Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Sansão, os filisteus e a Europa de Breivik

[Artigo de Franco "Bifo" Berardi, publicado em Not, em 30/5/2023. Tradução: equipe Vapor ao Vento]

Grécia, Espanha, Turquia... A vitória etnonacionalista é irreversível. Mas é uma vitória escrita na água

O Irreversível

Entre os inúmeros acontecimentos deprimentes deste ano de 2023, talvez o mais triste seja a conclusão do processo constituinte chileno. Tão triste que me parece que ninguém quer falar sobre isso, como se tivéssemos esquecido o que o Chile representou no passado distante e no recente: após o estalido do outono de 2019, tínhamos (fracamente) esperado que fosse possível apagar o legado de Pinochet do nazi-liberalismo. Mas, como qualquer outra tentativa de reforma democrática, a de Boric também provou ser um fracasso. O peso da herança colonial e do racismo, o peso do desespero dos marginalizados tornaram o processo incontrolável e entregaram a vitória ao descendente político de Pinochet.


Depois vieram as eleições turcas em que o projeto ultrarreacionário de restauração do Califado vence a oposição de um adversário que se apresentava como democrata, mas depois propunha medidas de cunho racista contra os refugiados sírios.
Em seguida, as eleições gregas, nas quais Mitsotakis, representante da aliança entre a ditadura financeira europeia e a oligarquia local, obteve uma grande vitória. Tsipras paga o preço da desilusão após o referendo de 2015, e com a derrota do DIEM25 desmorona a ilusão de democratizar a Europa, como se fosse possível democratizar o coração das trevas do supremacismo racista e colonialista.
Finalmente, o franquismo reconquista a Espanha.
Na primavera de 2022, o governo Sanchez selou um acordo infame com o Marrocos: uma traição ao povo saharaui em troca da contenção prisional de migrantes africanos. Ele esperava bajular os nacionalistas espanhóis e, como sempre, não funcionou.
Agora o círculo se fecha: a Europa se assemelha cada vez mais àquela com que Hitler sonhou, mesmo que os inimigos de hoje não sejam os mesmos do Terceiro Reich.
Agora está claro que o verdadeiro teórico do destino da Europa não é Toni Negri nem Yanis Varoufakis, mas Anders Breivik, que em uma confortável prisão norueguesa está desfrutando do sucesso de seu Manifesto pela independência européia. Antes de matar setenta e sete jovens na ilha de Utoya, ele havia de fato escrito que não concordava com Hitler, porque o velho Adolf não havia entendido que o inimigo dos europeus não são os judeus, mas os muçulmanos. E todos os outros de pele escura, é claro. Como há noventa anos, em 1933, a democracia na Europa acaba gerando monstros.
Diante dessa tragédia, a experiência do movimento francês contra o aumento do tempo de vida/trabalho - um movimento de amplitude e radicalidade sem precedentes - mostrou que não há mais possibilidade de mediação entre a ditadura nazi-liberal e o protesto social.
A alternativa entre liberais-democratas e nacional-soberanistas é uma ficção para tolos: Joe Biden rejeita os migrantes que vêm da fronteira sul com não menos violência do que Donald Trump os rejeitava. As regras com as quais os fascistas italianos rejeitam os migrantes foram estabelecidas pelo democrata Minniti, e as regras com as quais os fascistas italianos trabalham precariamente foram antecipadas pelos democratas Treu, Renzi e companhia. Quanto à guerra, finalmente, os democratas são a vanguarda heróica que defende a nação em armas enquanto por toda parte os gastos militares aumentam.
O excelente Presidente da República Italiana recorda os valores democráticos do século passado, enquanto a direita do governo o escuta com um sorriso de piedade: eles sabem que a vitória etnonacionalista é irreversível.
Irreversível é a palavra-chave para entender a fase em que entramos: nunca haverá qualquer retorno à ordem constitucional do passado. Diante da onda de migração e desespero vindo do hemisfério sul, a população branca, destinada ao declínio demográfico e político, reage com um retorno agressivo do supremacismo: é o supremacismo do decadente.
Aqueles que defendem as formas de vida e de governo do século passado não poderão inventar formas de vida felizes e solidárias, ainda que clandestinas, minoritárias e separadas de um mundo irreversivelmente mudado. Portanto é preciso partir da irreversibilidade dos processos ambientais, políticos e psíquicos, se quisermos imaginar como viveremos, como viverá a geração que se define como a última.

