Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A extraordinária obra de Milan Kundera explora a opressão e o absurdo de ser humano

Artigo de Jen Webb, professora de Prática Criativa na Faculdade de Artes e Design, na Universidade de Camberra (Austrália), publicado em The Conversation, em 13/7/2023. Tradução: Haroldo Gomes.

Milan Kundera, notável romancista, ensaísta, poeta, filósofo e crítico político, faleceu aos 94 anos de idade. Parece que isso aconteceu cedo demais, talvez porque em tudo o que escreveu, abriu novas formas de pensar, escrever e ler. Com sua presença, o mundo parecia se sintonizar em uma frequência mais alta.

Kundera nasceu em 1º de abril de 1929. Desde o início, ele foi exposto e imerso no absurdo da cultura humana. Ele cresceu na Tchecoslováquia ocupada pelos nazistas e, mais tarde, viveu sob o regime stalinista, onde foi um membro ativo do Partido Comunista.

Tenho lido, citado e ensinado com base em seus escritos há décadas, desde que conheci seu trabalho em 1988. Naquela época, eu morava em uma fazenda de ovelhas isolada no outback da Austrália Ocidental, um mundo de beleza absoluta.

Um visitante da propriedade insistiu para que eu lesse uma cópia de O livro do riso e do esquecimento e fui cativada. Esse, o terceiro romance de Kundera, reafirmou minha própria ansiedade pela ausência de uma verdade estável e minha incapacidade de resistir ao desejo de pertencer, mesmo à sociedade mais danificada. 

Em uma parte do romance, um grupo de fiéis comunistas dança em círculo, elevam-se no ar e sobrevoa a cidade. Eles riem como anjos enquanto, abaixo deles, os carrascos matam os presos políticos. Diz o narrador desta seção, que necessariamente não pode fazer parte daquele grupo:

"Percebi com angústia no coração que eles voavam como pássaros e eu caía como uma pedra, que eles tinham asas e eu nunca as teria."

Interrogando o totalitarismo com humor

Kundera conhecia a opressão e a desumanidade. Sua primeira (não muito boa) coleção de poesia, O Homem, um Amplo Jardim (1953), publicada quando ele tinha apenas 24 anos, era soviético em tom e conteúdo. 

Mas depois de seu primeiro romance, A brincadeira, escrito em 1967, e A vida está em outro lugar, escrito em 1969 e publicado em 1973, ambos repletos de sátira política, foi expulso do Partido Comunista e posteriormente fugiu para o exílio.

No que talvez seja seu livro mais conhecido, A insustentável leveza do ser (1984), continua seu interrogatório sobre a política totalitária, explorando a Primavera de Praga e a brutalidade do controle soviético da Tchecoslováquia.

O assunto é profundamente sério. Mas em cada romance, Kundera oferece algum humor, muitas vezes amargo, mas capaz de suavizar o conteúdo sombrio e densamente contado.

Em A insustentável leveza..., por exemplo, o narrador fala da doutrina do eterno retorno de Nietzsche: a possibilidade de vivermos a mesma vida repetidamente. Mas também desenvolve uma narrativa erótica que parece sugerir que o sexo casual pode nos permitir viver plenamente o momento. Podemos trocar o peso do eterno retorno pela leveza de estar vivo, aqui e agora.

Peso e leveza, riso e esquecimento, repetição e mudança, política e sexo: seus primeiros quatro romances incorporam essas dualidades. Talvez essa capacidade de manter pensamentos contraditórios possa ser compreendida em algo que ele disse a Philip Roth:

O totalitarismo não é apenas o inferno, mas também o sonho do paraíso, o velho drama de um mundo em que todos viveriam em harmonia.

Autor no exílio

Claro, seu sonho de paraíso não se tornou realidade. Em 1975, partiu para o exílio na França, continuando a escrever obras de ficção que seguiam principalmente a estrutura característica que desenvolveu pela primeira vez em A brincadeira: romances com várias partes e várias vozes em que o narrador interpola críticas, comentários e declarações filosóficas no texto.

