Artigo de Amador Fernández-Savater
publicado no site espanhol Filosofía Pirata, em 1/4/2020.
Tradução: Vapor ao Vento.
Durante uma conversa pela manhã por whatsapp,
um amigo disse: “isso é o mais profundo coletivamente que nos
aconteceu em várias gerações”.
Trocamos mais algumas mensagens a partir dessa
afirmação. Eu questiono a noção de experiência: é o que
acontece conosco ou algo mais? E questiono também a noção de
coletivo: é o que nos acontece a todos ao mesmo tempo ou outra
coisa?
A resposta fica no ar, como tantas coisas
hoje. Meu amigo tem que atender a sua mãe em casa. Eu, com menos
obrigações, decido aproveitar o tempo suspenso para seguir
deduzindo sobre as perguntas que abrimos juntos.
Recorro a outro amigo, um daqueles que você
não conhece mais do que através dos livros mas que às vezes faz
mais companhia do que tantos que vivem perto: o pensador argentino
Ignacio Lewkowicz. Busco nele não tanto respostas como bons termos
para apresentar a pergunta, melhores ferramentas para ouvir e atender
a realidade. Soa para mim que Ignacio tem coisas sobre essa questão,
vasculho a biblioteca e dou com isso.
No livro Del fragmento a la situación,
que Ignacio escreveu com Mariana Cantarelli e o Grupo Doce, pode-se
ler que “ter uma experiência é fazer algo com o que faz você”.
Haveria então uma distinção entre, digamos, vivência e
experiência. Uma diferença certamente com seu ponto de abstração,
porque na realidade está tudo muito misturado, porém que pode nos
ajudar a pensar e refinar a percepção.
Vivência é o que nos acontece, a impressão
ou o reflexo em nós do que se passa. Vivência coletiva é aquilo
que nos acontece a todos juntos ou ao mesmo tempo. Porém, uma
experiência seria diferente: não só uma impressão que reflete o
que acontece, mas mais uma marca que nós inscrevemos, como uma
tatuagem. Produzir essa marca através de algum tipo de “nós”
seria uma experiência coletiva.
Essa situação de crise pelo coronavírus é,
pois, uma vivência ou uma experiência? Ou seja, somos
contemporâneos de algo ou estamos “fazendo algo a partir do que
isso nos faz”? É uma situação que padecemos ou uma situação
que conseguimos elaborar com os próprios sentidos, habitar?
Não vou ao mercado do bairro até as 11h –
sempre vazio, ao contrário do supermercado, por quê? – então
sigo pensando um pouco mais com Lewkowicz.
Encontro no mesmo livro outro jogo conceitual
que pode nos levar mais longe ainda: a distinção entre
“subjetividade instituída”, “avesso subjetivo” e
“subjetivação”, tomando a subjetividade em seu sentido mais
geral e sensível: maneiras de ver, de viver, de atuar, de sentir e
de pensar.
A subjetividade instituída é a série de
operações que devemos fazer para constituir parte de uma certa
lógica, a série de comportamentos obrigados para nos adaptar a uma
situação. Subjetividade instituída = adequação.
O avesso subjetivo é a distância, o oco ou o
buraco que se abre entre a norma e nós: dúvidas, mal-estar,
perguntas, tudo aquilo que em nós não encaixa, não fecha
perfeitamente e de alguma forma não se deixa governar. A
subjetividade instituída não é total, nem acabada e perfeita,
sempre tem um “resto”. O avesso subjetivo = inadequação.
A subjetivação é equivalente ao que antes
nomeávamos como “fazer experiência”: uma reapropriação
subjetiva de um dado objetivo; não só sofre o que acontece, mas
mudar a maneira de nos relacionar com o que está acontecendo. É um
excesso, um plus, um transbordamento da subjetividade instituída. A
subjetivação abre um tempo-espaço diferente do obrigatório,
inventa outros passeios, abre outros possíveis. Subjetivação =
transformação.
A subjetivação coletiva é um processo de
transformação da situação objetiva – dada, inalterável,
fechada – em situação habitável, modificável, resignificável.
