Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Educação para masculinidade

[Entrevista da autora Victoire Tuaillon com a filósofa Olivia Gazalé extraída de "Fuori le palle" (Add Editore) e publicada em Lucy sulla cultura, em 30/03/2024. Tradução: equipe Vapor ao Vento]
Victoire Tuaillon é uma jornalista e autora francesa. Desde 2017, ela é curadora do podcast Les Couilles sur la table.  Seu último livro é Fuori le palle. Privilegi e trappole della mascolinità (ADD editore, 2023).

A masculinidade é frequentemente descrita como um componente inato e essencial do homem, mas será mesmo assim? 

Aqui está o melhor livro que já li sobre masculinidade, o que sempre recomendo, sem hesitação, para quem quer abordar o tema. Il mito della virilità convoca história, filosofia e sociologia para analisar a armadilha da virilidade: quinhentas páginas saborosas e cultas, riquíssimas que parecem um romance. O diálogo com Olivia Gazalé foi tão intenso que fizemos dois episódios dele para o podcast. Imagino que quem os ouviu ficou, como eu, sob o encanto da sua voz, do seu humor tão irónico quanto profundo e daquela inteligência palpável em cada frase. Eu poderia ouvi-la falar por horas.
VT: Como era o homem ideal da Roma Antiga?
OG: Os cânones do homem ideal foram estabelecidos na Grécia e depois aperfeiçoados (do latim perficĕre, cumprir) em Roma. Na Grécia antiga, o modelo é a andreia, ou virilidade ideal. São antes de tudo padrões de beleza física. A ideia é que a melhor parte do material humano, a perfeição humana, é o corpo masculino. Você tem que ter ombros largos, você tem que ser alto – em Aristófanes há até detalhes que falam de "nádega roliça mas penis pequeno", aos quais são acrescentados os cânones da moralidade, em particular de derivação estóica. Hércules, o melhor representante da andreia grega, é estimado e admirado pelas suas qualidades físicas – força, potência e musculatura magnífica – mas também pela sua coragem, perseverança, valor moral, audácia, combatividade. Nesses cânones, sempre encontramos esse duplo ideal de poder e autodomínio.
VT: Era preciso saber ser dono de si, capaz de dominar-se?
OG: Dominar-se, acima de tudo. É isso que torna o homem superior à mulher, considerada colérica, irracional, atraente, impulsiva. O homem, por outro lado, sempre se considera dono de suas próprias emoções e sentimentos. O estoicismo introduzirá a ideia de que um homem viril deve aprender a tolerar a dor e até a desejar a morte. Aos dezessete anos de idade, o jovem romano usa uma toga, um símbolo de pudor, que não é apenas pudor físico, mas, acima de tudo, pudor emocional. Um homem não deve mostrar nada, não deve chorar, nem espirrar, nem ter medo.
VT: Fiquei surpresa ao ler que na época romana o homem não deveria cuspir, ou espirrar, ou cheirar, ou bocejar!
OG: Sim, porque são sinais de afeminação. Ser homem é antes de tudo não ser mulher, isso é fundamental. Na antiguidade, ser afeminado era a mancha mais ignóbil – e tem sido assim há muito tempo.
VT: Ainda é assim hoje...
OG: Com certeza. É pelo desprezo pelo feminino que ser afeminado é considerado um indício de covardia, pusilanimidade e suavidade. Mollis é um insulto usado com muita frequência. A mollitia é a obsessão romana, refere-se à passividade feminina e, portanto, à ideia de que as mulheres não sabem se controlar (porque ela está sujeita ao fluxo menstrual) ao contrário de um homem que, em vez disso, deve ser capaz de dominar a ereção e as emissões seminais...
VT: Você pode nos contar sobre a prática da pederastia na Grécia antiga?
OG: Partimos do conceito de que as categorias de heterossexualidade e homossexualidade não existiam na Grécia. O homem, o cidadão livre, era polissexual: além de ter esposa legítima, tinha amantes e concubinas (chamadas etairai, hetaeras), frequentava prostitutas. E, em sua juventude, ele vivenciou um ritual de passagem, obrigatório na boa sociedade ateniense: a pedagogia pederástica. No ginásio (gumnasion), os jovens treinavam nus (gumnos, nu), eles participaram de concursos de beleza, e se deixavam admirar e seduzir por homens mais maduros. Era repreensível que um eromenos – um adolescente – não tivesse um protetor, o erastès, cuja tarefa era torná-lo mais viril. Era uma educação intelectual e cultural, que também envolvia sexo. A relação sexual era rigidamente codificada: era o erastès, portanto o mais velho, que tinha que penetrar o menino analmente, e nunca o contrário! Isso ocorre porque os gregos antigos acreditavam que ser fertilizado pelo esperma de um homem maduro ajudava a virilizar um menino.
