Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Etienne Balibar: "A fonte permanente da vida democrática é seu elemento insurrecional"

[Entrevista de Etienne Balibar a Francesco Brancaccio / Francesco Pavin (Global Project), publicada em CTXT, em 3/5/2023. Tradução: Haroldo Gomes]

Nesta entrevista com o filósofo marxista Étienne Balibar, realizada em abril em Paris, são discutidos aspectos estratégicos, composição social e política, práticas e valores dos movimentos de protesto na França, principalmente o movimento contra a reforma da previdência e o movimento Soulèvements de la terre contra a devastação dos ecossistemas rurais. Até hoje, o povo francês continua de espada erguida, sem sequer falar em derrota ou vitória, enquanto as lutas na França, como a guerra na Ucrânia, permanecem ausentes das discussões sobre a unidade da esquerda na Espanha.

Ouvimos sua apresentação no workshop sobre a greve que aconteceu na Universidade de Paris 8 Saint-Denis-Vincennes. Achei muito interessante o conceito de "insurreição democrática" que você propõe. Você tratou disso acrescentando outro aspecto importante: que a insurreição não é algo que virá ou ainda está por vir, mas que é algo que já está aqui e agora. Você se importaria de voltar a este ponto?

Sim, a insurreição não é algo que ainda está por vir: ela está acontecendo agora. Usei esse termo de propósito, porque não acho que existam outros melhores, mas é claro que temos que discutir o que queremos dizer com isso. Refere-se, aliás, a coisas que escrevi há muito tempo e que continuo a defender. Não rejeito o termo democracia, pelo contrário: acredito que a raiz permanente, a fonte permanente da vida democrática é justamente seu elemento insurrecional, ou seja, a rejeição da ordem existente, dominante e desigual. Por muito tempo trabalhei com um par antitético, insurreição-instituição, que é um pouco semelhante ao par poder constituinte-poder constituído de Toni [Negri].

E depois há uma tradição no uso desse termo que vem da Revolução Francesa e também do contato que tive com norte-americanos e sul-americanos; e da grande avenida da Cidade do México chamada Insurgentes; e a Revolução Americana, que usou muito a categoria "The Insurgents". E é também uma palavra da Comuna de Paris. Então me parece importante usar esse termo porque ele preserva a ideia de ruptura com o poder e, consequentemente, com o que é dominante.

Concordo com esta leitura, porque dá a possibilidade de imaginar e construir novas instituições a partir da parte mais próxima das pessoas, o território. Por exemplo, outro dia estávamos falando sobre municipalismo.

Sim, não há dúvida sobre isso, mas também não quero me envolver nessa discussão. Houve alguém que fez uma intervenção muito interessante durante o debate, evocando Rojava e introduzindo o tema do municipalismo no sentido de Murray Bookchin e outros. Esta é também uma perspectiva muito interessante, mas não quero que pensem que estou a imaginar uma espécie de reconstrução anárquica do sistema político onde tudo se baseia nas comunas municipais. 

Acho muito importante refundar a prática democrática em contato com lutas e elementos muito fortes de autogestão no nível local. Mas logo após o debate começamos a falar sobre o Estado, sobre os serviços públicos.Se refletirmos sobre esses elementos, não acredito de forma alguma que em um contexto como o do Estado na França, e mais geralmente na Europa, o Estado possa ser abolido e uma federação de comunas municipais colocada em seu lugar.

A França é um país, como dizem, jacobino ou bonapartista - às vezes há uma grande confusão entre esses dois aspectos -, e depois há raízes ainda mais antigas que o tornam um país em que o centralismo estatal é absolutamente monstruoso. É uma ideologia compartilhada tanto pela direita quanto pela esquerda. Toda a sociedade está organizada em torno do poder central. Por isso temos que fazer um esforço muito importante para desconstruir, como dizia um dos meus professores, Jacques Derrida, essa representação totalmente vertical ou verticalista do político.

