaixa, não fecha perfeitamente e de alguma forma não se deixa governar. A subjetividade instituída não é total, nem acabada e perfeita, sempre tem um “resto”. O avesso subjetivo = inadequação.
A subjetivação é equivalente ao que antes nomeávamos como “fazer experiência”: uma reapropriação subjetiva de um dado objetivo; não só sofre o que acontece, mas mudar a maneira de nos relacionar com o que está acontecendo. É um excesso, um plus, um transbordamento da subjetividade instituída. A subjetivação abre um tempo-espaço diferente do obrigatório, inventa outros passeios, abre outros possíveis. Subjetivação = transformação.
A subjetivação coletiva é um processo de transformação da situação objetiva – dada, inalterável, fechada – em situação habitável, modificável, resignificável. Através da aparição de um “nós”, um espaço aberto de participação, uma certa comunidade. O nós de uma “geração”, dizem Lewkowicz e o resto dos amigos de pensamento. Logo voltamos sobre isso.
Conversa com minha mãe e com amigos: minha mãe, pessoa de alto risco em zona de alto risco, está tranquila e serena; os amigos, aos quais o perigo toca ainda, em geral, andam muito nervosos. Partilho conselhos de impassibilidade estóica como se fosse Marco Aurélio – viver o presente sem projeções, nos preocupar só com o que está ao alcance de nossas mãos, trabalhar sobre nossa própria interpretação do que acontece –, porém, na realidade, a procissão vai para dentro.
Então, estamos diante de uma experiência coletiva? Leio na imprensa (há tempo até para ler El País…) dois intelectuais falar sobre isso.
O escritor Antonio Scurati disse que sim, que de fato é a primeira experiência coletiva dos nascidos no inicio dos anos 70, a primeira vez que podem experimentar a sensação de pertencimento a um destino. Porém, encerra seu artigo celebrando “a decisão política que transformou a Itália inteira numa zona vermelha contra a arbitrariedade das pessoas, seu pânico e irresponsabilidade”. Não parece muito claro de que “comunidade política” se trata então, simplesmente a de assentir passivamente a decisão de um governo (seja certa ou não)? A experiência da obediência, da comunidade dos obedientes? Não me parece muito convincente.
O ensaísta Byung Chu-Han diz que não, porque a situação que vivemos “nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentido de coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa só com a sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em manter distância não é uma solidariedade que permita sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa”. Han parece pensar que a situação objetiva não permite nenhum tipo de apropriação subjetiva ou de transformação, é uma pura determinação e em nenhum caso uma condição que permita a ação. Tampouco me convence.
Eu de minha parte, diria: não se sabe. Estamos num processo aberto que se trata de ouvir e no qual se pode intervir.
Porém, o que me parece seguro é que a zona do “avesso subjetivo” está hoje muito povoada. E é justamente aí onde pode nascer o imprevisto político.
Um pouco de exercício, limpeza, leitura… Não vou entrar em colapso por passar umas semanas fechado numa casa equipada com todo o conforto moderno! Penso nas histórias inspiradoras que me dão ânimo, valor e exemplo. Gramsci no cárcere! A leitura e a escritura como forma de vida, como forma de habitar criativamente o tempo suspenso, como disciplina da atenção. Contra a dispersão, o desânimo, a entropia…
Em que sentido dizemos que o avesso subjetivo, hoje, é uma zona muito povoada?
As medidas de exceção decretadas supõem uma interrupção radical do sentido da vida cotidiana: o trabalho, as crianças, os vínculos, as logísticas cotidianas, os cuidados, a mobilidade… Estamos enfrentando, abruptamente, mil novas situações. É possível tentar seguir uma série de instruções e realizar as operações que permitem nos adequar à situação, porém, na realidade, porém, dúvidas estão por toda parte, problemas, perguntas, fissuras. Não nos encaixamos. As singularidades das formas de vida – condições, contextos, inclinações – não encaixam na norma universal homogênea decretada. Em cada uma dessas perguntas e dúvidas que se abrem – como lidar com os meus? Como não perder a cabeça? Como entender autonomamente o que acontece? Como fazer algo sobre isso? - se decide uma forma de vida, se vislumbra um mundo. O ínfimo é de novo o mais político. Um exemplo entre um milhão. Amigas mães, amigos pais, educadores com os quais falo esses dias me transmitem essa pergunta: o que fazer com as crianças em casa? Como não lhes preencher simplesmente o tempo vago? Como lhes explicar o que está acontecendo e lhes fazer entender? É possível “comprar” as respostas prontamente – uma lista infinita de tarefas ou deveres online, o relato de guerra contra o vírus malvado que dobrou o governo –, mas talvez nem sequer possamos suportar os custos dessa opção ou simplesmente não nos convença. Então? Você tem que pensar e inventar porque o que é dado não é suficiente. Todo mundo está pensando e inventando hoje, embora que o que mais circule como “pensamento” sejam artigos de opinião associados a nomes conhecidos.