VT: Não existe a mesma ideia em Papua Nova Guiné, entre os Baruya?
OG: Sim, como escreveu o antropólogo Maurice Godelier, com um sistema de felação ritual: sempre se tratou da mesma ideia de que o esperma é virilizante e, acima de tudo, contrabalança o efeito considerado nefasto do leite materno, que é feminilizante para os homens. A pederastia grega é um tipo de rito de passagem. Para se tornar um adulto, é preciso passar por essa virilização pelo homem mais maduro. Há uma anedota bastante divertida em uma peça de Aristófanes, Os Pássaros. Um homem diz a outro: "Mas bravo Stilbonide! Você encontra meu filho saindo da academia todo lavado e nem sequer lhe dá um beijo, não fala com ele, não o leva com você, não o apalpa entre as pernas...De fato, um bom amigo da família".
VT: E em Roma?
OG: Os costumes eram definitivamente diferentes, porque a sociedade romana era muito mais paternalista. O pai da família teria ficado ressentido com a concorrência de um erastès em sua autoridade sobre o menino. Por outro lado, havia jovens escravos sexuais – às vezes muito jovem mesmo. O imperador Tibério criou e treinou crianças, com idades entre dois e quatro anos, para nadar entre suas coxas durante o banho diário – ele os chamava de "meus peixinhos – e fazer sexo oral nele...
VT: Tibério e muitos outros: falas de escolas especiais onde as crianças eram educadas para se tornarem escravas sexuais.
OG: É assim que era. Crianças delicadas. Elas tinham pele macia, cabelos longos, um cheiro agradável e animavam os banquetes com sua presença graciosa, e tudo isso era socialmente aceito.
VT: Ao ler seu livro, percebe-se como a educação das crianças ao longo da história foi frequentemente marcada por extrema violência. Atualmente, o provérbio "quem ama bem castiga bem" ainda é usado algumas vezes: a ideia de ensinar batendo é a pedagogia que tem prevalecido até agora?
OG: O objetivo é endurecer os meninos. Um homem, um homem de verdade, é golpeado e despreza o sofrimento, mas não há nada de natural nisso...É inevitavelmente adquirido através do que chamo de treino dos corpos masculinos.
VT: Os corpos masculinos são treinados como corpos de animais?
OG: Durante muito tempo, esse foi o fundamento da educação: ensinava-se por meio de tapas, chicotadas, cassetetes.  Era preciso sofrer.  O mito do guerreiro é absolutamente central para toda essa construção histórica da masculinidade: o objetivo é produzir lutadores e guerreiros. E como se faz um guerreiro? Dizendo-lhe: “Você não tem medo de morrer, você não tem medo de sofrer”. Seja em Esparta ou na Idade Média – em ambos os casos, o serviço militar poderia começar aos quatro anos de idade – era uma sucessão de assédios, de provas exaustivas para aprender a tolerar o frio, a fome, os espancamentos. Ao mergulhar na história, fiquei muito impressionada ao ver como a obediência e o servilismo são sempre fundamentais para o aprendizado. Há uma necessidade de obediência e disciplina no exército, para produzir rapazes endurecidos e obedientes ao ponto do fanatismo.
VT: Até a década de 1950, não era tão incomum que os professores batessem nos alunos...
OG: Isso também aconteceu comigo, no final dos anos 60! Além disso, eram sobretudo os meninos que apanhavam e menos as meninas. Lembro-me de que, no último ano do ensino fundamental, a professora costumava bater em nossos dedos com uma régua.
VT: Ter sido criados de forma violenta é certamente uma experiência compartilhada com nossos pais e avós, não?
OG: Sim, e é também nesse sentido que digo que "tornar-se um homem é um fardo". Certamente, até mesmo tornar-se uma mulher, no passado, não era tão simples. O que mais me impressionou foi o fato de que todos esses rituais de iniciação eram dolorosos. Falamos do ritual da pedagogia pederástica, mas no contexto do serviço militar ateniense havia também outros rituais muito bárbaros. Por exemplo, a marginalização: um garoto de 17 ou 18 anos era abandonado na floresta por várias semanas.Ele tinha que se virar confiando em suas próprias forças, escondendo-se durante o dia e caçando à noite para se alimentar. Qual era o sentido de submetê-lo a tudo isso, senão para criar um guerreiro endurecido? E esse era o único propósito: a criação do guerreiro.
