"O CAPITALISMO NÃO PARA DE REVOLUCIONAR CONSTANTEMENTE SUAS PRÓPRIAS BASES SOCIAIS."

[Entrevista com a filósofa Clara Ramas San Miguel por Hugo de Camps Mora e publicada em CTXT, em 20/072024. Tradução: Haroldo Gomes]

Sem sombra de dúvida, a nostalgia e a melancolia se tornaram duas das emoções mais características do momento em que vivemos. Há saudosistas de praticamente todos os matizes ideológicos e, como se a possibilidade de vislumbrar um futuro fosse necessariamente cancelada, parece que a necessidade de “voltar para casa” tornou-se hoje mais intensa do que em outros períodos históricos. Nesse contexto, a questão que inevitavelmente surge é o que fazer com esses sentimentos.  Deveríamos permitir que eles formassem a base de um programa político ou deveríamos desconfiar de nós mesmos quando nos deparamos com a "saudade" de uma era perdida? Lendo a obra de Proust de uma perspectiva marxista e psicanalítica, a filósofa Clara Ramas San Miguel (Madri, 1986) tentou responder a essas perguntas em seu último livro, El tiempo perdido. Contra la Edad Dorada: una crítica del fantasma de la melancolía en política y filosofía (Arpa, 2024).

El tiempo perdido representa uma continuação do projeto intelectual que Ramas San Miguel vem desenvolvendo em suas contribuições mais teóricas sobre o marxismo.  A filósofa, que trabalhou com intelectuais como Michael Heinrich a partir da perspectiva da Neue Marx-Lektüre, publicou sobre a questão do fetiche em Marx (Fetiche y mistificación capitalistas. La crítica de la economía política de Marx, Siglo XXI de España, 2018). Agora, ela se propôs a usar suas ferramentas analíticas para abordar o sentimento melancólico que permeia a política contemporânea. Recentemente, tive a oportunidade de conversar com Ramas San Miguel sobre seu livro e sobre como evitar o erro de tentar curar as feridas do presente com receitas do passado. Ao longo de El tiempo perdido, a filósofa não se cansa de insistir em sua mensagem: a nostalgia, na política, é profundamente reacionária.

Desde o início, seu livro foi concebido como um diálogo com Proust e seu famoso romance En busca del tiempo perdido. Por que a obra de Proust parece ser tão importante para pensarmos em nossa relação com o passado?

A primeira coisa que me chamou a atenção na obra de Proust, de fato, foi o título. Ela fala de algo perdido e acho que o ponto de partida para todos nós é esse sentimento de perda.  Mas gostei do fato de Proust parecer pensar que o que perdemos não é um objeto específico; ele não diz a França perdida, o império perdido ou a família perdida. Embora ele fale sobre todas essas coisas no livro, ele diz que o mais importante do que perdemos é o tempo. E, de fato, ele explica que, se há algo que podemos recuperar, é o tempo. Este é o título do último volume: o Tempo recuperado, não a "glória recuperada", não a "glória francesa recuperada". Achei interessante pensar sobre o que é recuperar algo que não é uma coisa, mas simplesmente o tempo. O que você recebe de volta não é algo que você já teve, porque você não pode recuperar o tempo perdido em si. O que Proust nos permite ver é que o que é chamado de infância, ou o que é chamado de França, ou o que é chamado de família, é algo que você reescreve e retrabalha o tempo todo. Na realidade, você mesmo nem existia quando ela estava lá, mas agora está projetando essa ideia da França ou da família com seus medos atuais, suas ansiedades atuais ou seus anseios atuais.  Em outras palavras, toda ideia de França é, na realidade, uma construção, assim como toda ideia de família também é uma construção. Isso, politicamente, me pareceu uma primeira intuição interessante, que contrasta com muitos dos discursos melancólicos que ouvimos hoje, que querem restaurar a grandeza da "pátria perdida" ou da "família tradicional perdida" ou dos "valores perdidos".

Na obra de Proust, fica claro que é o narrador que vai em busca do tempo perdido. Do seu ponto de vista, quem hoje está em busca do tempo perdido?

Acho que todos nós deveríamos ser aqueles narradores proustianos que vão em busca do tempo perdido. Na minha opinião, todo livro interessante precisa definir tarefas para os leitores. Proust nos convida a ver que a tarefa de dar sentido à nossa vida não está concluída e que precisamos ser os autores da história que explica nosso momento.  As narrativas herdadas de onde estamos entraram em uma crise profunda. Acredito que é hora de construir coletivamente narrativas que deem sentido ao momento em que estamos, que é caracterizado por um sentimento de perda. O que estou dizendo no livro é que essas narrativas não podem ser sobre a reivindicação de um retorno a modelos anteriores de sociedade ou modelos anteriores de bem-estar. A saída para esse senso de incerteza não pode ser repetir um passado que já aconteceu.