Refletindo mais uma vez sobre a relação entre insurreição democrática e instituições, certamente compartilhamos a perspectiva da insurreição como elemento fundador e dinâmico da democracia. Mas se falamos das instituições do Estado, esta perspectiva implica claramente que as instituições são capazes de se reformar a partir do momento da insurreição. Ora, o problema é que as instituições – pelo menos as estatais – não respondem hoje dinamicamente ao impulso insurrecional, por exemplo, reformando-se. Pelo contrário, a situação política, no caso de Macron e seu governo, está completamente fechada e ousaria dizer bloqueada.

Claro que concordo. Não tenho ilusões sobre as capacidades – e se você quiser, podemos falar também de Macron – da democratização endógena do sistema estatal na sua forma atual e com base nas suas próprias instituições. A questão é se temos um conceito puramente estatal do que chamamos de instituições, ou se tentamos ter um conceito mais amplo de instituições. Há também uma tradição no pensamento de esquerda – e aqui estou muito longe do que aprendi com meu professor Althusser, evoluí nesse sentido – que tem a ver com o pensamento crítico, no sentido amplo do termo, que usa a categoria instituição em um sentido muito mais amplo, mais ativo, mais revolucionário do que o significado legal e estatal do termo. Por exemplo, Cornelius Castoriadis falou da instituição imaginária da sociedade; Miguel Abensour empregava a ideia da capacidade instituinte dos movimentos populares, etc. São formas de dizer que os movimentos que questionam a verticalidade do Estado ou o monopólio das classes dominantes sobre o governo da sociedade não são apenas movimentos que destroem, mas que inventam, organizam e propõem formas de organizar a sociedade.

Que diferença você acha que existe entre este movimento e os anteriores (o movimento contra Loi Travail, os Coletes Amarelos, etc.), em relação ao ato insurrecional?

Na minha opinião, os outros movimentos também podem ser descritos como movimentos insurrecionais.

Existe então uma continuidade entre esses diferentes movimentos ou momentos da mesma tendência insurrecional?

Sim, claro.

Poder-se-ia mesmo falar de uma insurreição que estaria assumindo um caráter permanente?

Quero ter os pés no chão e ser realista. Não devemos perder de vista que, de alguma forma, durante vários anos – é difícil estabelecer um ponto de partida preciso – os movimentos sociais que vemos na França tiveram todos, inicialmente, um caráter defensivo. São movimentos que reagem com mais ou menos força, com paixão ousaria dizer, com esperança política, ao trabalho de demolição que o poder neoliberal está realizando na França. Tudo isto está cheio de paradoxos: quando se pergunta o que Macron está a imaginar neste momento, o que se passa na sua cabeça, pode-se dizer simplesmente que quer ser a Margaret Thatcher francesa. Macron pensa assim. Embora não seja extraordinariamente otimista quanto à correlação de forças, acredito que as condições que permitiram a Margaret Thatcher obter uma vitória quase total sobre o movimento operário britânico e, em particular, sobre o sindicalismo e, de maneira mais geral, sobre a sociedade, as classes trabalhadoras, não são as mesmas na França.

Enfim, surge uma pergunta e é a seguinte: por que o capital financeiro precisa de uma Margaret Thatcher na França em 2023? Por que o capitalismo francês está quarenta anos atrás de outros países semelhantes no desmantelamento do estado de bem-estar que foi criado após o fim da Segunda Guerra Mundial? Uma longa história poderia ser escrita sobre isso.

As razões são várias, mas o certo é que todos estes movimentos, um após o outro, apresentam sobretudo um carácter defensivo. Há também elementos de desespero nisso tudo, um aspecto que me impressiona muito. No dia 5 de abril, no debate de Paris 8, por intervenção de uma jovem companheira, surgiu um verdadeiro desespero de uma categoria de estudantes que não comem mais; em um sistema universitário que se desintegra gradualmente, os jovens têm a impressão de que seu futuro é sombrio.

Depois havia o camarada que falava pelos banlieues. Podemos pensar que é bom que alguém venha nos dizer que não devemos esquecer os imigrantes, que não devemos esquecer os banlieues, mas no fato dele falar com tanta veemência eu vi outra coisa: que a vida é insuportável nas banlieues. Então, quando se fala que o movimento esquece essas coisas, é verdade e mentira ao mesmo tempo, porque o interessante do que está acontecendo agora é que, se pegarmos a greve dos lixeiros ou mesmo as manifestações, não há uma fratura racial intransponível que separa os imigrantes dos trabalhadores “franceses”.

Mas o problema existe como tal, e se tentarmos refletir sobre o futuro ou as possibilidades de um movimento insurrecional ou de uma insurreição pacífica em um país como a França, logo nos perguntamos como superar as fraturas entre a classe trabalhadora no sentido tradicional do termo, por um lado, e, por outro lado, os jovens desempregados das banlieues que descendem maciçamente de imigrantes das ex-colônias francesas. O abismo descrito por alguns teóricos radicais da "luta racial" não existe, mas sim um problema, uma contradição. Pensando nesse tipo de problema, no pequeno texto publicado no L'Humanité – dispunha de apenas 3.000 caracteres!– usei a famosa fórmula do presidente Mao sobre “contradições entre o povo”. Há muitas coisas sobre o presidente Mao que eu não gosto, mas acho que essa fórmula é muito importante.

Mas é justamente o elemento insurrecional que permite não limitar os movimentos ao seu caráter defensivo.

Parece-me importante que na Nuit Debout, no movimento dos Coletes Amarelos e nas atuais greves contra o alargamento da idade da reforma não tenha havido apenas desespero, e que não se trate apenas de lutas defensivas. Estes movimentos trazem também uma dimensão construtiva, um elemento de esperança e imaginação para o futuro. Não se trata apenas de defender conquistas, por mais fundamental que seja a defesa dessas conquistas. Está cada vez mais presente a dupla ideia de que a sociedade pode se organizar de outra forma e que, por outro lado, os de baixo, como diria nossa tradição política comum, têm uma real capacidade de fazer a sociedade funcionar de outra forma.

Claro, há experiências recentes que tiveram um papel importante para alimentar essa ideia. Não é uma questão de espontaneidade. Não acho que a ideia das pessoas que saem às ruas seja: "Nós somos o povo, façamos as coisas com as nossas próprias mãos" contra esta casta de oligarcas e tecnocratas. Acho que as pessoas não acreditam – isso é um pouco do mito da Comuna de Paris – que basta ter assembleias do povo para governar um país. São perfeitamente conscientes de que são necessários não apenas servidores públicos, mas também organizações e estruturas. Mas aqueles que nos governam mostraram recentemente que há uma espécie de impostura na pretensão das classes dominantes de serem as únicas capazes de governar.

A Covid-19 tem sido uma experiência muito interessante nesse sentido. Quer nos hospitais, quer nas escolas ou institutos, tudo teria desmoronado, nada teria podido funcionar se o grupo de funcionários hospitalares ou professores não tivesse compensado as contradições e desordens causadas pelas instruções vindas da administração central. 

Dessa forma, o povo experimentou uma capacidade coletiva de organização e governo, e sabe que esse poder tecnocrata neoliberal que diz mandar em tudo, na verdade causa desordens em todos os lugares. Claro, podemos e devemos nos questionar se não há uma estratégia perversa – e voltamos ao nosso ponto de partida – e totalmente deliberada para desorganizar os grandes serviços públicos a fim de favorecer sua privatização, ou seja, estabelecer sistemas de serviços fundamentais totalmente privados e organizados por classes, sistema com ricos ou ultra-ricos com escolas privadas, hospitais privados, clínicas privadas, pensões capitalizadas, etc., por um lado, e as pessoas comuns com serviços degradados, por outro lado. Embora elementos da tradição da “République Sociale” tenham relativamente desacelerado esse processo, as coisas também estão ruins na França: basta ir a uma consulta hospitalar para verificar que há falta de pessoal. Então pode ser que haja uma estratégia perversa por parte dos que estão no poder: na verdade, vemos que enquanto eles dizem querer salvar os serviços públicos, estão destruindo tudo.

Para finalizar, não estou dizendo que o movimento social que estamos acompanhando, que vem depois de outros movimentos, vai conseguir mais do que os anteriores reverter o rumo dessa história, dessa política. No entanto, estou muito impressionado com o fato de que cada vez que a oportunidade se apresenta, cada vez que algo essencial é defendido, essa dupla dimensão construtiva e esperançosa reaparece.