Através da aparição de um “nós”, um espaço aberto de
participação, uma certa comunidade. O nós de uma “geração”,
dizem Lewkowicz e o resto dos amigos de pensamento. Logo voltamos
sobre isso.
Conversa com minha mãe e com amigos: minha
mãe, pessoa de alto risco em zona de alto risco, está tranquila e
serena; os amigos, aos quais o perigo toca ainda, em geral, andam
muito nervosos. Partilho conselhos de impassibilidade estóica como
se fosse Marco Aurélio – viver o presente sem projeções, nos
preocupar só com o que está ao alcance de nossas mãos, trabalhar
sobre nossa própria interpretação do que acontece –, porém, na
realidade, a procissão vai para dentro.
Então, estamos diante de uma experiência
coletiva? Leio na imprensa (há tempo até para ler El País…)
dois intelectuais falar sobre isso.
O escritor Antonio Scurati disse que sim, que
de fato é a primeira experiência coletiva dos nascidos no inicio
dos anos 70, a primeira vez que podem experimentar a sensação de
pertencimento a um destino. Porém, encerra seu artigo celebrando “a
decisão política que transformou a Itália inteira numa zona
vermelha contra a arbitrariedade das pessoas, seu pânico e
irresponsabilidade”. Não parece muito claro de que “comunidade
política” se trata então, simplesmente a de assentir passivamente
a decisão de um governo (seja certa ou não)? A experiência da
obediência, da comunidade dos obedientes? Não me parece muito
convincente.
O ensaísta Byung Chu-Han diz que não, porque
a situação que vivemos “nos isola e individualiza. Não gera
nenhum sentido de coletivo forte. De alguma maneira, cada um se
preocupa só com a sua própria sobrevivência. A solidariedade que
consiste em manter distância não é uma solidariedade que permita
sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa”.
Han parece pensar que a situação objetiva não permite nenhum tipo
de apropriação subjetiva ou de transformação, é uma pura
determinação e em nenhum caso uma condição que permita a ação.
Tampouco me convence.
Eu de minha parte, diria: não se sabe.
Estamos num processo aberto que se trata de ouvir e no qual se pode
intervir.
Porém, o que me parece seguro é que a zona do
“avesso subjetivo” está hoje muito povoada. E é justamente aí
onde pode nascer o imprevisto político.
Um pouco de exercício, limpeza, leitura…
Não vou entrar em colapso por passar umas semanas fechado numa casa
equipada com todo o conforto moderno! Penso nas histórias
inspiradoras que me dão ânimo, valor e exemplo. Gramsci no cárcere!
A leitura e a escritura como forma de vida, como forma de habitar
criativamente o tempo suspenso, como disciplina da atenção. Contra
a dispersão, o desânimo, a entropia…
Em que sentido dizemos que o avesso subjetivo,
hoje, é uma zona muito povoada?
As medidas de exceção decretadas supõem uma
interrupção radical do sentido da vida cotidiana: o trabalho, as
crianças, os vínculos, as logísticas cotidianas, os cuidados, a
mobilidade… Estamos enfrentando, abruptamente, mil novas situações.
É possível tentar seguir uma série de instruções e realizar as
operações que permitem nos adequar à situação, porém, na
realidade, porém, dúvidas estão por toda parte, problemas,
perguntas, fissuras. Não nos encaixamos. As singularidades
das formas de vida – condições, contextos, inclinações – não
encaixam na norma universal homogênea decretada. Em cada uma dessas
perguntas e dúvidas que se abrem – como lidar com os meus? Como
não perder a cabeça? Como entender autonomamente o que acontece?
Como fazer algo sobre isso? - se decide uma forma de vida, se
vislumbra um mundo. O ínfimo é de novo o mais político. Um exemplo
entre um milhão. Amigas mães, amigos pais, educadores com os quais
falo esses dias me transmitem essa pergunta: o que fazer com as
crianças em casa? Como não lhes preencher simplesmente o tempo
vago? Como lhes explicar o que está acontecendo e lhes fazer
entender? É possível “comprar” as respostas prontamente – uma
lista infinita de tarefas ou deveres online, o relato de guerra
contra o vírus malvado que dobrou o governo –, mas talvez nem
sequer possamos suportar os custos dessa opção ou simplesmente não
nos convença. Então? Você tem que pensar e inventar porque o que é
dado não é suficiente. Todo mundo está pensando e inventando hoje,
embora que o que mais circule como “pensamento” sejam artigos de
opinião associados a nomes conhecidos.