Nazismo sem suástica

Quando, na década de 1960, se percebeu as consequências da bomba atômica nas relações geopolíticas, mas também na psicologia da humanidade, Gunther Anders formulou a hipótese de que a humilhação causada pela tecnologia de extermínio determinaria um retorno do nazismo.
O Terceiro Reich do futuro, escreveu ele em uma carta ao filho de Eichmann, superará o que conhecíamos na década de 1930. Na verdade, para ser preciso, escreveu ele, o grande espetáculo do futuro fará o regime de Hitler parecer um ensaio em um teatro provinciano.
Agora, o grande show começou.
O etnonacionalismo agressivo com o objetivo de extermínio e o totalitarismo político são as duas características que melhor definem o nazismo; e embora a palavra "nazismo" se refira a um contexto histórico que não pode ser repetido, suas características fundamentais podem reaparecer de várias formas, com diferentes intensidades e em diferentes combinações. 
O autoritarismo ultranacionalista de Putin é inegavelmente uma característica ressurgente do nazismo. A opressão das minorias russas pela nação ucraniana também o é. O apartheid israelense, a reivindicação do Estado de Israel como um estado exclusivo dos judeus são evidências da evolução nazista do estado sionista. O extermínio intencional e sistemático dos migrantes que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo é a prova do fato de que o nazismo é a natureza profunda do povo europeu na era da agonia do mundo branco.
Uma antiga fábula reconfortante conta que o nazismo de Hitler foi uma exceção na história e que o mal absoluto se manifestou nele. Mas o mal absoluto não existe, porque o mal é sempre relativo a um contexto. A auréola de lenda satânica que acompanha a figura de Hitler serviu para os novos nazistas se diferenciarem daquele que foi derrotado no final da Segunda Guerra Mundial, aquele que explodiu seus miolos quando seu sonho venenoso desmoronou após dezenas de milhões de mortes e a devastação da Europa. Agora começou a devastação de todo o planeta e todos garantem, e prometem que são diferentes de Hitler. Significa apenas uma coisa: não fomos (ainda) derrotados. Para não perder nosso privilégio, estamos prontos a exterminar toda a humanidade.
Isso é o que está acontecendo.

A vitória superficial do geronto-fascismo

Na Itália, os vencedores das eleições de 1922 estão avançando para o fascismo total: eles preenchem todos os lugares disponíveis e chamam isso de hegemonia cultural. Eles criminalizam a dissidência dos ambientalistas e chamam isso de transição ecológica. Eles impedem que os barcos salvem vidas no mar e chamam isso de defesa da fronteira nacional.
Eles venceram e não haverá força política capaz de derrubar seu governo.
Venceram?
Se pensarmos em termos políticos, não há dúvida de que o etnonacionalismo conquistou o voto e o coração (podre) da população envelhecida mal dos italianos (e de todos os europeus). Mas quem pensa em termos políticos se detém na superfície das coisas. 
Sob a superfície há dois processos que tocam a dimensão antropológica, psíquica e biológica do devir do mundo.
O efeito de cinco séculos de colonização e extrativismo se manifesta na redução do espaço habitável do planeta, enquanto a população global continua (ainda que por pouco tempo) a se expandir. A fome, a sede, as mudanças climáticas, além das guerras armadas pelos grandes fabricantes de armas, empurram enormes massas humanas a se deslocarem de regiões africanas, asiáticas, centro-americanas para o norte do mundo, atraídas pela promessa sorridente da mídia e da publicidade.
Nem mesmo o extermínio sistemático pode deter a grande migração, como mostra o fluxo ininterrupto de barcos que tentam, nem sempre conseguindo, cruzar o Mediterrâneo ou o Rio Grande, ou todas as outras fronteiras que protegem a fortaleza branca.
Ao mesmo tempo, a idade média da população do hemisfério norte está diminuindo irreversivelmente. Do Japão à China, da Itália à Espanha, as mulheres pararam de procriar.
Na Coreia do Sul, um movimento feminista lança um programa baseado em quatro nãos: sem namoro, sem sexo, sem casamento, sem filhos.
Não se trata apenas do fato de que as condições econômicas, o custo dos aluguéis e o estresse do trabalho precário impedem que se tenha filhos. A questão é mais radical. Mais ou menos conscientemente, homens e mulheres de todo o hemisfério norte sentem que uma criança nascida hoje está quase certamente destinada a crescer em um mundo assolado por guerras, calor mortal, tristeza e depressão.
Mas se não bastassem as motivações culturais e psicológicas, existe uma causa física para a queda da taxa de natalidade (mesmo que os governos tenham o cuidado de não revelá-la): a fertilidade masculina despencou nas últimas quatro décadas.
De acordo com Shanna Swan, isso diminuiu 58%.
Segundo inúmeras pesquisas que estão sendo desenvolvidas sobre o assunto, a principal razão está nas disfunções hormonais produzidas pela difusão de microplásticos na cadeia alimentar.
E como se não bastasse, o desejo hipersemiótico evolui cada vez menos para uma forma sexual. A frequência das relações sexuais despencou, como mostram numerosas pesquisas. A tela digital absorve tempo e energia nervosa, e os níveis de testosterona ainda diminuem devido aos microplásticos, e claro que os governos ao redor do mundo têm o cuidado de não proibir ou pelo menos reduzir a produção desse fator de extinção sistemática.
Para concluir: a vitória do etnonacionalismo (ou fascismo ou soberania, chame como quiser) é politicamente irreversível. Mas é uma vitória escrita na água, se pensarmos na evolução histórica e antropológica da mutação planetária.
De fato, a agonia do mundo branco é tão irreversível quanto a vitória superficial da direita política. Mas essa não é a razão para se alegrar: a cultura branca não pode aceitar a ideia de declínio, e algo nos permite prever que ela recorrerá à guerra de extermínio como a anfetamina necessária para neutralizar sua depressão e como uma ferramenta para reafirmar sua dominação.
Como disse o herói bíblico cego pelos palestinos: "Que Sansão morra com todos os filisteus".

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