E há outra coisa que é instigante: os Coletes Amarelos, por exemplo, eram tão populares porque muitas pessoas na França pensavam que essas pessoas falavam por todos nós e lutavam por nós. Não é um movimento que envolveu a maioria dos cidadãos franceses; a “Nuit Debout” também não, embora por razões diferentes. Não devemos idealizar o movimento atual, nem todos participam dele da mesma forma, mas nesse sentido acredito que as pesquisas são reais quando mostram que a grande maioria dos franceses apoia o movimento.

E há outros sinais: se a grande maioria dos trabalhadores, precários ou não, não estivesse se afogando no aumento do custo de vida e nos salários cada vez mais baixos, teríamos quatro ou cinco vezes mais pessoas em greves e manifestações. Li o texto de Frédéric Lordon, que afirma que o poder agora só se mantém graças ao fio que o une à polícia e ao Darmanin [Ministro do Interior]. Essa análise não me parece correta: o poder tem todos os tipos de recursos, inclusive uma França de direita ou de extrema direita com a qual pode se aliar. Mas o que é certo e surpreendente é que o poder se encontra em estado de isolamento e impotência política.

(...) 

Se olharmos para a França do ponto de vista europeu, neste momento ela tem uma dimensão de luta institucional que outros países não têm. Como você explica isso?

Sim, é impressionante, embora eu tenha que tomar cuidado para não cair no narcisismo.

Acho importante fazer essa pergunta a si mesmo, também porque você falou de esperança. E concordamos, também precisamos de esperança. Na sua opinião, este “modelo francês” de lutas pode levar outros países europeus a se mexerem? Estou pensando na Alemanha ou na Itália, por exemplo.

Ai, amigo, não sei. Porque precisamente eu vivi a esperança, seguida depois pela desilusão, de que se criasse na Europa algo como um espaço político comum, no qual pudessem circular não só as ideias e os projectos organizativos, mas também os movimentos sociais e políticos surgidos de baixo ṕudessem se animar e se reforçar mutuamente.

Nunca pensei que as fronteiras fossem desaparecer; sei bem que as tradições nacionais são fortes, que o poder se organiza em escala nacional e que também o são as lutas dos trabalhadores e, em geral, das lutas populares. No entanto, eu acreditava não só no internacionalismo, mas também na internacionalização das dinâmicas políticas. E essa ideia alimentou em mim e em outros a esperança e o objetivo de lançar um movimento constituinte, expressão que usei na época da crise grega em um texto escrito junto com Sandro Mezzadra e Frieder Otto Wolf, e não é por acaso que assinado por um francês, um alemão e um italiano. O Sandro tinha mencionado esse conceito, um “momento constituinte da Europa”, e a partir daí escrevemos juntos. Referíamo-nos a uma alternativa política concebível ao nível da própria Europa, e a nosso ver isso ganhava ainda mais importância na medida em que todos rejeitávamos o nacionalismo, o soberanismo que tanto influencia uma parte da esquerda de cada país. 

De tempos em tempos alimentamos a esperança de que causas comuns a todos os povos da Europa pudessem servir de cimento para a cristalização, para a mudança de escala do espaço das lutas sociais e políticas, algo tanto mais necessário quanto é um recurso fundamental utilizado pelo capitalismo atual para organizar poderes reais de decisão tanto em nível nacional quanto supranacional. No nível transnacional, não há mais nenhuma forma de protesto, pelo menos na aparência, exceto o nacionalismo.

Para nós, as causas em jogo eram outras. Pensávamos que era o apoio à experiências de esquerda ou extrema-esquerda, como o Syriza na Grécia ou o Podemos na Espanha, a resistência à financeirização extrema.

Também pensamos que era a defesa dos direitos dos migrantes e refugiados.

O movimento contra a crise climática, “fin du monde, fin du mois”, talvez pudesse ser uma resposta nesse sentido de repensar uma nova dimensão que ultrapassa fronteiras.

