Sobre a impotência: o que silenciamos quando falamos de política
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O texto que segue, de autoria de Diego Sztulwark, foi publicado no blog Lobo Suelto, em 27/05/2022. Tradução: Haroldo Gomes.
“o capitalismo criou uma nova pobreza: a pobreza narrativa”
(Marcelo Sevilla)
00. Um contraste perturbador. Num ensaio recente, com o título Sobre la impotencia, o filósofo italiano Paolo Virno assume o desafio de pensar aquilo que subjaz de modo angustiante na conversa política cotidiana, e a que León Rozitchner se referia como (falta de) “eficácia política. O sentimento atual e generalizado de ineficácia à hora de questionar e transformar o tipo de laço social e a ordem histórica do mundo, embora apenas para deter o desastre. O problema que pensa Virno é o da desconcertante coexistência entre este sentimento real de impotência e a altíssima qualificação da cooperação social (ou seja, as forças do trabalho precário e linguístico, em todas as suas variantes) que não consegue dotar-se de princípios linguísticos e institucionais capazes de organizar a práxis coletiva fora do comando neoliberal. A exuberância da práxis coletiva (sua notável riqueza expressiva, técnica, dinâmica, capilar, comunicativa, inteligente e reticular) contrasta de modo perturbador com sua submissão a despóticas relações sociais de produção e de propriedade (neoliberais, ou seja: capitalistas). Na origem do sentimento de impotência não encontramos, portanto, um fenômeno de ausência de potencia coletiva, mas algo muito diferente. O correlato do tratamento neoliberal que lhe dá a forma de mercadoria à potencia social e a administra como força de trabalho precária, não é uma suposta impotência da cooperação social, mas sua – momentânea – incapacidade de articulação histórica autônoma. Como se vê, a questão “eficácia do político” é levantada, então, em torno da noção de articulação imanente da práxis social.
01. História de um sentimento. Embora se possa dizer que tem sua própria história – ou seja, causas que o explicam –, este sentimento de impotência tende a adotar uma vida própria e a tornar-se independente de suas causas materiais. A impotência deixa de ser reconhecida como efeito de operações materiais para se apresentar como uma interpretação fiel do real. Como explica Eduardo Grüner, a ideologia é menos uma falsa consciência do real do que a adequada apreensão que uma consciência não enganada faz de um falso real. Se Marx escreveu que não se tratava de “interpretar o mundo” mas de “transformá-lo”, Grüner acrescentará que a ideologia tem a estrutura de uma interpretação despojada da práxis transformadora. Portanto, precisamos antes de tudo discernir o que o sentimento de impotência tem da ideologia (de efeito separado de suas causas e também de interpretação separada da transformação) e o que tem de sintoma sofrido, que é algo muito distinto, embora não seja porque no que tem de resistência o sintoma pode dizer algo (a quem o escuta) e retomar a dupla conexão entre efeito e causas histórico-materiais, e entre interpretação e transformação. Na medida em que a impotência como ideologia de dominação implica uma pobreza narrativa, identificamos as contra narrações com aquilo que Grüner denomina a “alegria da crítica”, um tipo de prazer vinculado à inimizade que se experimenta ao dobrar a realidade contra si mesma.
02. A eficácia da articulação. Remitido a suas causas, o sentimento de impotência dá conta – como vimos – não de uma impotência do ser, mas de uma ausência de articulação imanente e autônoma. Com o que o argumento recai sobre a noção de articulação. Articulação, em Virno, quer dizer atitudes para organizar a práxis coletiva. Essas atitudes existem no mundo da linguagem e das regras que fazem parte das instituições. De um modo teórico – ou seja, não dispostas da prática – Virno enuncia que a práxis autônoma depende de disposições institucionais que permitem fazer uso da potencia coletiva. Ou, em outras palavras, podemos reconhecer – ao menos teoricamente – as instituições “da” cooperação social social como aquelas que distinguem e separam produção normativa de imperativo de valorização capitalista. Para buscar exemplos recentes temos em mãos o 2001 argentino, o processo que há dois anos se vive no Chile ou a rica conjuntura da primeira década boliviana do presente século. Então, é preciso distinguir a articulação autônoma da cooperação social da teoria populista da hegemonia, que descreve o funcionamento da política sem entrar de cheio no problema da impotência, que em Virno responde a uma ontologia marxiana da cooperação social.