Muitas das identidades políticas daqueles que reivindicam um retorno à Era Dourada parecem ser contraditórias e até mesmo têm concepções diferentes do que é essa Era Dourada. Como isso pode ser explicado?

É muito difícil classificar esses novos sujeitos políticos porque eles são muito híbridos. No livro, eu me refiro a eles como "centauros" porque, de certa forma, eles têm pernas de um lugar e cabeças de outro. Digamos que o capitalismo esteja constantemente revolucionando suas próprias bases sociais, e a resposta a esse capitalismo, que é uma resposta defensiva, como argumentou Polanyi, consiste em quebra-cabeças às vezes muito diferentes. Mas acho que, embora possam ser mais de direita ou de esquerda no sentido tradicional, nesses temas melancólicos há sempre uma ideia comum: a ideia de um retorno à era de ouro, a ideia de que o que nos falta agora, na verdade, já tivemos por completo. E essa ideia, além de ser falsa, é politicamente impotente. Os desafios do capitalismo atual - de crise climática, econômica e social - não podem ser resolvidos com receitas de bem-estar social do final da década de 1960, de casa, casamento e termomix. Isso pode ter funcionado em um determinado momento, mas agora há novos desafios e descontentamentos que não podem ser suturados pela replicação de modelos anteriores.

Em seu livro, você considera importante abordar a questão dos incels (1). Por que você acha que vale a pena estudar esses personagens?

Acho que os incels são como que a última guarda pretoriana da fortaleza mais sagrada da identidade melancólica, porque acho que, de certa forma, a construção binária tradicional de gênero e a heteronormatividade que a acompanha são como que a última fortaleza que nenhum melancólico está disposto a moldar. A relação dos melancólicos com o capitalismo, com o nacionalismo ou com a classe é mais discursivamente variável; há melancólicos que são mais ou menos anticapitalistas, mais ou menos trabalhistas, mais ou menos nacionalistas ou mais ou menos patriotas, mas não há nenhum que não queira manter alguma forma tradicional de binarismo de gênero. Em que sentido eu digo que acredito que o gênero é a fronteira final da identidade? Isso se refere a uma crítica feita por alguns conservadores quando dizem: "Essa moda trans está gerando muito desconforto, por exemplo, nos adolescentes, que antes era canalizado por meio de tribos urbanas ou decisões estéticas; agora é canalizado como problemas de identidade e isso está prejudicando as crianças". Nesse caso, acho que deveria ser o contrário. Muitas dessas decisões estéticas e de tribos urbanas anteriormente também tinham como base o desconforto de gênero ou o descompromisso com a norma binária; agora isso simplesmente foi explicitado. Alguém vai pensar que a estética gótica ou a androginia presente em praticamente todos os ídolos do pop, rock ou disco não tem nada a ver com a quebra dos limites de gênero? A única coisa agora é que isso foi explicitado. O que é interessante em relação ao incel é que também há um senso legítimo de desconforto misturado. O neoliberalismo destruiu muitas formas de organização social mais estável - formas de família, casamento, comunidade - que agora estão em crise. Isso, somado à precariedade econômica, deixa muitas pessoas em situações vulneráveis ou isoladas. Parte do mal-estar dos incel tem a ver com isso, e esse é o núcleo da verdade que precisa ser resgatado. O problema é que eu acho que a maneira que eles usam para se defender desse dano é absolutamente destrutiva, porque, no final, eles não querem mudar as regras que os fazem sofrer. Na realidade, eles gostariam de ser vencedores nesse sistema. Ou seja, o que almejam não é acabar com o patriarcado, com a ideia rígida de identidade de gênero e masculinidade tradicional, ou com o capitalismo. Na realidade, eles adoram homoeroticamente estes homens vencedores e gostariam de ser eles, mas não querem destruir a fonte desse dano. E é aí que me parece que essa não é apenas uma resposta melancólica a um modelo de gênero que não funciona mais, mas que também é profundamente misógino e reativo.

Quando você diz que não funciona mais, está sugerindo que já funcionou em algum momento?