VT: Você mostra até que ponto o modelo central do masculino é o herói-guerreiro, o soldado.
OG: Vir vem do sânscrito virâ,'o herói'. O heroísmo é fundamentalmente isso. O covarde, o vil é assimilado ao feminino, sempre. Ele é um meio-homem, um não-homem. Aquele que morre no campo de batalha, por outro lado, é o modelo de virilidade.
VT: É desconcertante ver como os lugares em que vivemos foram modelados com base no ideal e nas imagens do herói, do guerreiro, do soldado.
OG: Na masculinidade, há uma dimensão patriótica óbvia e muito forte. Igualmente desconcertante é a estigmatização sistemática da covardia, o fato de que os objetores de consciência são mal vistos. Existe uma imposição real para ser um bom soldado, herdada da Grécia antiga, que hoje felizmente está começando a diminuir. A abolição do serviço militar obrigatório, por exemplo, é um grande avanço. Não devemos esquecer que no século XIX as crianças foram criadas com a obsessão da epopeia imperial do exército e do culto da guerra. Bandeiras e desfiles:toda a sociedade vivia em tempo de marcha. É claro que esse não é mais o caso, mas em muitos países o ideal arquetípico de masculinidade continua sendo o soldado.
VT: Você também explica como o exército, de forma muito concreta, controlava a virilidade de seus recrutas. De fato, o exame para o serviço militar também era um exame de masculinidade.
OG: Há muitos elementos sobre o serviço militar em Histoire de la virilité. Na verdade, um deles estava sendo examinado: os frágeis podiam ser descartados – e aqueles que não conseguiam passar na seleção eram muito difamados, ridicularizados e excluídos – enquanto o rapaz alto, bonito e atlético estava destinado a uma brilhante carreira militar. Essas discriminações ainda são atuais - talvez não no exército, mas na vida - até mesmo em entrevistas de emprego, você sabe.
VT: E a virilidade também tem consequências políticas, particularmente no fascismo. O fascismo realmente levou o culto à virilidade aos níveis mais altos.
OG: Sim, e isso ocorre principalmente por meio do culto aos músculos, à força e a uma certa brutalidade, levada à sua quintessência. Há um livro muito interessante, Männer-phantasien, de Klaus Theweleit, que, analisando a literatura dos corpos francos, mostra como, por trás dessa necessidade de formar uma armadura dura, brutal, invencível e impassível, havia uma terrível angústia de fragmentação, de dissolução. Para os nazistas, o medo da indiferença era uma obsessão. A ideologia nazista, como muitas vezes fazem as ideologias muito dogmáticas, queria salvaguardar as polaridades opostas a todo custo: o homem é de fato um homem, radicalmente oposto à mulher; não há nada em comum entre os dois e as funções são claramente delimitadas. Nesta ideologia, a abominação suprema era o afeminado ou homossexual – pode-se falar de um verdadeiro "homocausto" para o extermínio de homossexuais. Por quê? Porque o homossexual borra as fronteiras, abole as distinções de classe e "raça": é um afeminado, o que os nazistas chamavam de judeu. No fim das contas, o homossexual concentra em si todas as manchas da degeneração e, acima de tudo, rompe a diferenciação absoluta dos sexos.
VT: Ideia fundamental no sistema fascista...
OG: Fundamental, sim. Theweleit diz isso muito bem: no nazismo há um desprezo, uma imensa misoginia. No entanto, houve inúmeras mulheres que votaram em Hitler, levando-o ao poder – antes de serem colocadas de volta na cozinha e relegadas à procriação. A mulher servia para criar meninos. Jovens fascistas.
VT: Escrever Il mito della virilità mudou sua perspectiva?
OG:  Sim, muito.  No início, trabalhei com o feminino. Eu estava tentando me aprofundar em fenômenos como o teto de vidro, o estupro, o assédio... Mas, ao chegar ao fundo da questão, percebi que o problema era decorrente não apenas dos estereótipos de gênero sobre o feminino, mas também dos estereótipos sobre o masculino. Puxando as cordas, finalmente entendi o que Bourdieu quis dizer ao afirmar que a masculinidade é tanto um privilégio quanto uma armadilha. Analisando a história do masculino, percebe-se como a dominação fálica pesou sobre as mulheres, mas também sobre os homens, a ponto de se poder falar de uma verdadeira opressão dos homens pelos homens. Achei a expressão "o homem vítima" irritante, porque geralmente é usada pelos machistas para dizer que os homens são vítimas das mulheres... Hoje minha visão mudou.  Acho que os homens são vítimas, mas, acima de tudo, vítimas de si mesmos e de uma certa imagem de masculinidade. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal