Como o neoliberalismo destrói a democracia

Imagem
 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

CORPOS DESENHADOS - O significado dos rabiscos e hieróglifos nos cadernos de Franz Kafka

Texto de Diego Sztulwark, pesquisador e escritor, publicado El Cohete a la Luna (Argentina), em 5/3/2023. Tradução: Haroldo Gomes.

Seu olhar não é exato por falta de emoção, é desesperadamente exato:
 é a tentativa de levar o que se vê a uma intensidade tal que se torne uma experiência.”
[Reiner Stach]
Sempre, meu caro senhor, tenho o desejo de ver as coisas como elas são antes de se mostrarem”.
[Franz Kafka, Conversación con el orante]

A magia em Kafka estava do lado das palavras. Só elas poderiam perfurar as imagens e iluminar o universo. As palavras revelam o que as imagens escondem. E seu poder consiste em chegar ao fundo das coisas, ali onde as contradições concordam. No registro de seus Diários de 25 de setembro de 1917, lemos: “Só posso obter a felicidade se puder elevar o mundo ao puro, ao verdadeiro, ao imutável”. As palavras, em Kafka, preparam esse caminho. Elas são as precursoras de atos futuros (faíscas de futuras fogueiras). Sua eficácia é a hulha: seus vestígios permanecem colados nos cérebros. Assim, insultos e outras apropriações indevidas do idioma escurecem o mundo.

Kafka higienizou sua mente rabiscando as páginas em que escreveu suas histórias. Através do desenho fugiu de si para se reencontrar na escrita. O contraponto entre desenhos e palavras fez parte da escrita. Seus rabiscos estavam perto das palavras. Preparavam-nas. "Nós, judeus, na verdade, não somos pintores. Não podemos representar as coisas de forma estática. Sempre as vemos em ação, em movimento, como transformando-se. Somos narradores”. Interessante: a transformação das coisas se perde no registro da imagem. Para capturá-la, é preciso ir à narração e aos desenhos, espalhados em seus cadernos, faziam parte da narração.

A maioria das referências de Kafka a seus próprios desenhos vem do registro de conversas que o escritor teve com um jovem poeta chamado Gustav Janouch, no início da década de 1920. Janouch era filho de um companheiro de escritório de Kafka, no Instituto de Seguros de Praga. Lá ele o visitou com frequência e depois transcreveu seus diálogos. Décadas depois, e sob a supervisão de Marx Brod – amigo, biógrafo e testamenteiro desobediente de Kafka –, Janouch publicou essas notas em um livro traduzido para o espanhol como Conversaciones con Kafka. Em uma ocasião, quando Kafka estava desenhando suas figuras de homenzinhos estilizados em várias posições no papel que depois jogou na cesta, Gustav lhe perguntou: "Você desenha?" Ao que Kafka respondeu: “São apenas alguns hieróglifos pessoais e, portanto, ininteligíveis”. E, no entanto, Kafka teve aulas de desenho acadêmico com uma professora, uma pintora a quem ele culpava por estragar seu talento. Gustav chegou a obter de Kafka respostas mais amplas sobre o significado daqueles homenzinhos filiformes: “Tentei representar o que foi visto de uma forma muito própria. Meus desenhos não são pinturas, mas uma linguagem de sinais particular”. E sorrindo acrescentou: “Sigo na prisão egípcia. Eu ainda não atravessei o Mar Vermelho”. Em Kafka, o esboço é a busca de uma saída interior para o deserto. Seus homenzinhos, dizia ele, "vêm da escuridão para desaparecer de novo nela". Trazia-os à vista e logo os descartava. Assim, repetia o que a seu ver era o destino dos objetos do mundo humano, eles mesmos imagens despertadas para a vida. Um pouco como os esquimós desenham na madeira que querem acender algumas linhas onduladas que evocam chamas: “Esta é a imagem típica do fogo, que logo acendem pela fricção da cunha. O mesmo faço eu. Através dos meus desenhos quero preparar as imagens que vejo. Mas minhas figuras não produzem fogo”.

Judith Butler escreveu um pequeno ensaio sobre a dupla direção em que os desenhos e as histórias de Kafka se conectam. Sobre a publicação de todos os desenhos preservados por Max Brod, o texto de Butler: “Mas… que solo? Que parede? Kafka desenha o corpo” (incluído em Franz Kafka, Los dibujos, Galaxia Gutemberg) – apresenta um primeiro movimento que vai do corpo à linha, em que o corpo é desfeito ou jogado na própria linha. Essa subsistência da linha ao corpo coincide com uma certa estrutura presente nos finais de vários de seus contos, em que o corpo humano se liberta do seu próprio peso, como La condenaEl artista del hambreJinete en el cuboEl buitre ou o camponês mesmo de Ante la Ley. (Sobre a história inicial La condena, em que um filho obediente é empurrado pelo pai para pular da janela e termina com a frase: “Naquele momento, passava um trânsito interminável pela ponte”, Brod conta que Kafka teria dito a ele o seguinte: “Você sabe o que significa a frase final? Quando a escrevi pensei em uma forte ejaculação”.) Butler sugere que esses finais terminam onde começa a linha traçada, “ruína vibrante da vida que sobrevive à trajetória da separação do corpo”. De modo que "os desenhos de Kafka se inspiram – e saem – de seus escritos”. Na outra direção, o movimento adquire sentido inverso, da linha para as figuras. O corpo desenhado, porém, não ilustra. É antes um corpo diferente do das personagens das histórias, uma apresentação não literária de corpos que "se libertaram da escrita". Os desenhos pontilham os textos. Butler também observa como a linha que traça os corpos distingue a forma humana dos objetos “porque as linhas que representam uma e outra são diferentes. É como se só existissem dois tipos possíveis de linhas”. A emergência do desenho nasce em contraponto com a escrita. Como uma forma de fugir dela ou um ponto de apoio para voltar a ela.

Jorge Luis Borges se declarava discípulo de Kafka. Em sua opinião, seus textos giravam entre duas grandes questões: o labirinto, um edifício construído para que os sujeitos se percam nele, e a incapacidade de realizar numa vida humana o que se empreende, o impossível final feliz. Se Kafka entendeu nosso tempo, diz Borges, foi por sua capacidade de narrar sem usar coordenadas circunstanciais. Conhecemos o seu caráter por seu destino único, nunca por datas, geografia ou roupas. O corpo humano conta na medida em que enfrenta uma situação insistente perante a lei política ou religiosa. Borges considerava o mundo de Kafka uma referência ao Deus de Spinoza. O Deus natureza, conjunto de todas as potencias, seria o plano perdido para escapar do labirinto, e uma vida humana uma medida improvável para esclarecer o estado de confusão e culpa a que a lei nos submete. Outro admirador de Kafka, Walter Benjamin, poderia acrescentar que a imanência absoluta, subjugada pela amarga travessia da história humana, é arruinada pelo chamado "progresso", que seleciona apenas os possíveis, enquanto destrói aquela infinidade inicial de potencias. A história sob o controle das classes dominantes transforma as riquezas do mundo em ruínas. O que interessava a Borges em Spinoza e Kafka era a vontade de amar um deus indiferente: um amor sem esperar nada em troca. Uma busca pela eternidade, capaz de superar as misérias do presente.

Os desenhos de Kafka parecem ensaios para entender o que os corpos podem fazer, esses "modos finitos" spinozianos. Em suas histórias de transformação, é o corpo que sofre mutações, perdendo ou adquirindo a linguagem humana (o corpo que se transforma em inseto perde a fala em A Metamorfose ou o animal que se transformou em homem só pode dar conta de seus afetos símios pelo uso acadêmico das palavras em Um Discurso para uma Academia). Em todos os casos se trata de uma investigação naturalista sobre as posições e afetos do corpo em relação a uma única situação: a imposição de uma lei que só espera obediência cega do personagem. Borges sustenta que nos textos de Kafka há um único protagonista, sempre um homem que não consegue entender o que a lei quer dele, e apesar disso deseja sua inclusão nela. O ordenamento jurídico dá lugar a dois tipos de ações: a tentativa de compreender e o desejo de ser aceito. Duas ações igualmente impossíveis de satisfazer na ordem labiríntica do poder religioso e estatal, mas que remetem, em última análise, a um Direito-Natureza (Deus de Spinoza).