Perguntas, buracos, fissuras: o “avesso
subjetivo” está hoje mais cheio do que nunca. Nem sequer a
obediência é óbvia por esses dias. Não obedecemos só
porque o governo ou a polícia mandam, mas ouvimos também o apelo
dos trabalhadores da saúde para que fiquemos em casa para não
multiplicar o contágio, para não por em perigo o sistema de saúde
e à atenção aos mais vulneráveis. Sem dúvida, os trabalhadores
da saúde são, estes dias, o polo de identificação sensível mais
forte, a voz mais confiável, seguramente porque estão pondo o corpo
ao extremo, com a vida a descoberto.
A subjetividade instituída hesita. A zona de
inadequação se amplia. No avesso, fervem os desconfortos, mas
também mil práticas – abertas ou clandestinas, grandes ou
pequenas – que “fazem com o que nos faz”: práticas de cuidado,
de apoio mútuo, de autoorganização, de sobrevivência, etc. Nesse
avesso está o húmus de uma possível subjetivação coletiva ou de
uma “politização” da crise, se se quer falar outra linguagem.
Como o 13M de 2004 se “politizou” a situação criada pela gestão
mentirosa que o PP do ataque de Atocha fez, como o 15M de 2011 se
“politizou” a situação criada pela gestão neoliberal da crise
econômica pelo PSOE: desafiando e transbordando os sentidos
estabelecidos, transformando as maneiras de ver e sentir, alterando
os nomes e as descrições propostas acima (“Quem foi? Queremos a
verdade”, “Não é uma crise, é um calote”, etc).
Ouço gritos na rua e olho, alguém
repreende a um caminhante da varanda. Uma pequena briga surge. São
a seu modo os “policiais das varandas” um processo de
subjetivação mesmo que “obscuro”? Não creio. Em vez disso,
parecem mais o lado B do relato de guerra que o governo do PSOE se
esforçou em implantar, uma espécie de plus subjetivo ao discurso
da mobilização contra o vírus (olhos nos desertores, nos maus
soldados…). Não vejo dúvidas, não vejo perguntas, não vejo
avesso subjetivo, não vejo invenção.
Por último, a questão geracional. Segúndo
Lewkowicz, uma geração não é uma questão cronológica, mas um
nós que se cria a partir de um problema. Que se apropria de um dado
objetivo e o converte numa situação habitável: alterável,
resignificável, modificável. Um nós, ou seja, não um público
votante, de espectadores ou de consumidores, mas uma força coletiva,
uma superfície sensível, uma nova pele. Um nós que não preexiste
a suas operações, mas que se configure através delas. E que pode
incluir portanto, talvez paradoxalmente, as pessoas de diferentes
idades. A quem se sinta interpelado por essa criação de
experiência.
Scurati pensa a geração como uma espécie de
padecimento coletivo de uma “boa decisão”, a gestão do governo
italiano diante da “irresponsabilidade das pessoas”.
Han pensa que nenhum nós pode surgir daqui
porque a situação que vivemos está fechada, enclausurada. Não há
forma de “fazer experiência” nela. Só cabe a obediência:
isolamento e passividade.
Habitar a situação
seria, ao contrário, produzir um excesso: uma criação de sentido
mais além dos sentidos impostos (do relato da guerra, por exemplo).
Um sentido que não é só “significado discursivo”, mas que se
fixa no sentido,
nos sentidos. Essa criação de sentido é imprevisível, não se
pode antecipar. Não se pode conhecer de antemão seu conteúdo, a
natureza de suas perguntas, seus modos de organização, suas
estratégias e objetivos. O processo de subjetivação é sempre uma
surpresa. Podemos, isso sim, não nos limitar a denunciar o poder e
seus abusos, mas estar também à escuta e atentos a esse avesso
da experiência.
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