Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

"A rejeição ao comunitário é o erro mais grave da cultura dominante"

[Entrevista de Esther Peñas com o filosofo Eduardo Infante, publicada em CTXT, em 4/5/2023. Tradução: Haroldo Gomes]

Aquiles en TikTok. El camino a la virtud (Ariel), com este título provocativo, o filósofo Eduardo Infante (Huelva, 1977) reivindica o papel da sabedoria clássica como conhecimento necessário para sermos cidadãos plenos, em vez de adaptar a formação dada nas escolas à “formação industrial”. Na opinião desse pensador, a virtude não pode ser praticada se não estiver dentro, em referência e a serviço de uma comunidade.

Devolvo a pergunta que aparece como citação no frontispício do livro: a virtude é ensinável?

Vou lhe responder com um enigma: a virtude continua, e continuará, ora sendo ensinável, ora não. A virtude pode ser ensinada, mas se e somente se o aluno quiser aprendê-la, pois o fruto dessa educação nunca é o que o educador oferece, mas o que o aluno leva. A educação da virtude só pode ser realizada a partir da convicção de que estamos diante de um ser livre. Só quem realmente quer ser um bom cidadão pode ser ensinado a ser um bom cidadão, caso contrário, nada mais faríamos do que arar, repetidamente, um campo que não foi semeado. Como plantar essa semente? Aprendamos com Sócrates: com tratamento afetivo. Sócrates educou através da poderosa impressão que sua personalidade causava. O brilhantismo que emanava era o que levava muitos jovens a desejarem a virtude que Sócrates encarnava e a imitá-lo com a esperança de um dia se tornarem tão íntegros quanto ele. Sócrates não dava aulas magistrais sobre a virtude, não dava palestras nem doutrinava, não comentava textos de autoridades, não definia conceitos, mas afetava com sua maneira de ser e viver. A educação socrática da virtude é uma educação do afeto, ou talvez melhor, pelo afeto. Educar eticamente alguém não é coagir, por na linha, submeter, impor, pois todo aluno é um ser livre e, portanto, sempre poderá dizer: "E se eu não fizer isso?"

Por que, de todos os heróis, você escolheu Aquiles como emblema?

Porque Aquiles é uma referência eterna que compartilha as virtudes do fogo: dá luz às nossas existências e inflama o calor ao coração. Os hexâmetros de Homero não descrevem, mas prescrevem uma ética da virtude cujo preceito fundamental é "tornar-se o que você é", ou seja, admirar a melhor versão de nós mesmos e lutar por alcançá-la. Modelos eternos como o de Aquiles nos convidam a superar nossos próprios limites, a amar a beleza, a justiça, a verdade e o bem.

Qual é o principal inimigo da virtude hoje?

O individualismo. A rejeição ao comunitário é o erro mais grave da cultura dominante: a virtude não pode ser praticada se não estiver dentro, em referência e a serviço de uma comunidade. Para que uma habilidade se transforme em virtude, é preciso colocá-la à disposição dos outros, construindo assim um comum-unidade e uma harmonia. Toda pedagogia da virtude pressupõe uma transcendência da individualidade. Nem todas as habilidades são virtudes. A perícia de um banqueiro para espoliar seus clientes, por exemplo, não é uma virtude. A virtude é apenas aquela excelência que melhora tanto o indivíduo quanto a comunidade. A virtude ou é pública ou não é.

As escolas (que etimologicamente têm a ver com o lazer, ou seja, com o "inútil") deixaram há muito tempo de se preocupar em formar bons e educados cidadãos e tornaram-se fábricas de futuros trabalhadores competentes. O que isso significou para a qualidade das democracias?

A crônica de uma morte anunciada; o começo do fim. Os gregos sabiam que o fundamento sobre o qual se baseia a democracia é a cidadania. Não há democracia sem cidadão e não há cidadão sem uma educação que eleve o ser humano a esta condição política. Se quisermos ser realmente originais na educação, devemos voltar às origens e nos perguntar por que nossa escola é pública, gratuita e obrigatória. Se o objetivo da escola fosse apenas formar os perfis profissionais exigidos pelas grandes corporações, bem, com todo o respeito, que se pague a Amazon por isso. O objetivo da escola na democracia é formar cidadãos. É bom que nos preocupemos que os nossos jovens se tornem bons profissionais; mas é melhor que nos preocupemos que se tornem cidadãos idôneos, com elevados ideais éticos, que desenvolvam suas capacidades físicas e intelectuais. A triste verdade é que a nova escola despojou as crianças da educação da alta cultura e da cidadania para serem instruídas na formação industrial. As artes liberais foram tiradas deles para condená-los às servis. Ninguém lhes diz que nasceram para serem cidadãos e, assim, a liberdade passou a ser definida como servidão voluntária, a igualdade como mediocridade e a fraternidade como lastro que os impede de seguir em frente. Estamos carentes de virtudes públicas. Reclamamos da falta de exemplaridade dos nossos políticos, mas os nossos políticos são apenas um reflexo do estado de virtuosidade em que se encontram os nossos cidadãos. Reclamamos que nossos políticos são péssimos oradores, agressivos em seus discursos, incapazes de chegar a um consenso, sem visão elevada, mas como vamos com essas virtudes públicas? Como nos comportamos em uma assembléia de uma comunidade de vizinhos? O que nossa democracia precisa é de uma revolução moral. Ninguém nasce com as habilidades necessárias para ser um bom cidadão, elas devem ser aprendidas e exercitadas.

Tiktoker, streamer, youtuber, instagramer... o que os torna radicalmente diferentes de um professor?

Um professor significa literalmente "aquele que sabe mais". Ser professor é ter autoridade. Toda educação para a virtude deve ser autoritária, não no sentido de impor ideias pela força, mas no de propor um exemplo de vida que engrandeça, promova e faça progredir a pessoa, pois as crianças crescem observando e imitando modelos que tomam como ponto de referência. Ter autoridade significa ajudar, completar, expandir, apoiar, consolidar, enriquecer, aperfeiçoar e dar completude a algo. Os romanos distinguiam a auctoritas, o modo de ser que implica o bem para o outro, da potestas, a capacidade de impor sua vontade sobre o outro. O número de curtidas e visualizações do tiktoker e do youtuber dá a ele uma potestas sobre a atenção que a criança confunde com auctoritas. E assim, o menino entende que para abrir caminho no mundo deve replicar o estilo de vida peculiar do tiktoker: transmitir ao vivo a vida privada e fazer o que for necessário para alcançar o sucesso que pode ser quantificado em número de visitas e traduzido em dinheiro. Os velhos modelos o eram por sua vida pública e não por sua vida privada. A vida privada era propriedade exclusiva do indivíduo e uma fronteira que uma lente de câmera não poderia ultrapassar. Os novos modelos, por outro lado, obtêm sua fama tornando públicas suas vidas privadas e, assim, criando uma falsa impressão de proximidade em seus telespectadores.O influencer se coloca como modelo não pela posse de alguma virtude, mas pela confiança produzida pela falsa sensação de compartilhar sua privacidade com outras pessoas.

Redes sociais, elas nos infantilizaram?

As redes sociais funcionam como um bálsamo para suportar a terrível sensação de solidão e irrelevância que o indivíduo moderno sente. O preço a pagar por ter desrespeitado todos os deveres para com os outros é não ser nada para ninguém. Usamos as mídias sociais como substitutos das comunidades que destruímos para dar uns aos outros carinho digital e relevância virtual. Mas a verdadeira relevância só é fornecida por outros membros de uma comunidade quando alguém contribui com um bem ou se torna um bem para os outros. Uma verdadeira comunidade é uma rede de solidariedade em que todos contribuem e todos recebem. Se toda comunidade se baseia na reciprocidade, não há melhor maneira de retribuir o que foi recebido do que se esforçar para ser virtuoso: ser um bem para os outros. Mas nas redes sociais os outros são objetivados, usados, monitorados, capitalizados e instrumentalizados de acordo com o desejo ou estado de espírito do indivíduo. Não há nada mais narcisista do que uma selfie em que não apenas os outros, mas a própria realidade se reduz a cenário do próprio umbigo.

Numa época, a nossa, em que tudo tem de ser vertiginosamente rápido (não sabemos bem porquê nem para quê), é possível fazer um discurso sério sobre qualquer tema?

Tudo é rápido porque toda a existência foi colonizada pelo tempo de trabalho. Numa sociedade que reduziu o campo do desenvolvimento pessoal ao mundo da produtividade, a mesa de trabalho tornou-se o centro a partir do qual construímos a nossa existência. A mesa de trabalho absorve, como um enorme buraco negro, tudo o que cai em seu campo gravitacional: a amizade, a saúde, o gozo dos sentidos, o riso estridente, a família, o diálogo sereno, o passeio pelo simples prazer de passear, a leitura que prende até altas horas da noite, a contemplação, a brincadeira e, enfim, tudo o que não pode ser transformado em capital. Fazer da mesa de trabalho o lugar para alcançar a realização humana fez com que acabássemos nos auto-explorando. Já não é um patrão implacável que nos obriga a mendigar tempo à família, aos amigos ou à saúde para oferecê-lo à mesa de trabalho; nós mesmos é que o roubamos porque acreditamos que é aí que vamos crescer. Compramos a ideia de que o mundo do trabalho é o único ambiente no qual podemos nos desenvolver como seres humanos. Procuramos ser excelentes profissionais e não excelentes seres humanos. Mas a mesa de trabalho não nos cultiva, mas, como uma erva daninha, cresce agressivamente, impedindo nosso desenvolvimento natural. Bebe nossa água e se alimenta com nossos nutrientes. Ela nos seca, pouco a pouco, com depressão, estresse e ansiedade, até que, transformados em palha, queimamos.

Pode ser de outra forma?

Os clássicos usavam o termo otium para se referir ao momento em que alguém se afastava dos negócios cotidianos (nego otium: 'negar o otium') para participar de atividades consideradas valiosas em si mesmas: leitura, reflexão, escrita, diálogo filosófico. Quando César forçou Cícero a um período de inatividade, ele usou o tempo de reclusão para o que chamou de otium cum dignitate, um "ócio digno", um "ócio que vale a pena". No tempo do otium não se tratava de passar o tempo, mas de aproveitá-lo, de escapar à tirania do tempo porque o homem livre é aquele que tem tempo livre. Os cidadãos atenienses foram homens de ação: inventaram a primeira democracia da história, lideraram uma liga de cidades livres, criaram um empório comercial e econômico, derrotaram o império mais poderoso da época, etc. Mas seu pragmatismo e intensa atividade não os cegaram. Ao contrário, libertaram-se da tirania do tempo e tiveram espaços e tempos para pensar, discernir, deliberar e dialogar com seus entes queridos sobre assuntos importantes.

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