Aí concordamos, amigo! É o candidato mais sério para uma transnacionalização das lutas, e talvez tenhamos errado em não falar sobre isso até agora. E aqui tocamos em outra contradição dentro do povo. É muito interessante e pode ser decisivo que neste momento haja na França, ao mesmo tempo, embora não na mesma escala, um movimento de protesto social e defesa das conquistas do estado de bem-estar, por um lado, e de outro, um movimento cada vez mais visível contra a destruição do meio ambiente e, em particular, contra a política de capitalismo extrativista do meio ambiente. Esta é uma causa potencialmente transfronteiriça.

É claro que não há fusão absolutamente espontânea dos dois, e justamente por isso, como muitos outros, digo que a discussão deve acontecer entre as bases e, claro, com mediadores, sindicalistas e talvez intelectuais, para garantir que as pessoas falem, que a situação não fique estagnada. Por um lado – e é claro que não quero apresentá-lo de forma caricatural – teríamos trabalhadores que têm interesse, ou que acreditam ter interesse na continuação do produtivismo, porque é aí que o seu emprego é derivado, seu nível salarial; e, por outro lado, jovens e não tão jovens – e eu sou um deles – que estão apegados à ideia de que só podemos salvar algo do meio ambiente com a condição de nos comprometermos no caminho do decrescimento. Isso é potencialmente transnacional.

O conceito de decrescimento. Por muito tempo não aderimos a essa visão de decrescimento. Acredito – e esse é o debate que temos na comunidade política a que pertenço – que devemos adotar isso como um ponto cardeal de luta.

Eu também acho, mas temos que ser sérios e explicar que decrescimento não é o fechamento de todas as fábricas e a volta à vida dos caçadores-coletores amazônicos. É uma transformação da sociedade industrial.

E, portanto, também uma rejeição a esse modelo capitalista de sociedade industrial que destrói a vida.

Sem dúvida!

Talvez possamos formular assim: trata-se de refletir e comprometer-se concretamente com a questão estratégica da mudança do modo de produção.

Sim, precisamente, trata-se de uma mudança no modo de produção, e refiro-me aqui à definição elementar da expressão “modo de produção”.

E nessa mudança necessária no modo de produção também há coisas que devem “crescer”, como serviços públicos, atividades assistenciais, circulação de conhecimento, educação, etc.

Sim, claro, e é aí que entramos no cerne do problema, porque é preciso estudar a necessidade de um planejamento democrático. Ou seja, um planejamento que envolva a iniciativa de toda a população de baixo (e não o Gosplan que vem de cima) na transformação dos modos de vida e serviços. Se você diz que precisa reorganizar os serviços de saúde e médicos, chega imediatamente ao cerne do problema. As pessoas têm tumores; a vida humana é feita de flutuações permanentes entre o normal e o patológico de diversas formas, e para tornar tudo isso suportável, são necessários uma série de meios técnicos, e por isso é preciso produzi-los, não se trata de voltar a ser camponeses na Idade Média.

E, nesse sentido, poderia ser feita uma ligação entre essa questão ecológica e a reforma previdenciária. Na Universidade de Paris 8 você insistiu na importância do fato de que a mobilização começou em torno da rejeição da reforma previdenciária, e que a questão das pensões não é apenas um "pretexto" para se opor às políticas de Macron em geral, mas uma questão fundamental sobre que tipo de sociedade queremos construir. É uma questão decisiva, porque está em jogo a relação entre tempo de trabalho e tempo de vida; e a mudança no modo de produção implica também nisso, repensar essa relação numa perspectiva ecológica. Abandonar a corrida cega do produtivismo significa provavelmente nos perguntarmos o que devemos produzir e como devemos fazê-lo, e refletir sobre o fato de que há uma série de atividades em nossas vidas que já, aqui e agora, não respondem à lógica comercial e que devem ser reforçadas.

