"O CAPITALISMO NÃO PARA DE REVOLUCIONAR CONSTANTEMENTE SUAS PRÓPRIAS BASES SOCIAIS."

[Entrevista com a filósofa Clara Ramas San Miguel por Hugo de Camps Mora e publicada em CTXT , em 20/072024. Tradução: Haroldo Gomes] Sem sombra de dúvida, a nostalgia e a melancolia se tornaram duas das emoções mais características do momento em que vivemos. Há saudosistas de praticamente todos os matizes ideológicos e, como se a possibilidade de vislumbrar um futuro fosse necessariamente cancelada, parece que a necessidade de “voltar para casa” tornou-se hoje mais intensa do que em outros períodos históricos. Nesse contexto, a questão que inevitavelmente surge é o que fazer com esses sentimentos.  Deveríamos permitir que eles formassem a base de um programa político ou deveríamos desconfiar de nós mesmos quando nos deparamos com a "saudade" de uma era perdida? Lendo a obra de Proust de uma perspectiva marxista e psicanalítica, a filósofa Clara Ramas San Miguel (Madri, 1986) tentou responder a essas perguntas em seu último livro, El tiempo perdido. Contra la Edad Dorada: u

Uma década esquizofrênica

 [artigo de Franco Berardi Bifo, publicado em Machina, em 15/05/2024. Tradução: livreiro da floresta]

É uma memória esquizofrênica, a dos anos 1990. Assim começa a palestra de Franco Berardi Bifo dedicada àquela década, concebida para o o Festival DeriveApprodi 7: "Anos noventa: quando o futuro acaba", que começa hoje. O artigo se desenvolve entre a grande utopia da rede e a barbárie da identidade, entre o imaginário das ciberculturas e um novo ciclo de guerras, entre o fim do império do mal e o início do império do pior. É o início de um período sombrio: como podemos passar por isso sem ceder à chantagem da necessidade, do medo, da culpa e da identidade?

Pediram-me para escrever algo sobre a década de 1990. É uma questão complicada porque minha memória dos anos 90 é esquizofrênica. É a década da grande utopia da internet, mas é também a década em que começa a barbárie da identidade, que nunca parou de crescer desde então, até se tornar, hoje, um monstro que ninguém pode deter ou derrotar, e que acabará derrotando a si mesmo, mas não sem levar quase todo o resto da civilização humana para o inferno com ele.

No início da década de 1990, quando o colapso do socialismo deu início a um ciclo de guerras (a Guerra do Golfo de 1990-91, as guerras da Jugoslávia e do Cáucaso), a utopia das ciberculturas rapidamente se transformou num processo de construção da rede. Em 1992, Alex Sarti me ensinou a usar um navegador da Web e, pela primeira vez, o conceito de rede se tornou real na tela de um computador. Dois anos depois, junto com Oscar Marchisio e Elda Cremonini, organizei uma conferência internacional em Bolonha intitulada Cibernauti. O dinheiro e a logística para a organização da conferência foram fornecidos pelo City University Consortium, do qual Marchisio era diretor na época. Luca Sossella cuidou da comunicação e dos gráficos, e Alberto Castelvecchi publicou os anais da conferência. Foi a primeira conferência pública em que a Internet foi discutida e, ainda assim, me faz sorrir ao pensar nisso, para manter contato com as pessoas que queríamos convidar para a conferência - Pierre Levy, Alberto Abruzzese, Derrick De Kerkhove, Kim Veltman e outros que não me lembro - usamos uma técnica antiga: escrevemos cartas com uma velha Remington, colocamos as cartas dentro de envelopes brancos, escrevemos o endereço no envelope, colocamos selos e levamos o pacote de cartas para a Central Post Office, localizada na Piazza Minghetti.

Foi somente no final daquele mesmo ano, em novembro de 1994, que recebi meu primeiro endereço de e-mail. No ano anterior, Mutazione e cyberpunk foi lançado. Foi publicado por Costa e Nolan, uma editora genovesa que fazia livros muito elegantes. Esse livro é a síntese das descobertas literárias e filosóficas da década anterior, mas também a minha introdução pessoal e política à era que estava a tomar forma desde que a palavra "Internet" começou a circular.

