Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Sobre a impotência: o que silenciamos quando falamos de política


O pesquisador e escritor,
Diego Sztulwark, apresenta uma vastar trajetória intelectual vinculada aos movimentos sociais na Argentina e América Latina. Coeditou a obra de León Rozitchner para a Biblioteca Nacional e é autor do livro La ofensiva sensible (Caja Negra, 2019). Escreve assiduamente no blog Lobo Suelto.

O texto que segue, de autoria de Diego Sztulwark, foi publicado no blog Lobo Suelto, em 27/05/2022. Tradução: Haroldo Gomes.

o capitalismo criou uma nova pobreza: a pobreza narrativa”

(Marcelo Sevilla)

00. Um contraste perturbador. Num ensaio recente, com o título Sobre la impotencia, o filósofo italiano Paolo Virno assume o desafio de pensar aquilo que subjaz de modo angustiante na conversa política cotidiana, e a que León Rozitchner se referia como (falta de) “eficácia política. O sentimento atual e generalizado de ineficácia à hora de questionar e transformar o tipo de laço social e a ordem histórica do mundo, embora apenas para deter o desastre. O problema que pensa Virno é o da desconcertante coexistência entre este sentimento real de impotência e a altíssima qualificação da cooperação social (ou seja, as forças do trabalho precário e linguístico, em todas as suas variantes) que não consegue dotar-se de princípios linguísticos e institucionais capazes de organizar a práxis coletiva fora do comando neoliberal. A exuberância da práxis coletiva (sua notável riqueza expressiva, técnica, dinâmica, capilar, comunicativa, inteligente e reticular) contrasta de modo perturbador com sua submissão a despóticas relações sociais de produção e de propriedade (neoliberais, ou seja: capitalistas). Na origem do sentimento de impotência não encontramos, portanto, um fenômeno de ausência de potencia coletiva, mas algo muito diferente. O correlato do tratamento neoliberal que lhe dá a forma de mercadoria à potencia social e a administra como força de trabalho precária, não é uma suposta impotência da cooperação social, mas sua – momentânea – incapacidade de articulação histórica autônoma. Como se vê, a questão “eficácia do político” é levantada, então, em torno da noção de articulação imanente da práxis social.

01. História de um sentimento. Embora se possa dizer que tem sua própria história – ou seja, causas que o explicam –, este sentimento de impotência tende a adotar uma vida própria e a tornar-se independente de suas causas materiais. A impotência deixa de ser reconhecida como efeito de operações materiais para se apresentar como uma interpretação fiel do real. Como explica Eduardo Grüner, a ideologia é menos uma falsa consciência do real do que a adequada apreensão que uma consciência não enganada faz de um falso real. Se Marx escreveu que não se tratava de “interpretar o mundo” mas de “transformá-lo”, Grüner acrescentará que a ideologia tem a estrutura de uma interpretação despojada da práxis transformadora. Portanto, precisamos antes de tudo discernir o que o sentimento de impotência tem da ideologia (de efeito separado de suas causas e também de interpretação separada da transformação) e o que tem de sintoma sofrido, que é algo muito distinto, embora não seja porque no que tem de resistência o sintoma pode dizer algo (a quem o escuta) e retomar a dupla conexão entre efeito e causas histórico-materiais, e entre interpretação e transformação. Na medida em que a impotência como ideologia de dominação implica uma pobreza narrativa, identificamos as contra narrações com aquilo que Grüner denomina a “alegria da crítica”, um tipo de prazer vinculado à inimizade que se experimenta ao dobrar a realidade contra si mesma.

02. A eficácia da articulação. Remitido a suas causas, o sentimento de impotência dá conta – como vimos – não de uma impotência do ser, mas de uma ausência de articulação imanente e autônoma. Com o que o argumento recai sobre a noção de articulação. Articulação, em Virno, quer dizer atitudes para organizar a práxis coletiva. Essas atitudes existem no mundo da linguagem e das regras que fazem parte das instituições. De um modo teórico – ou seja, não dispostas da prática – Virno enuncia que a práxis autônoma depende de disposições institucionais que permitem fazer uso da potencia coletiva. Ou, em outras palavras, podemos reconhecer – ao menos teoricamente – as instituições “da” cooperação social social como aquelas que distinguem e separam produção normativa de imperativo de valorização capitalista. Para buscar exemplos recentes temos em mãos o 2001 argentino, o processo que há dois anos se vive no Chile ou a rica conjuntura da primeira década boliviana do presente século. Então, é preciso distinguir a articulação autônoma da cooperação social da teoria populista da hegemonia, que descreve o funcionamento da política sem entrar de cheio no problema da impotência, que em Virno responde a uma ontologia marxiana da cooperação social.

03. Melhor não falar de certas coisas? Recapitulando: a atual decepção (com a) política não teria resolução fora de um pensamento sobre o próprio político, como articulação de um poder autônomo. É preciso, portanto, estabelecer a conexão necessária entre a apropriação que as direitas mais reacionárias fazem da insatisfação (com a) política e a incapacidade das esquerdas – de todas: as marxistas, populistas ou quaisquer que sejam – por (re)pensar essa capacidade articulatória da cooperação social (o próprio político) que permanece sequestrada. A conversa política que repete o roteiro desenhado pela mídia jornalística das lutas palacianas omite – e exclui – o problema central: o da luta pela articulação da cooperação social através da criação de novas instituições. Se O 18 Brumário de Luís Bonaparte segue sendo um modelo de compreensão política o é – justamente – como exemplo de crônica jornalística atenta a captar o vínculo enrre os personagens e suas máscaras, entre as classes e seus fantasmas. Como se a política acontecesse duas vezes ao mesmo tempo, como jogo visível de poder nas instituições públicas e como uma luta para questionar e constituir, de outra forma, o laço social. Como se em definitivo o problema da transformação de estruturas coletivas (as revoluções históricas) se revelasse falso sem um processo simultâneo de confronto no plano de um inconsciente – ou bem ao contrário – do político. É certo que entre esse texto e nós há um abismo, e que não falamos hoje das revoluções proletárias – ou seja, de experiências coletivas que “extraem sua poesia do porvir” - como se nada tivesse obscurecido o otimismo insurrecional de meados do século XIX. Porém, como escreveu Alejandro Horowicz em seu livro El huracán Rojo (uma magnífica história da Revolução européia: da francesa à russa), a revolução tem sido a forma moderna de inscrever igualdades nas instituições e na economia. Renunciar a ela – não ao seu modelo fetichizado, mas ao poder questionador do político contra as estruturas da ordem – não só suporia renunciar a novas igualdades, mas também ser despojado do que permite até defender algumas das igualdades alcançadas nessas batalhas.

04. Crise, sintoma e Partido. A dupla tarefa histórica das forças políticas consistiu em afirmar o máximo possível e simultaneamente defender os salários, renda e direitos populares, e, ao mesmo tempo, confrontar suas próprias fórmulas normativas e narrativas com as do comando da cooperação social. Vimos na Argentina, em outubro de 45, em maio de 69 e em dezembro de 2001. Só quando se inverte a perspectiva da crise – ou seja, quando a dinâmica da crise vai de baixo para cima é o poder de comando da ordem – e não os salários – que é empurrado para baixo. A política das últimas décadas foi um esforço por restituir o eixo vertical da representação e do sistema de partidos. Dessa perspectiva, governar é evitar a explosão. E a organização popular – seja do trabalho precário, da economia popular, dos feminismos – é percebida como pertencente ao “social”, ou seja, sem plena legitimidade política. As expressões de protagonismo coletivo que carecem de forma partidária são assumidos como atores secundários ou parciais a articular. É precisamente esta política convencional de articulação que deixa de funcionar no capitalismo neoliberal (o realmente existente). Muito pelo contrário, são as organizações populares abertas à práxis – na medida em que lidam cotidianamente com o sintoma – as que melhor podem exercitar uma articulação imanente da cooperação social, combinando as resistências e mobilizações em seu aspecto defensivo com a tarefa de padronizar e narrar a potencia coletiva contra o comando neoliberal.

05. Falar de política. As formas políticas que emergem de 2001 para cá – ou se prefere uma sequencia mais breve: de 2017 para cá –, respondem a um movimento que tem certo ponto de comparação com sequencias que encontramos na região sul americana: o corte assume a forma de uma reação de baixo à crise que articula tecido popular e explosão de baixo, que é seguido por um complexo sistema de mediações que culmina no sistema de partidos e da burocracia estatal. Esse sistema de mediações (que a teoria política implícita do jornalismo denomina erroneamente “democracia”) é o que vemos rapidamente se deslegitimar. O problema da política concreta é levantado então, em torno da questão do “frentismo”. Como se relança um instrumento frentista hoje e que tipo de frente precisamos? Essa pergunta não pode ser respondida de modo individual, embora tudo o que foi escrito até agora sugira que o principal valor de um frentismo por vir devesse passar por sua capacidade de combinar os dois movimentos fundamentais: um defensivo (de salários, rendas e direitos populares) e outro que aponta para a articulação “instituições de cooperação”. Então, “frentismo” não seria mais uma mera agregação quantitativa submetida ao cálculo da relação de forças, mas um instrumento político concebido para reagir à ideologia da impotência.

06. Contra-narração. A captura reacionária da insatisfação pelo neoliberal – que se tornou “insatisfação democrática” (nas palavras de CFK) –, desarma a linguagem da rebelião em função de uma estetização reacionária que não questiona mas que assegura as relações de supremacia e dominação. A direita neofacista assegura os mecanismos de opressão pela via da apropriação da crítica igualitarista (esquerda). A impotência se reforça quando as retóricas progressistas se limitam à defesa da ordem. É certo que o macrismo, a pandemia e a guerra agudizam a crise e restringem as opções. E que a dívida é um fator extremamente limitante. Porém, a redução da função narrativa à mera comunicação redunda na decepção e na dissolução ativa de todo contrapoder possível. Walter Benjamin distinguia entre estetização da política e politização da arte (a primeira mobiliza sem questionar hierarquias, a segunda apela à sensibilidade como parte de um profundo questionamento). É este último apelo que está faltando. O mesmo Benjamin elabora uma distinção entre a informação e a narração. Esta última capta uma experiência e a transmite, elabora um sentido. A ideologia da impotência permanece do lado da retórica. Mas, narrar não é o mesmo que retorizar. E a história das grandes greves, mas também das lutas pelos direitos humanos, e dos movimentos piqueteros ou feministas foram e são momentos fortemente contra-narrativos, porque nessa contra narratividade aprendemos a produzir a distinção chave (e hoje ausente mas até quando?) do político: a da palavra que distingue e não subsume a regra que organiza a práxis com a qual a subordina à valorização do capital.

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