O tema das pensões levanta toda uma série de questões políticas muito interessantes. Um tema que surge constantemente nos discursos da classe dominante neste debate é: “Como vamos defender a nível europeu um sistema de pensões que apresenta uma total disparidade face ao que se faz em todos os outros países europeus? Em todos os lugares a idade de aposentadoria é 65 ou mesmo 67, como na Alemanha ou na Itália, e na França você se aposenta aos 62, sem fazer nada! Tais privilégios não podem ser defendidos!” Isso é complementado pelo discurso de Macron, que não para de repetir que os franceses não trabalham o suficiente, que são preguiçosos.

Poderíamos entrar em detalhes para entender o que está por trás da abstração desses números, ou seja, até que idade as pessoas realmente trabalham em outros países europeus, e também na França, levando em consideração que o limite de 62 anos não significa, sem dúvida, que o mundo acabe aos 62 anos, às vezes ficam desempregados nessa idade ou continuam trabalhando por mais tempo porque o valor da aposentadoria aos 62 anos ainda é muito baixo.

E então poderíamos considerar que, fundamentalmente, quanto mais os trabalhadores puderem se proteger da superexploração, melhor para eles e, nesse sentido, em vez de culpar os franceses por trabalharem menos que os italianos e os alemães, devemos desejar aos italianos e os alemães se aposentarem mais cedo!

Eu disse rapidamente no meu texto: É surpreendente ver até que ponto o debate sobre aposentadorias comprova o conceito marxista ou marxiano muito simples, mas fundamental, do valor da força de trabalho e sua exploração. Com a condição, é claro – e isso está na própria lógica de Marx, creio – de sairmos do ponto de vista microeconômico, ou seja, de acreditar que o valor da força de trabalho só é definido na escala do dia a dia e do ano.

Pelo contrário, é um conceito que diz respeito a toda a vida do trabalhador. Se considerarmos o problema de saber a que preço a força de trabalho é comprada e vendida, vendida pelos trabalhadores e comprada pelo capital, fica claro que no sistema atual – e isso não acontecia na época de Marx – devemos incluir nesse valor tanto os salários que as pessoas ganham durante suas vidas quanto as pensões que recebem posteriormente. E assim, deste ponto de vista, a atual ofensiva do capital francês consiste em exercer a máxima pressão sobre essa remuneração total. É a mesma lógica que encontramos no capítulo de O Capital dedicado à jornada de trabalho, só que aqui não estamos raciocinando no plano da jornada de trabalho, mas de toda a vida.

Se colocarmos o problema em termos da distribuição do valor produzido por toda a sociedade, parece-me que a questão muda de sentido. A desigualdade de distribuição não para de crescer no sistema atual; o desmantelamento das conquistas tradicionais da seguridade social e do sistema previdenciário faz parte dos meios que o capital utiliza para reduzir ainda mais o preço pelo qual compra a vida dos trabalhadores. Portanto, a defesa de todos os aspectos dessa remuneração, direta e indireta, está no cerne da luta de classes!

Neste ponto, mais do que se perguntar se é justo se aposentar aos 62, 65 ou 67 anos, a pergunta que se deve fazer é se os trabalhadores, inclusive os de serviços, ou seja, aqueles que constituem a grande maioria da sociedade, têm o suficiente para viver com dignidade e corretamente no mundo de hoje. A resposta é a seguinte: Embora seja verdade que partimos de um nível muito alto, porque os países do Norte se beneficiaram da imposição imperialista e o movimento operário impôs muitos compromissos ao capital durante um século e meio, a tendência geral se encaminha para a precariedade, para a proletarização dos padrões de vida.

Mas há outro aspecto do sistema previdenciário que se deve insistir, e é aquele que você mencionou antes: Não se trata apenas de como se distribuem os produtos do trabalho, tendo em conta as grandes desigualdades existentes entre homens e mulheres, mas sobretudo de como se divide a vida entre o trabalho e a atividade livre.

O trabalho é uma categoria que precisa ser discutida, refletida, criticada; é verdade que uma tradição do marxismo contemporâneo, penso em Postone e outros, afirma que a própria noção de trabalho é uma noção capitalista. Isto é certo. Embora Marx tenha escrito que o objetivo da sociedade comunista é reduzir ao máximo o tempo de trabalho para liberar o máximo de tempo possível para a atividade livre, na realidade – posso estar errado – não acredito que o trabalho seja puramente escravidão. Ao contrário, acredito que podemos e devemos pensar que existe uma condição de trabalho que deve ser organizada de outra forma para realizar a própria vitalidade, a própria potência de ação.