Infosfera, psicoesfera psicoquímica, ciberespaço e cibertempo, Tecnomaya, cosmovisão barroca: eu havia capturado essas palavras no ar que respirava e estava tentando traduzi-las em ferramentas de análise.

Mapeamos os distritos que estavam por vir e desenhamos mapas do clima no horizonte.

Em 1989, após a terrível repressão chinesa em junho, fui para a Califórnia por um tempo para visitar um amigo que morava em Berkeley. Falou-se muito sobre cyberpunk e realidade virtual. Uma espécie de nova onda subcultural que é ao mesmo tempo inocente e desencantada, psicodélica e telemática.

Li Mirrorshades. No final do verão, passei alguns dias em Berlim, onde o muro ainda não havia caído. Tien An Men me pareceu anunciar um cataclismo iminente. Na China, o regime havia se recomposto porque Deng Hsiao Ping já tinha uma estrutura nacional-comunista (no sentido de uma ditadura militar nacionalista dirigida por uma burocracia partidária) que na Rússia e em outros países do leste só agora estava começando a ser construída. As imagens cyberpunk misturaram-se no meu cérebro com o colapso político do socialismo realizado. O processo histórico me pareceu ter atingido um ponto de inflexão duplo: por um lado, o movimento contra o trabalho industrial determinou no Ocidente as condições para a saída progressiva da era de ferro da indústria e do trabalho material. Por outro lado, o socialismo realizado havia criado as condições para a industrialização por meio de força autoritária e acabou imobilizando a dinâmica social que, em vez disso, havia se desenvolvido plenamente no Ocidente. A revolta dos estudantes chineses foi motivada pela palavra de ordem da democracia, mas os valores da democracia política não pareciam ser dissociáveis da participação no ciclo planetário de bens e informações, da participação no sistema planetário do qual o Ocidente é a força motriz. O poder do mundo ocidental reside na sua imaginação, cuja força de sedução é irreprimível.

O processo de modernização, o início da abertura da China ao Ocidente, abriu aos jovens daquele país um vislumbre de um mundo de experiências do qual não querem ser excluídos. A batalha em Pequim foi o confronto entre o estado autoritário e o sistema de comunicação planetário.

Tudo o que aconteceu nos meses seguintes me parece ter sido uma confirmação dessa tendência. A China e a Califórnia, o comunismo nacional e o cyberpunk eram cenários divergentes, mas interconectados. Como?

O totalitarismo político se decompõe, e o domínio sobre o aparato nervoso e cognitivo da humanidade começa a tomar forma: o império do mal entra em colapso, o império do pior cria raízes. Depois veio o outono de 89 e a ilusão de uma era de paz. A ilusão durou muito pouco. Guerra do Golfo, guerra civil eurasiática no mundo pós-comunista. Pressão migratória da África e do Oriente para a Europa Ocidental; ressurgimento do sentimento localista com conotações racistas e nazistas na Europa profunda, na Itália, na França e, assustadoramente, também na Alemanha.

O projeto de uma nova ordem planetária parece estar recuando no horizonte. E assim por diante: para que o paraíso infernal das tecnologias reticulares envolva o planeta, é necessário superar uma passagem sombria de nacionalismos agressivos e arcaísmos armados com armas ultramodernas.

Os dois cenários devem ser imaginados juntos e separadamente, porque são conceitualmente distintos, mas na história eles implicam um ao outro. Antes que uma nova ordem homologada possa ser estabelecida, será necessário passar por um período sombrio de identidades desesperadas que se agarram a raízes sangrentas, a mitologias dementes. É preciso desenvolver uma ética apropriada para essa travessia. Políticas de mutação precisam ser desenvolvidas.