Perguntas, buracos, fissuras: o “avesso subjetivo” está hoje mais cheio do que nunca. Nem sequer a obediência é óbvia por esses dias. Não obedecemos só porque o governo ou a polícia mandam, mas ouvimos também o apelo dos trabalhadores da saúde para que fiquemos em casa para não multiplicar o contágio, para não por em perigo o sistema de saúde e à atenção aos mais vulneráveis. Sem dúvida, os trabalhadores da saúde são, estes dias, o polo de identificação sensível mais forte, a voz mais confiável, seguramente porque estão pondo o corpo ao extremo, com a vida a descoberto.
A subjetividade instituída hesita. A zona de inadequação se amplia. No avesso, fervem os desconfortos, mas também mil práticas – abertas ou clandestinas, grandes ou pequenas – que “fazem com o que nos faz”: práticas de cuidado, de apoio mútuo, de autoorganização, de sobrevivência, etc. Nesse avesso está o húmus de uma possível subjetivação coletiva ou de uma “politização” da crise, se se quer falar outra linguagem. Como o 13M de 2004 se “politizou” a situação criada pela gestão mentirosa que o PP do ataque de Atocha fez, como o 15M de 2011 se “politizou” a situação criada pela gestão neoliberal da crise econômica pelo PSOE: desafiando e transbordando os sentidos estabelecidos, transformando as maneiras de ver e sentir, alterando os nomes e as descrições propostas acima (“Quem foi? Queremos a verdade”, “Não é uma crise, é um calote”, etc).
Ouço gritos na rua e olho, alguém repreende a um caminhante da varanda. Uma pequena briga surge. São a seu modo os “policiais das varandas” um processo de subjetivação mesmo que “obscuro”? Não creio. Em vez disso, parecem mais o lado B do relato de guerra que o governo do PSOE se esforçou em implantar, uma espécie de plus subjetivo ao discurso da mobilização contra o vírus (olhos nos desertores, nos maus soldados…). Não vejo dúvidas, não vejo perguntas, não vejo avesso subjetivo, não vejo invenção.
Por último, a questão geracional. Segúndo Lewkowicz, uma geração não é uma questão cronológica, mas um nós que se cria a partir de um problema. Que se apropria de um dado objetivo e o converte numa situação habitável: alterável, resignificável, modificável. Um nós, ou seja, não um público votante, de espectadores ou de consumidores, mas uma força coletiva, uma superfície sensível, uma nova pele. Um nós que não preexiste a suas operações, mas que se configure através delas. E que pode incluir portanto, talvez paradoxalmente, as pessoas de diferentes idades. A quem se sinta interpelado por essa criação de experiência.
Scurati pensa a geração como uma espécie de padecimento coletivo de uma “boa decisão”, a gestão do governo italiano diante da “irresponsabilidade das pessoas”.
Han pensa que nenhum nós pode surgir daqui porque a situação que vivemos está fechada, enclausurada. Não há forma de “fazer experiência” nela. Só cabe a obediência: isolamento e passividade.
Habitar a situação seria, ao contrário, produzir um excesso: uma criação de sentido mais além dos sentidos impostos (do relato da guerra, por exemplo). Um sentido que não é só “significado discursivo”, mas que se fixa no sentido, nos sentidos. Essa criação de sentido é imprevisível, não se pode antecipar. Não se pode conhecer de antemão seu conteúdo, a natureza de suas perguntas, seus modos de organização, suas estratégias e objetivos. O processo de subjetivação é sempre uma surpresa. Podemos, isso sim, não nos limitar a denunciar o poder e seus abusos, mas estar também à escuta e atentos a esse avesso da experiência.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal