Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

A última partida de Ernesto Guevara (1)

 

Artigo de Miguel de Lucas, doutor em literatura espanhola, publicado em CTXT Contexto y Acción, em 15/07/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

O Che não só desistiu de uma carreira promissora como médico. Ele também poderia ter se dedicado profissionalmente ao xadrez. Não era um hobby, nem um passatempo. Jogava muito e jogava bem.

ABERTURA

Ele viajava com mais livros do que roupas, e costumava levar um tabuleiro com ele. “Na guerra, para ele o jogo de xadrez era imprescindível tanto quanto o fuzil. Sempre tinha seu jogo e buscava alguém para ensiná-lo (…) E realmente, a guerra de guerrilhas propiciava isso a ele”. Conta Harry Villegas Tamayo, um dos veteranos que percorreu o mundo, de Cuba até o Congo, lutando sob as ordens do guerrilheiro argentino Ernesto Guevara de la Serna. Villegas, aliás Pombo, lembra que quando o Che chegou a Bolívia, “a primeira coisa que perguntou foi: vocês trouxeram alguns jogos de xadrez e livros?; ele nos havia disponibilizado dinheiro para que comprássemos alguns jogos pequenos, preferivelmente magnéticos, e apesar do pouco tempo livre, pois estávamos muito sitiados, sempre que tínhamos uma oportunidade, jogávamos”.

Não era um passatempo. Nem mesmo um hobby para aliviar as noites na selva. Dizem que ele movia os peões sempre que surgia uma oportunidade. Dizem que passou a vida disputando partidas. Num brilhante artigo com o insuperável título de “Ernesto Chesss Guevara”, o jornalista e divulgador Manuel Azuaga explica que o mítico guerrilheiro se referia ao xadrez como sua “segunda namorada” e acabou por fazer de sua destreza no jogo “um elemento chave do êxito revolucionário”. Lutava, diz Azuaga, “dentro e fora do tabuleiro”, como se de algum modo as batalhas da Sierra Maestra ou de Santa Clara fossem um reflexo do que ocorria nas 64 casas do tabuleiro.

Havia descoberto o jogo há muito tempo atrás, na idade de dez anos, na cidade argentina de Alta Gracia, o lugar onde sua família decidiu se mudar em busca de um clima mais propicio para curar os ataques de asma do pequeno Ernesto. Foi seu pai quem lhe ensinou a mover as peças. Até certo ponto, causa estupor pensar que os dois ícones mais poderosos que o século XX trouxe para a América Latina (Frida Kahlo e Che Guevara) tiveram em comum um infância de doenças físicas e longos períodos acamados, aliviados em parte graças ao sacrifício e ao estímulo intelectual de seus pais e à pilhas de livros. Ali, em Alta Gracia, o menino Guevara começou a devorar uma atrás de outra os romances de Emilio Salgari, de Julio Verne, de Alexandre Dumas. Talvez naquele momento tenha começado a olhar para o mundo como um personagem de romance de aventuras.

Já então ganhou a fama de ser ousado. “Quando a asma lhe dava trégua, era lógico que Ernesto se lançava com avidez para testar suas limitações físicas”, escreve Jon Lee Anderson em sua biografia Che Guevara. Una vida revolucionaria. Temia apenas a morte, porque desde tenra idade ele assumiu que não viveria muito. Daí que haja imagens em que ele é visto muito jovem atravessando ravinas no tronco de uma árvore. Depois de suas batalhas contra a asma, saía determinado a espremer a vida como os pacientes que zombavam da doença. Seus amigos de financia o lembram como o tipo de menino que se lançava primeiro com sua bicicleta pelas serras ou que primeiro entrava em brigas de pedras contra gangues de crianças mais velhas. Seria possível intuir que essas dimensões de sua financia haveriam de lhe acompanhar pela vida, pois apesar de seu caráter furioso e temperamental, também havia nele uma frieza pouco comum. Com o tempo, acrescenta Jon Lee Anderson, “se podia vislumbrar seu distanciamento afetivo da realidade individual, com a mente analítica fria do pesquisador médico e do xadrezista.

Como conta também Anderson, é no ano de 1939 que o Che vive momentos transcendentais que afetam a sua visão de mundo. Em casa, ouve falar da derrota da República espanhola. “Provavelmente o primeiro sucesso político que causou impressão na consciência de Ernesto Guevara foi a Guerra Civil espanhola de 1936-1939. Na verdade, era impossível escapar de sua influência”. Sua casa, de fato, acabaria abrindo as portas para os refugiados republicanos. Nesse mesmo ano 39, além disso, no Teatro Politeama de Buenos Aires se disputa a 8ª Olimpíada de Xadrez. Coincidindo com as datas em que a Europa afunda no turbilhão sangrento da Segunda Guerra Mundial, os melhores jogadores do mundo se encontram na capital argentina. Entre os fãs, acompanhado por seu pai, estaria um Ernesto Guevara de onze anos.

Ali ele ouve falar de um mito vivo, nada menos que o gênio cubano José Raúl Capablanca. “A primeira noticia que teve da existência de Cuba foi através de Capablanca, quando ele fez uma visita à Argentina”, declararia anos mais tarde. O que nem em seus sonhos mais loucos ele poderia ter imaginado é que duas décadas depois, em 1962, já como Ministro das Indústrias do Governo da Revolução, ele mesmo se encarregaria de organizar a primeira edição do torneio Capablanca in Memoriam, dedicado à lenda cubana do xadrez e, por determinação de Guevara, o o campeonato mais bem pago do mundo.

Quando jovem, ele mergulhou nas profundezas da ciência do jogo, contagiado como tantos outros pela tremenda vontade de compreender a estranha beleza musical dos movimentos. Está registrado que ele jogou muito e jogou bem. Como diriam os maiores mestres, assombrosamente bem. A prova de que o xadrez não era um mero entretenimento aparece em seus diários de leituras. Em sua adolescência, segundo assinala Jon Lee Anderson, “apesar das mudanças na vida de Ernesto, alguns elementos permaneciam constantes. Conservava a asma, a afeição pelo xadrez – convertido num dos passatempos preferidos – e pelo rugby, lia assiduamente e escrevia seus cadernos filosóficos. Também escrevia poesia”. Dessa época sobrevive um índice com os livros que lia. Em um caderno de capa dura forrado com borracha preta aparecem anotados o autor, a nacionalidade, o título e o gênero da obra. Entre essas leituras destaca Mis mejores partidas, do campeão do mundo Aleksander Alekhine.

Já como estudante da Faculdade de Medicina, sabemos que com 20 anos participou do Torneio Universitário de Xadrez. Seu nome figura nos resultados do sétimo tabuleiro. E embora Che tenha vencido duas partidas, a equipe de Medicina foi superada pelos adversários de Engenharia.

Muitas vezes, a maneira de mover as peças reflete traços ocultos na personalidade dos jogadores de xadrez. Ou pelo menos é o que pensam certos especialistas. Se for assim, o que poderia nos dizer o estilo de Guevara? Poucos podem se surpreender ao saber que ele era um jogador agressivo. De acordo com o jornalista especializado Jesús Cabeleiro Larrán, “se diz que seu estilo de jogo era intuitivo, nada de rebuscamentos teóricos, nem apego aos livros de abertura, preferia o jogo tático, baseado em movimentos ativos, audazes, porém claros, sobre base firme; preferia o jogo de ataque ao jogo posicional. Ele gostava muito de jogar partidas rápidas de cinco minutos”. Um julgamento semelhante seria expresso pelo grande mestre polaco-argentino Miguel Najdorf, eminência dos tabuleiros na Argentina, ganhador daquele primeiro torneio dedicado a Copablanca, e criador da variante da abertura siciliana que leva seu nome. Najdorf, contra quem o Che conseguiu um empate, descreveu o jogador de xadrez Guevara como “um jogador bastante forte. Preferia o jogo agressivo e era dado aos sacrifícios, mas bem preparado; pelo que posso colocá-lo como de primeira categoria”.

Jogava ao viajar de avião. Também quando estava numa delegacia. Ou enquanto permaneceu refugiado na embaixada argentina na Guatemala. Em julho de 54, quando um grupo de perseguidos tenta escapar do caça às bruxas anticomunista decretado pelo ditador Castillo Armas, organizou um torneio improvisado para passar os dias até que seu salvo-conduto chegasse. Jogou muito – e como não haveria de fazê-lo – em Moscou, no ano 64, onde também coincidiria com o cosmonauta Yuri Gagarin, o primeiro homem a voar para o espaço. Após alguns dias intensos de reuniões com os líderes do Kremlin, Guevara adquiriu o hábito de jogar até tarde da noite com seu intérprete russo, o agente de inteligência Rudolf Shlyapnikov. Outras vezes até deixava jogos por escrito. Em seu livro Notas de viaje, reeditado com o título Diarios de motocicleta e onde o próprio Che narra seu “vagar sem rumo por nossa maiúscula américa” no lombo de sua moto La Poderosa, encontramos a seguinte passagem: “À noite jogo xadrez com o doutor Bresciani”.