Como se sabe, Spinoza também desenhou. O pintor a quem alugou o quarto da última casa em que morou, Hendrik van der Spyck, mostrou os retratos do autor Ética a Jean Colerus, autor de La vida de Baruch de Spinoza (1706): “Eu tenho em minhas mãos um livro inteiro de retratos”, escreve Colerus. Entre eles "encontro na folha 4 um pescador desenhado com uma camisa, com uma rede sobre o ombro direito, muito semelhante em atitude ao famoso líder dos rebeldes de Nápoles, Massaniello, como retratado na história e gravuras”. Como explica van der Spyck, Colerus observa que o rosto do rebelde “realmente parecia Spinoza”.

George Steiner também captou essa proximidade: “Kafka polia as palavras como Spinoza polia as lentes; uma luz exata passa por eles sem ser distorcida”. Ambos cultuam a busca pela precisão. Até que ponto é possível aproximar-se desses desenhistas obcecados com o que o corpo humano pode fazer diante do poder constituído? O filósofo alemão Günther Anders escreveu que, em Kafka, a prosa – “poesia lógica” – provoca um efeito de “petrificação do tempo”, perto das “artes figurativas”. E que esse efeito se põe à disposição para uma nova perspectiva de ser: já não o “ser aí” mas sim o “ser-nunca-completamente-aí”. O ser do imigrante ou do estrangeiro, do ilegal ou fora da lei, corresponde ao retrato que a filósofa brasileira Marilena Chauí nos oferece sobre o espinosismo como filosofia dos excluídos. Em seu monumental Nervura do Real, Chauí afirma que quando lemos Spinoza “temos a impressão de nos encontrarmos diante de um discurso privilegiado, pois é o discurso dos excluídos que questiona o sentido da exclusão ao invés de negá-la, evidenciando como e por que os poderes estabelecidos a requerem; e ao fazê-lo subvertem subitamente a nossa suposição de que tais poderes seriam inabaláveis, pois revela a real fragilidade que os determina, e a nossa, se convivemos com eles”.

A luta kafkiana das palavras contra as imagens é uma questão de vida ou morte. Segundo Carlos Correas, o efeito totalizador da imagem submeteu a escrita de Kafka à impotência máxima. Sem destotalizar a aparência do mundo e das relações humanas (a lei), o próprio Kafka se desfez. Assim, ele não teve a opção de encontrar segurança em uma adaptação improvável ao passar das coisas. Seu propósito como escritor foi, então, enfrentar o próprio medo do fracasso. Medo de não saber extrair de si mesmo força suficiente para derrotar a instituição; de não saber resistir à fragmentação que os críticos fazem da obra e à dispersão que fazem do próprio autor no mundo e trair-se ao anular o próprio medo do fracasso (o medo de perder o medo que funciona como um prólogo para um desejo realmente de fracassar). Essa luta contra a fidelidade da imagem é recolhida em uma anedota. Por ocasião da primeira publicação da matéria, a editora se propôs a ilustrar o inseto da capa. Em 25 de outubro de 1915, Kafka escreveu ao editor Kurt Wolf: “Não Isso não. Por favor, isso não. O inseto não deve, de forma alguma, ser desenhado. Eu lhe peço encarecidamente. Por favor. Que não haja desenho do inseto”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dar a ver, dar o que pensar: contra o domínio do automático

“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: entrevista com Franco Berardi, Bifo

Comunismo libidinal