Daí nasce uma história inquieta, que vai e vem de um lugar a outro, de um tempo a outro e de um contexto a outro. Os personagens aparecem e desaparecem. A lógica de início, meio e fim é quase irreconhecível. E os temas que se manifestam com tanta frequência na ficção - a busca por si mesmo, a narração de uma história, a obtenção de uma resolução - são anulados.

No centro dos romances de Kundera está sua luta com questões de conhecimento, a complexidade do ser e a incerteza constante. Pode ser um estilo inquietante: um distúrbio, em vez de um simples prazer ou experiência estética. Além disso, uma mulher do século XXI pode perceber em seu tom e estilo ao narrar cenas de sexo – e a representação das mulheres em geral – uma masculinidade antiquada. 

Fico indecisa entre me sentir ofendida pelo que parece ser misoginia e ler isso como uma crítica contundente à misoginia. Não estou sozinha nisso.

As coisas não são tão simples como se pensa

O ponto em que acompanho Kundera sem complicações não é em seus romances, mas em seus ensaios. Aqui, sua profunda compreensão dos antecedentes do que conhecemos hoje como romance ou das longas tradições e mudanças que caracterizam a prática artística, ilumina genuinamente o campo.

Em A Arte do Romance (1986), ele descreve como os romancistas desvendaram várias dimensões da existência. Ele começa com Miguel de Cervantes e percorre listas de escritores até chegar aos seus compatriotas tchecos Franz Kafka e Jaroslav Hasek, que, segundo ele, demonstram que um dos pontos fortes da ficção é que ela tolera a incerteza de uma forma que a política e a religião não toleram. Para Kundera, o que a ficção faz tão bem é dizer ao leitor: "As coisas não são tão simples quanto você pensa".

Segundo ele, o romance é um objeto tecnológico que permite novas formas de ver e dar sentido. E essa visão e esse significado estão incorporados em seu contexto. Em A cortina: ensaio em sete partes (2006) aponta o que a ficção pode fazer que as formas anteriores não podiam:

Homero nunca se perguntou se, depois de tantas batalhas corpo a corpo, Aquiles ou Ajax mantiveram todos os seus dentes. Mas para Dom Quixote e Sancho os dentes são uma preocupação perpétua: dentes que doem, dentes que estão faltando.

Kundera ressalta que escritores como Cervantes, Henry Fielding (autor de Tom Jones) e Laurence Sterne (autor de A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy) apresentam as pequenas coisas da vida cotidiana e iluminam seu significado e importância para nós.

Mas, ele se apressa em apontar, os romancistas contemporâneos não podem e não devem escrever como esses gigantes: ao contrário, escrever é uma questão de continuidade (em termos de forma, voz e estilo em um determinado período) e descontinuidade (encontrar algo novo).

Também nesses ensaios ele oferece lições sobre como escrever. Como gerenciar a voz, a perspectiva e a temporalidade. Como se divertir com a linguagem e a forma, e deixar sua imaginação correr solta. E como lidar com o pensamento e o conceito, a materialidade e a política.

Contador de verdades incômodas

Um escritor com tamanha seriedade e brilhantismo técnico deveria ter ganho o Prêmio Nobel de Literatura em algum momento de sua longa vida. Afinal de contas, ele ganhou outros prêmios, incluindo o Prêmio Jerusalém em 1985 e o Prêmio Herder em 2000.

Talvez tenha sido seu estilo de escrita que fez com que o comitê do Nobel o considerasse em várias ocasiões, mas nunca lhe concedeu o prêmio.

Depois do último romance que escreveu em tcheco, A Imortalidade (1991), sobre relações sexuais e pessoais, ele escreveu mais quatro romances que tiveram menos atenção, menos recepção crítica. Então, em A Lentidão (1995), A Identidade (1999), A Ignorância (2000) e, por último, A festa da insignificância (2014), se pode ver como sua estrela começa a desaparecer.

Isso não é porque eles sejam "piores". O jornalista Robin Ashenden sugere que ele "se tornou um contador de verdades inconvenientes para a era moderna", e talvez houvesse alguma verdade nisso.

Kundera é terrivelmente direto, muito contundente. E rejeita os consolos do sentimentalismo em favor do que ele descreve como a moral do conhecimento: o imperativo de ver e dizer o que os escritores anteriores não viram ou não puderam ver ou dizer, e de construir novas formas de entender o mundo.

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