Naqueles anos, foi publicado um relatório sobre o futuro próximo do planeta (2100 Recit du prochain siècle) editado por Thierry Gaudin, presidente do Grupo de Pesquisa e Intercâmbio Tecnológico de Paris. O cenário delineado por Gaudin é impressionante. A explosão do fundamentalismo e o ressurgimento da perspectiva de guerra. Sobrecarga de informação e retirada tribal. A overdose de informações pode ter consequências graves. O homem reage como um animal preso em um zoológico. Removidos de seu ambiente natural, os animais em cativeiro recebem estímulos que os atacam psiquicamente. Alguns reagem tornando-se bulímicos e obesos. O homem moderno, estressado pela vida urbana, faz o mesmo. Outros animais estão desconectados. Eles dormem prostrados. O homem, graças aos seus dons cerebrais, pode escapar espiritualmente. Ele responde ao excesso de informação com zapping. Ele pratica a presença-ausência, a arte de estar presente estando em outro lugar. A sociedade superinformada deixa de fazer e passa a fingir que faz. Gestores incomodados com o excesso de dados fingem orientar, pesquisadores fingem pesquisar, professores perdidos no meio de bancos de dados fingem ensinar, religiosos fingem rezar e economistas fingem entender. Segundo o relatório de Gaudin, entre 1990 e 2020 o homem permanecerá inadequado às técnicas que ele próprio inventou. Incapaz de escolher suas informações, incapaz de decidir, de apostar segundo decisões racionais.

A nebulosa cultural que chamamos de Nova Era muda o foco do campo da política para o campo da tecnologia e para o campo do meio ambiente. O relatório de Thierry Gaudin anuncia a inelutável dissolução do Estado-nação. A forma moderna de política, a organização centralizada do Estado e até mesmo as formas de democracia participativa estão fadadas a se tornarem vazias. Therry Gaudin argumenta que os Estados-nação estão em declínio em favor de estruturas de serviços internacionais: serviço militar, serviço médico, serviço de alimentação e assim por diante.

Em 2100 – escreve Gaudin no Relatório do Grupo de Investigação e Intercâmbio Tecnológico – haverá doze bilhões de indivíduos, aproximadamente o mesmo número de neurónios num cérebro humano. Bilhões de conexões serão construídas em todo o planeta, na rede telemática de telefones, videofones e múltiplas telas, como redes de neurônios que empurram seus dendritos, o universo, uns aos outros, durante o tempo em que o cérebro se forma. Para esse planeta neuromimético, será o início de um formidável processo de aprendizado. Aprende-se a fazer fazendo, e a circulação de informações tomará forma por tentativa e erro, estabelecendo-se gradualmente como um modo finalizado de realidade.

O problema da previsão e da tomada de decisões políticas muda completamente de natureza. Se descrevermos a humanidade planetária em termos neuro-telemáticos, parecem surgir possibilidades imprevisíveis de conexão. De que forma pode ser estabelecida uma função de governança do todo?

Em uma população de neurônios, não há um que comande sobre os outros, mas o cérebro ainda funciona. O princípio hierárquico funciona em um sistema mecânico, sequencial e decidível.  Em um sistema em que a troca de informações não ocorre mais sequencialmente, em que todo fluxo de informações é reproduzível, sobreposto e aleatório, parece-me que qualquer possibilidade de governança tende a se dissolver.

No espírito da Nova Era, coexistem duas imaginações sobre o mundo futuro, duas perspectivas. A primeira perspectiva é tingida de catastrofismo ecológico: consciência da disseminação de processos degenerativos que envolvem a ecosfera natural e mental. A segunda perspectiva é tingida de otimismo paradigmático, a convicção de que as condições mentais e sociais estão sendo criadas para uma navegação feliz nas ondas do oceano neurotelemático. Essas duas imaginações giram em torno da noção de um novo paradigma.

Mas, inesperadamente, no início dos anos noventa, o passado histórico – resíduo social e cultural, imensa acumulação de detritos ideológicos, imaginários, econômicos que a história moderna arrastou consigo – apresenta-nos a conta.

Estamos no início do período sombrio.

Como podemos passar por isso sem nos fecharmos, sem nos curvarmos à chantagem da necessidade, do medo, da culpa e da identidade? Como permanecer nômade em um mundo de sérvios e croatas?

[Franco Berardi Bifo está entre os mais importantes pensadores radicais contemporâneos. Para a DeriveApprodi, ele publicou, entre outros, Dopo il futuro (2013) e Quarant anni contro il lavoro (2017). Seu trabalho mais recente é Disertate (Timeo, 2023)]

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