Sugiro que talvez tenha havido um consenso ou sistemas de valores que não temos mais. Se você tem uma formação religiosa, por exemplo, é mais fácil manter uma certa ordem que também é de gênero; mas essas hierarquias e sistemas de valores não funcionam mais. Além disso, há transformações materiais que impedem seu funcionamento. O papel das mulheres no sistema produtivo é um fato concreto e obstinado que nenhum incel pode ignorar. Se você ler suas contas no Twitter, o que eles dizem é: "Procure uma mulher que não tenha instrução e não queira trabalhar para ficar em casa". Em outras palavras, querem literalmente inverter a modernidade, mas isso não vai acontecer: não vai haver um movimento de massas para que as mulheres renunciem à sua modernidade como cidadãs, embora tentem e mantenham argumentos muito demagógicos, dizendo que muitas mulheres descobriram que o feminismo é uma farsa e que o que as faz felizes é estar em casa, ser mães e fazer bolos. Claro, o que temos que dizer a elas é: não é o feminismo, mas é o capitalismo que é uma farsa para as mulheres, e as obriga a ter horários de trabalho como todos os outros e também a continuar sendo a mulher submissa que faz bolos para o marido. Ou seja, o que é incompatível é todo o trabalho de cuidado e todo o trabalho produtivo que realizam fora de casa. Mas esse não é um problema do feminismo; é um problema do capitalismo, que continua, de forma oculta, a explorar as mulheres tanto no local de trabalho quanto em casa.

Com base no trabalho de autores como Kristeva, você atribui à linguagem um papel importante em seu livro. Por que você acha que é tão necessário abordar a questão da linguagem para lidar com a nostalgia e a melancolia que caracterizam o nosso presente?

Somos animais muito específicos. A definição mais típica de um ser humano, aquela apresentada por alguém como Aristóteles, por exemplo, é a de um animal que tem logos, ou seja, que fala. No entanto, é importante entender que viemos ao mundo sem saber como falar e em um estado de absoluta vulnerabilidade. O processo pelo qual você aprende a falar é, na verdade, um processo de distanciamento, um processo de aprender a colocar algo entre você e o mundo para que você possa refleti-lo e, nesse processo, distanciar-se dele. Ao contrário dos seres humanos, os animais estão imersos em seu ambiente; eles o recebem, digamos, por meio de seus olhos e o metabolizam, mas não o reificam em troca. No momento em que você tem uma linguagem, pode se referir ao mundo à distância e a partir da reificação. Mas como nem sempre fazemos isso, há sempre a tentação de voltar àquele estado mais inocente, mais original, quando éramos filhotes protegidos por nossos pais, brincando no parque com outros filhotes. A tentação de assistir ao próprio nascimento, quando você ainda não eras você, é uma tentação de retorno inevitável como seres da palavra. O que Kristeva está dizendo é que esse retorno pode ser feito com o mesmo meio que causou a ferida, que é a própria linguagem. A linguagem, explica ele, serve para dizer como sentimos falta de voltar para casa, mas não serve para construir um sistema político no qual estejamos em casa como no nosso solo natal. A tentativa de criar um sistema político no qual você se sinta tão em casa quanto num ventre materno de terra e sangue é chamada basicamente de Nacional-Socialismo. Podemos contar e narrar literariamente a ferida de perder a nossa origem, mas não podemos criar um sistema político que nos devolva ao sangue e à terra dos nossos antepassados.

Do Gênesis até os dias atuais, passando pela obra de Kant, Hegel ou Marx, você explica que a ideia de que estamos vivendo uma "queda" e, portanto, a ideia de que qualquer época passada foi melhor, tem sido uma constante na tradição ocidental. Há algo particularmente diferente que separa os impulsos melancólicos da modernidade capitalista neoliberal daqueles que sempre caracterizaram a cultura ocidental?

Acredito que há uma linha de continuidade, mas que o capitalismo e sua dinâmica de dissolução e aceleração exacerbaram isso, levando as próprias costuras antropológicas a um limite nunca antes alcançado. Acho que o grau de capitalismo turbo-neoliberal em que nos encontramos, que está levando os corpos ao limite, levando os recursos naturais ao limite ou levando o próprio planeta ao limite, não tem precedentes na história da humanidade. Nunca a possibilidade de sobrevivência física do planeta no nível em que se encontra, ou a própria possibilidade de resistência física e psicológica dos corpos que trabalham e produzem, foi levada ao limite. Essa enorme capacidade de causar danos é nova, portanto, acredito que a angústia e a desorientação que ela gera também são novas. É claro que somos animais sem origem ("Deus está morto e não tem túmulo", isso é verdade desde o Gênesis), mas nunca os danos antropológicos e biofísicos atingiram o nível em que estamos agora. Essa é a ameaça que enfrentamos e ela gerou tentações de retorno inéditas na história da humanidade. Nesse contexto, a esquerda tem a tarefa de oferecer uma saída diferente para essa resposta melancólica.

Seguindo Zizek, ele argumenta que, longe de ser uma posição anti-establishment, a melancolia é, na verdade, a forma definitiva de narcisismo e do politicamente correto. Ele chega ao ponto de dizer que os melancólicos são os “pós-modernos” definitivos. Você poderia desenvolver essa ideia?