03. Melhor não falar de certas coisas? Recapitulando: a atual decepção (com a) política não teria resolução fora de um pensamento sobre o próprio político, como articulação de um poder autônomo. É preciso, portanto, estabelecer a conexão necessária entre a apropriação que as direitas mais reacionárias fazem da insatisfação (com a) política e a incapacidade das esquerdas – de todas: as marxistas, populistas ou quaisquer que sejam – por (re)pensar essa capacidade articulatória da cooperação social (o próprio político) que permanece sequestrada. A conversa política que repete o roteiro desenhado pela mídia jornalística das lutas palacianas omite – e exclui – o problema central: o da luta pela articulação da cooperação social através da criação de novas instituições. Se O 18 Brumário de Luís Bonaparte segue sendo um modelo de compreensão política o é – justamente – como exemplo de crônica jornalística atenta a captar o vínculo enrre os personagens e suas máscaras, entre as classes e seus fantasmas. Como se a política acontecesse duas vezes ao mesmo tempo, como jogo visível de poder nas instituições públicas e como uma luta para questionar e constituir, de outra forma, o laço social. Como se em definitivo o problema da transformação de estruturas coletivas (as revoluções históricas) se revelasse falso sem um processo simultâneo de confronto no plano de um inconsciente – ou bem ao contrário – do político. É certo que entre esse texto e nós há um abismo, e que não falamos hoje das revoluções proletárias – ou seja, de experiências coletivas que “extraem sua poesia do porvir” - como se nada tivesse obscurecido o otimismo insurrecional de meados do século XIX. Porém, como escreveu Alejandro Horowicz em seu livro El huracán Rojo (uma magnífica história da Revolução européia: da francesa à russa), a revolução tem sido a forma moderna de inscrever igualdades nas instituições e na economia. Renunciar a ela – não ao seu modelo fetichizado, mas ao poder questionador do político contra as estruturas da ordem – não só suporia renunciar a novas igualdades, mas também ser despojado do que permite até defender algumas das igualdades alcançadas nessas batalhas.
04. Crise, sintoma e Partido. A dupla tarefa histórica das forças políticas consistiu em afirmar o máximo possível e simultaneamente defender os salários, renda e direitos populares, e, ao mesmo tempo, confrontar suas próprias fórmulas normativas e narrativas com as do comando da cooperação social. Vimos na Argentina, em outubro de 45, em maio de 69 e em dezembro de 2001. Só quando se inverte a perspectiva da crise – ou seja, quando a dinâmica da crise vai de baixo para cima é o poder de comando da ordem – e não os salários – que é empurrado para baixo. A política das últimas décadas foi um esforço por restituir o eixo vertical da representação e do sistema de partidos. Dessa perspectiva, governar é evitar a explosão. E a organização popular – seja do trabalho precário, da economia popular, dos feminismos – é percebida como pertencente ao “social”, ou seja, sem plena legitimidade política. As expressões de protagonismo coletivo que carecem de forma partidária são assumidos como atores secundários ou parciais a articular. É precisamente esta política convencional de articulação que deixa de funcionar no capitalismo neoliberal (o realmente existente). Muito pelo contrário, são as organizações populares abertas à práxis – na medida em que lidam cotidianamente com o sintoma – as que melhor podem exercitar uma articulação imanente da cooperação social, combinando as resistências e mobilizações em seu aspecto defensivo com a tarefa de padronizar e narrar a potencia coletiva contra o comando neoliberal.
05. Falar de política. As formas políticas que emergem de 2001 para cá – ou se prefere uma sequencia mais breve: de 2017 para cá –, respondem a um movimento que tem certo ponto de comparação com sequencias que encontramos na região sul americana: o corte assume a forma de uma reação de baixo à crise que articula tecido popular e explosão de baixo, que é seguido por um complexo sistema de mediações que culmina no sistema de partidos e da burocracia estatal. Esse sistema de mediações (que a teoria política implícita do jornalismo denomina erroneamente “democracia”) é o que vemos rapidamente se deslegitimar. O problema da política concreta é levantado então, em torno da questão do “frentismo”. Como se relança um instrumento frentista hoje e que tipo de frente precisamos? Essa pergunta não pode ser respondida de modo individual, embora tudo o que foi escrito até agora sugira que o principal valor de um frentismo por vir devesse passar por sua capacidade de combinar os dois movimentos fundamentais: um defensivo (de salários, rendas e direitos populares) e outro que aponta para a articulação “instituições de cooperação”. Então, “frentismo” não seria mais uma mera agregação quantitativa submetida ao cálculo da relação de forças, mas um instrumento político concebido para reagir à ideologia da impotência.
06. Contra-narração. A captura reacionária da insatisfação pelo neoliberal – que se tornou “insatisfação democrática” (nas palavras de CFK) –, desarma a linguagem da rebelião em função de uma estetização reacionária que não questiona mas que assegura as relações de supremacia e dominação. A direita neofacista assegura os mecanismos de opressão pela via da apropriação da crítica igualitarista (esquerda). A impotência se reforça quando as retóricas progressistas se limitam à defesa da ordem. É certo que o macrismo, a pandemia e a guerra agudizam a crise e restringem as opções. E que a dívida é um fator extremamente limitante. Porém, a redução da função narrativa à mera comunicação redunda na decepção e na dissolução ativa de todo contrapoder possível. Walter Benjamin distinguia entre estetização da política e politização da arte (a primeira mobiliza sem questionar hierarquias, a segunda apela à sensibilidade como parte de um profundo questionamento). É este último apelo que está faltando. O mesmo Benjamin elabora uma distinção entre a informação e a narração. Esta última capta uma experiência e a transmite, elabora um sentido. A ideologia da impotência permanece do lado da retórica. Mas, narrar não é o mesmo que retorizar. E a história das grandes greves, mas também das lutas pelos direitos humanos, e dos movimentos piqueteros ou feministas foram e são momentos fortemente contra-narrativos, porque nessa contra narratividade aprendemos a produzir a distinção chave (e hoje ausente mas até quando?) do político: a da palavra que distingue e não subsume a regra que organiza a práxis com a qual a subordina à valorização do capital.
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