"O CAPITALISMO NÃO PARA DE REVOLUCIONAR CONSTANTEMENTE SUAS PRÓPRIAS BASES SOCIAIS."

[Entrevista com a filósofa Clara Ramas San Miguel por Hugo de Camps Mora e publicada em CTXT , em 20/072024. Tradução: Haroldo Gomes] Sem sombra de dúvida, a nostalgia e a melancolia se tornaram duas das emoções mais características do momento em que vivemos. Há saudosistas de praticamente todos os matizes ideológicos e, como se a possibilidade de vislumbrar um futuro fosse necessariamente cancelada, parece que a necessidade de “voltar para casa” tornou-se hoje mais intensa do que em outros períodos históricos. Nesse contexto, a questão que inevitavelmente surge é o que fazer com esses sentimentos.  Deveríamos permitir que eles formassem a base de um programa político ou deveríamos desconfiar de nós mesmos quando nos deparamos com a "saudade" de uma era perdida? Lendo a obra de Proust de uma perspectiva marxista e psicanalítica, a filósofa Clara Ramas San Miguel (Madri, 1986) tentou responder a essas perguntas em seu último livro, El tiempo perdido. Contra la Edad Dorada: u

DO AMOR À PÁTRIA. QUE PÁTRIA, CARA-PÁLIDA?

Texto de Haroldo Gomes

O Patriotismo é o sentimento de orgulho, amor e devoção à pátria, aos seus símbolos (bandeira, hino, brasão, riquezas naturais e patrimônios material e imaterial, dentre outros) e ao seu povo. A pátria é esse espaço telúrico e moral, cultural e afetivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. O amor à pátria almeja sobrepor-se às diferenças, às desigualdades sociais, às injustiças sociais presentes naquele território ao longo de sua história, ao abandono dos cidadãos pelo Estado. Imagine-se cultivar este amor no Brasil.

Cante-se o hino nacional, hasteie-se a bandeira, estimule-se o amor ao patrimônio material e imaterial do país. E tudo se resolve.

Na rua em que moro tem uma escola privada, que trabalha com educação infantil e os primeiros anos do ensino fundamental. Alguns dias da semana, pela manhã, antes de sair para o trabalho, ouço uma mulher que assume o microfone e dá um "sermão" (no formato "carão", mesmo) de uns 30 minutos nas crianças e depois disso ouve-se o hino nacional. Ao fim, o barulho de palmas. Quero crer que com esse gesto a educadora está convicta de sua contribuição para fortalecer o tal "amor à pátria". 

Do outro lado da rua, fica uma Unidade Básica de Saúde - UBS. Uma unidade do sistema de saúde pública deste país chamado Brasil.

Imagine que uma criança daquelas da escola, dos primeiros anos da educação infantil, seja portadora de alergia ao ovo e tenha que tomar uma vacina tríplice viral contra "sarampo , caxumba e rubéola", vacina que contém traços de proteína do ovo de galinha usado no processo de sua fabricação. E a UBS, ao saber da situação, informa que não pode fazer porque a criança pode ter uma reação anafilática, reação alérgica repentina, generalizada, potencialmente grave e fatal, e a UBS não tem estrutura para enfrentar estas situações. E remete os pais da criança para um Hospital público infantil. Neste, a enfermeira, que já está com um caso semelhante, informa que também não pode vacinar porque o Hospital só recebe pacientes pela "regulação" e se a criança tiver algum problema pode ser que nem tenha leito pra ela. 

A criança fica sem vacina e suscetível às doenças, desprotegida, vida nua condenada ao desamparo, ao silêncio e ao dar-se de ombros dos funcionários do Estado? Eis a pátria que essa criança e sua família devem amar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma década esquizofrênica

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático