Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Paolo Virno. “Aristóteles é muito menos chato que Gilles Deleuze”

Entrevista realizada por Daniel Gigena e publicada no portal La Nación, em 31/05/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

O filósofo italiano reflete sobre um fator da vida contemporânea, em seu último livro: a impotência; adverte que, ocorrendo simultaneamente com uma superabundância de possibilidades, provoca uma “paralisia frenética” e “paixões tristes”.

Próximo de completar os setenta anos, o filósofo, semiólogo, acadêmico e militante italiano, Paolo Virno (Nápolis, 1952) aprofunda sua reflexão sobre as tensões da vida social no capitalismo, que havia abordado em trabalhos como Virtuosismo y revolución. La acción política en la era del desencanto, Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas e El recuerdo del presente. Ensayo sobre el tiempo histórico. Professor de Filosofia da Linguagem na Universidade de Roma, na década de 1970, Virno participou das lutas operárias em seu país em grupos de orientação marxista; logo, junto com os outros editores da revista Metrópoli foi acusado de ser terrorista e de integrar o grupo Brigadas Rojas. Ao passar vários anos na prisão – até ser absolvido – juntou-se a uma longa linha de filósofos presos iniciada por Sócrates. Seu novo livro, Sobre a impotencia. La vida en la era de su parálisis frenética, coedição dos selos Tinta Limón, Tercero Incluído e Traficantes de Sueños, foi traduzido e comentado por Emilio Sadier.

Leituras de Aristóteles, Karl Marx, Theodor Adorno, Simone Weil e Ludwig Wittgenstein (a quem considera “o maior do século XX” juntamente com Walter Benjamin) ressoam em Sobre la impotencia. La vida en la era de su parálisis frenética, publicado na Itália, em 2021. “Tem a ver com o espírito do nosso tempo – diz Virno –. Caracteriza nossas ações, nossos discursos, nossa capacidade de lutar contar a injustiça e não se deve à falta de potência, mas a uma superabundância de potência, ou seja, de faculdades e habilidades. Uma impotência por um excesso desarticulado, desordenado, que não encontra formas adequadas de se traduzir em atos. As sociedades ocidentais estão atormentadas por um excesso de potência que tenta traduzir-se regularmente em fatos, portanto, em algo verificável e presente”.

Uma dupla incapacidade aflige indivíduos e grupos sociais: por um lado, a de fazer o que é conveniente e desejado; por outro, a de experimentar frustrações e decepções a que se está exposto, uma “incapacidade de sofrer”. Virno redescobre um conceito crucial para sua análise: o de “limite”. Expressar-se, fazer uma reclamação trabalhista, protestar, reivindicar uma idéia política, cultivar uma amizade; estas ações, diz ele, precisam ser bem calibradas.

Por que você define nosso tempo de paralisia frenética e ao mesmo tempo de superabundância? Como se poderia desenhar no campo social e quais são as figuras da impotência atual?
A superabundância é superabundância de potencialidades, de faculdades e de capacidades; a paralisia frenética se deve ao fato de que essa relação tão próxima, quase insolente, com o que poderiamos fazer, no entanto, não encontra o modo de se traduzir em ações. As faculdades são testadas como tal mas permanecem nesse estado sem se tornar um conjunto de ações. As duas coisas juntas permitem falar de superabundância, mas também de paralisia.

Em que medida o desejo “ilimitado” é parte do problema?
Tenho uma certa desconfiança da noção de “desejo”, que acho vaga e alusiva. Dizemos que se tem a sensação, prefiro esse termo, viva e aguda do que poderíamos fazer, dizer ou pensar. E, não obstante, esse sentimento conhece uma frustração permanente. Isso parece ótimo, e já mencionamos anteriormente as figuras sociais da impotência, no trabalho precário contemporâneo, que muitas vezes é um trabalho intelectual, part-time, mal remunerado e que, além disso, se baseia no trabalho com a linguagem e a intimidade como os processos comunicativos e cognitivos. Essa intimidade leva ao que se chama “desejo”, mas esse desejo fica sempre insatisfeito. Não me parece que o desejo ou o sentimento de como gostaríamos de viver sejam excessivos; o que me parece verdadeiramente excessivo e intolerável é o modo como se fazem passar por excessivos, a forma como impedem a atualização de nossa potencia.

Existem saídas para essa situação que você descreve como catatônica e hipnótica?
Creio que sim. Muitas das vidas contemporâneas estão marcadas pela renúncia, pelo adiamento e omissão. Muitas pessoas de nosso entorno, inclusive nós mesmos, alguma vez podem explicar suas vidas apenas pelo que desistiram ou omitiram. Não é necessário crer que a saída para essa situação seja uma exibição repentina de habilidades de decisão, mas, antes, seria necessário aceitar esse costume de renunciar mas aplicando-o a si mesmo. Está amadurecendo o momento em que se renuncia a renúncia e se omite a omissão. A decisão, a capacidade de transformar nossa potência em realidade atual, assumirá a forma de renúncia que, antes de se aplicar as mais variadas competência de que dispomos, se aplica também a si mesma. Uma instituição, no sentido mais amplo e menos estatal do termo, eu a concebo como algo que nasce da “renúncia a renunciar”.

Qual é o valor da renúncia?
Tudo se resume a esclarecer o que está sendo renunciado. Se alguém renuncia a um conjunto de trabalhos precários e mal pagos, a renúncia se dá no sentido de tentar realizar as capacidades que possuo. Pelo contrário, se eu quiser fazer um certo discurso e, em vez disso, por diferentes motivos, também por causa do burburinho de bobagens da internet e dos talk-show, renuncio ao discurso que poderia ter feito, então é muito triste e confirma a impotência. As demissões e renúncias são noções ambivalentes que podem tomar um tom ou outro oposto. Assemelham-se ao êxodo das condições atuais; se a renúncia e as demissões se tornam deserções, inclusive atravessando o deserto, bem vindas sejam a renúncia e as demissões.

Você acha que a gestão da pandemia em todo o mundo reforçou a impotência social?
A gestão da pandemia funcionou como o que os químicos chamam “papel de tornassol” ou papel PH. Mostrou algo que já vivemos: tornou explícito e pôs a vista de todos a renúncia da passagem da potência ao ato, inclusive o impedimento a dar este passo. Fora os mortos e o drama, eu pensaria nela como um revelador, não como uma causa.

As paixões tristes hoje se disfarçam de alegres? Você fala de “solidariedade mal-humorada”, “arrogância contaminada com desânimo” e “alegria em naufrágios”.
Muitas vezes as paixões tristes que nascem da impotência assumem a forma de um oxímoro. Em todos os estados de ânimo existe sempre filtrado o estado de ânimo do credor , então se é credor de algo que não se é capaz de exigir: a realização das próprias faculdades. E um credor que nunca cobra, seja qual for a tonalidade emocional que vive, é alguém distante.

Quais são para você os filósofos da Antiguidade e atuais de leitura imprescindível?
Tenho sido um leitor assíduo, tenaz e não arrependido, de Marx e das coisas pelas quais é conhecido, como a crítica da economia política e seu diagnóstico da modernidade. Sempre me impressionou um núcleo especulativo em seu pensamento, ou seja, o embrião de uma antropologia filosófica. Depois, naturalmente, tenho sido aristótélico, considerando Aristóteles como aquele que escreveu "o homem é um pensamento que deseja", muito menos chato do que Gilles Deleuze e, em geral, que a Italian Theory. Aristotélico, portanto, averroísta, mas também leitor escrupuloso desse grande autor que teve a desgraça catastrófica de ser também cristão e bispo, e que se chama Agustín de Hipona. Posteriormente, voltando no tempo, obviamente Kant, muito menos Hegel, embora com este eu tenha mantido um corpo a corpo infinito, uma luta livre marcada substancialmente por um sentimento de aborrecimento porque ele não de deixa escapar. E, por último, a grande filosofia da linguagem do século XX, com nomes hoje menos conhecidos, como Gottlob Frege e Ferdinand de Saussure, na condição de usar este último com grande determinação e de forma unilateral; enfim, porque não, Roman Jakobson e esse aristotélico, à sua maneira averroísta e à sua maneira kantiano, talvez de forma inconsciente, Ludwig Wittgenstein. O maior do século XX juntamente com Walter Benjamin.

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