Entre seus muitos adversários, é inevitável imaginar a cena em que Fidel Castro e Che Guevara se viram pela primeira vez frente a frente diante do tabuleiro. Ocoreu em junho de 156, nos dias que ambos passaram detidos pela policia mexicana. Assim lembrou Castro em entrevista ao jornalista italiano, Gianni Miná, uma conversa que Jesús Cabaleiro Larrán recolhe em sua crônica “Che Guevara, Caballero del Ajedrez”.

Seu país também abriga grandes jogadores de xadrez”. Você já jogou xadrez com Che? Quem ganhou? Fidel respondeu que sim e acrescentou: “Um grupo de nós foi preso no México, e eu por ser o principal responsável e Che por ser argentino,… nos deixaram presos mais tempo. Estivemos sozinhos ali por várias semanas… e nosso entretenimento eram os livros e o xadrez. Ali, Che e eu jogávamos xadrez…”E quem ganhava? A resposta é sincera: “Bom, Che sabia mais que eu, porque realmente Che havia estudado algo do xadrez e eu jogava mais por intuição. Ele era meio guerrilheiro e eu ganhei algumas partida, mas ele ganhou na maioria das vezes porque ele sabia mais xadrez do que eu. E ele realmente gostava de xadrez. Mesmo após a Revolução, ele continuou a estudar xadrez”.

Ele era realmente um bom jogador? Ernesto Guevara morreu em 1967, anos antes de que a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) começasse a utilizar o sistema Elo que hoje se emprega como referencia para medir a habilidade relativa dos jogadores. A falta de uma pontuação, e com base nos jogos que jogou contra grandes mestres, uma revisão do seu registro de partidas deixa estupefato. Além do empate com o Najdorf, ele também empatou em 1962 com o checoslovaco Miroslay Filip e contra o campeão do mundo Mikhail Tal. Não só isso. Ele conseguiu vencer o campeão cubano, Rogelio Ortega, no ano 61 e ao mexicano Armando Acevedo no ano de 64.

Pode-se argumentar que alguns desses jogos poderiam ter sido simultâneos, em que o mestre de nível mais alto joga ao mesmo tempo contra vários oponente. E é possível que em exibições amistosas mais de um jogador de xadrez tenha diminuído deliberadamente sua força de jogo. Se sabe que o velho Najdorf, depois de ter enfrentado governantes como Winston Churchill, Nikita Kruschev, o xá do Irã e Juan Domingo Perón, havia chegado à conclusão muito prática de que a coisa sensata a fazer era oferecer um empate amigável e evitar os problemas causados ​​por personagens muito poderosos com um ego muito sensível. Porém, o Che desprezava esse tipo de compromisso, porque mesmo quando criança ele se zangava se visse que seu pai se deixou vencer.

Dentre os mestres internacionais que passaram pelo Torneio Memorial Copablanca e se cruzaram em algum circuito com Guevara, quase todos eles acabaram compartilhando a impressão de estar diante de um jogador profissional em vez de um diletante. A exceção nessa lista foi Víktor Korchnói, apelidado de Viktor “o Terrível”, o único dos grandes jogadores de xadrez soviéticos que não reinou, que se tornou parte da dissidência, mudou de nacionalidade e desafiou o Kremlin. Em seu livro de memórias, (El ajedrez es mi vida… y algo más), Korchnói dá um retrato mais desfavorável do Che. Conta que, apesar das sugestões de um funcionário cubano, que o aconselhou a buscar o empate, decidiu derrotar o Comandante nas três partidas que disputaram. Ao retornar ao seu hotel em Havana, outro mestre soviético, Mikhail Tal lhe perguntou como foi.

Ganhei de todos eles”, foi a resposta de Korchnói. “Che Guevara também?”, pergunta Tal. “Sim, ele não tem a menor ideia do que fazer com a abertura catalã”.

Mais amigável, em vez disso, se mostrou no ano seguinte outro jogador de xadrez de classe mundial, o checo Ludek Pachman. Também Pachman escreveu uma autobiografia, Jaque mate en Praga (publicado na Espanha com o muito livre e imaginativo titulo de Ajedrez y Comunismo), onde relata seu duelo com Guevara. “Mesmo na Europa, ele seria considerado um jogador de alto nível”. Enquanto jogavam eles tiveram uma conversa que acabaria sendo profética.

Sabe camarada Pachman, eu realmente não gosto de ser um ministro. Eu preferiria, antes, me dedicar a jogar xadrez, como você; ou ir fazer a revolução na Venezuela”.

Ao que Pachman respondeu:

Olha, comandante, claro que é muito interessante fazer uma revolução, mas jogar xadrez é muito mais seguro”.



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