No entanto, a verdade é que, por outro lado, hoje é fundamental saber se os indivíduos e as sociedades têm tempo livre para outras atividades que não as que estão ao serviço de uma entidade patronal. Neste debate sobre as pensões, é oferecida uma imagem caricatural do aposentado como alguém que está sentado no seu sofá em frente à televisão – é a imagem caricaturada do prolo francês, que vive à mesa posta pela mulher e que no dia da aposentadoria se senta no sofá com o cigarro a assistir televisão -. Mas não é isso que os aposentados fazem.

Participam, por exemplo, em atividades associativas, na economia social e solidária; realizam múltiplas atividades que participam da produção de riqueza na sociedade.

Eu penso que sim! E isso fica claro se enfatizarmos a importância dos cuidados, dos serviços e da solidariedade. Marx tinha boas razões para dizer que o trabalho é socializado, mas o trabalho organizado de maneira capitalista cria muito pouca solidariedade dentro da sociedade. E é por isso que é interessante ver que as pessoas que não são mais obrigadas a ir diariamente ao seu escritório, à sua empresa, são as que transmitem sua vitalidade, seu conatus, como diria Spinoza, ao campo das atividades associativas, sem as quais a sociedade não poderia viver. Portanto, são pessoas extremamente úteis. E não há necessidade de se perguntar como se avalia o valor de mercado de suas atividades, porque não são atividades de mercado. Não estou dizendo que seja o comunismo, não sei, mas certamente é o não-capitalismo, sem o qual as sociedades não poderiam se sustentar.

É talvez o que podemos chamar de comuna.

Claro, é uma forma de comuna, uma das formas de comuna. Há muitas coisas que vão nessa direção: alguns dias atrás eu estava lendo um artigo no Le Monde que dizia que o debate francês sobre as pensões deve causar espanto no leitor do Québec, porque lá eles têm o melhor sistema previdenciário do mundo. Esse sistema é baseado em capitalizações individuais, e eles são capazes de explicar que os fundos de pensão investem escolhendo eticamente investimentos “limpos” em todo o mundo, da África à China, o que significa que seu sistema seria um sistema internacionalista e não nacionalista! Cada um trabalha para si, cada um contribui para si e, no final da história, cada um vive sozinho e morre sozinho! Não estou dizendo que o problema previdenciário é tudo, e também tenho uma tendência para o que Hegel, e depois Marx, chamou de empirismo especulativo, ou seja, quando algo acontece você o aborda como uma aposta teórica fundamental. Mas certamente não é uma batalha conservadora.

Não há nada de conservador nisso, e se o "jeunesse", os protagonistas do movimento e dos "débordements" após o recurso ao art. 49.3, levaram tão a sério a questão das pensões, é porque vêem nesta batalha algo que remete imediatamente para a questão da vida da sociedade, e daí para a questão da vida do planeta, da ecologia. Um cartaz muito engraçado circulou sobre isso: “Quero me aposentar antes do fim do mundo”.

Sim, eles são muito engraçados! Talvez possamos ver em suas bandeiras e em sua experiência uma forma de articular organicamente a questão da precariedade e da aposentadoria. Em alguns aspectos, a aposentadoria é a antítese da precariedade. Pode parecer paradoxal, embora não seja, que os jovens, cujo primeiro problema é entender as condições em que poderão encontrar um emprego, não saiam em busca de segurança, como se fossem pequenos burgueses.

Seu objetivo não é apenas ter um salário no final do mês, embora isso seja importante. Eles gostam de fazer outras coisas na vida e não apenas ir ao escritório. E nesse sentido o teletrabalho não resolve nada. Eles querem fazer outras coisas em suas vidas, militar pela ecologia ou inventar novas atividades artísticas e culturais, mas seu problema imediato é a precariedade. Por um lado, eles são impedidos de fazer planos pessoais e, por outro, as formas de trabalho que foram construídas por praticamente um século estão sendo demolidas.

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