A sensação que tenho é que quando os melancólicos não param de gritar o quanto se preocupam com o que aconteceu à Espanha, ou o quanto se preocupam com o que aconteceu à família, ou o quanto se preocupam com o que aconteceu a Deus, antes, o que importa para eles é como se sentem, as suas próprias queixas e o seu próprio sentimento de que já não são os únicos no poder para definir o que é família, o que é país ou o que é Deus. Portanto, mais do que uma preocupação com o objeto, mais do que uma defesa do objeto, trata-se de uma ferida narcísica por sentirem que perderam seu lugar de centralidade. É preciso dizer que há uma certa esquerda que se voltou para posições absolutamente reacionárias, simplesmente porque essas pessoas não têm mais o monopólio da definição de certas questões políticas, como o que é o feminismo, o que é a Espanha ou qual é a relação com a Catalunha. Esta centralidade do eu queixoso, que na verdade se encontra numa posição de privilégio, parece-me algo profundamente “pós-moderno” e até “politicamente correto”: que todos ouçam a minha queixa, porque é mais importante do que o que acontece às mulheres , para Espanha ou Catalunha.

Entendo a estratégia retórica de usar "pós-moderno" nesse sentido, mas você não acha que perdemos algo ao entregar o rótulo "pós-moderno", aceitando que ele é realmente algo negativo a ser renunciado?

Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia retórica. Certamente acredito que há um sentido redentor da pós-modernidade, na medida em que estamos cientes do poder criativo da linguagem. Estou interessado em um senso de pós-modernidade que brinca com a reinvenção da tradição. Por exemplo, o que Beyoncé faz no último álbum com toda a tradição country. Apesar do fato de ela vir do Texas, sendo uma pessoa negra, todas as vezes que ela tentou se aproximar desse gênero, ele foi considerado exclusividade dos homens brancos do sul. E ela disse: sim? Bom, vou fazer um álbum inteiro, sendo uma pessoa afro-americana, misturando country com ópera e música eletrônica, e convidando também Willy Nelson, Dolly Parton e os grandes líderes do gênero, e mostrar que o country é o pastiche que ela mesma faz com o country. Isso me parece pós-moderno e também é uma homenagem à tradição.  Como explico no livro, tradição significa transmitir para o outro e, no processo, trair continuamente a origem. A melhor homenagem a Willy Nelson ou Dolly Parton que pode ser feita é misturá-los com música eletrônica. A maneira de fazer com que as crianças de hoje talvez se perguntem quem é esse homem é atualizá-lo com uma linguagem musical contemporânea. Acredito que esse pastiche, conscientemente buscado, é uma forma de manter a tradição viva, é o verdadeiro respeito pela tradição. A fidelidade divina, a fidelidade aos deuses, consiste em sempre reinventá-los e matá-los. Quando Victor Lenore estava escrevendo sobre boa música e não fazendo coisas malucas como agora, ele foi o primeiro a dizer isso.

Se, como você explica no livro, "os verdadeiros paraísos são aqueles que se perderam", como podemos entender o passado, o presente e o futuro da tradição revolucionária, que, de certa forma, tem a intenção de trazer o paraíso para a Terra?

Acho que o interessante é justamente isso, entender o paraíso como uma promessa de um futuro que nunca aconteceu e que não sabemos se acontecerá, mas que, mesmo assim, tem a capacidade de nos mobilizar. Como explica Mark Fisher, a sociedade de consumo atual mergulhou todos nós em um estado entre o depressivo e o anedônico, o que prejudica nossa capacidade de desejar. Nesse contexto, pode ser que a ideia do paraíso não mobilize mais do que os quatro super-ricos verdadeiramente utópicos, como Elon Musk e companhia. Acho interessante tudo o que tem a ver com a análise do tempo e a descoberta de promessas de paraísos passados que nunca aconteceram, ou promessas de paraísos futuros que, sabe-se lá se acontecerão. Estou interessada em qualquer promessa revolucionária que desfaça o tempo e o faça espreitar pelas fendas do presente. Em outras palavras, não acredito que devamos aspirar a voltar ao que era a URSS ou realizar o plano quinquenal sobre o qual não sei quem escreveu no manuscrito de não sei onde, mas ver como essa promessa não cumprida nos inspira no presente para, por exemplo, reconstituir a distribuição do trabalho de assistência. A resposta sobre como fazer isso não está em nenhum plano quinquenal; ela precisa ser inventada. 

[1] Incel (aglutinação das palavras inglesas involuntary celibates, "celibatários involuntários") é uma referência a membros de uma subcultura virtual que se definem como incapazes de encontrar um parceiro romântico ou sexual, apesar de desejarem ter, um estado que descrevem como inceldom. Autoidentificados incels são em sua maioria composta de homens heterossexuais.

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