Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

“A ‘Demokratia’ ateniense é uma exceção histórica: os pobres governavam diretamente”

Capitán Swing publica em castelhano La democracia ateniense em la época de Demóstenes, um livro de 1991 do estudioso danês Mogens H. Hansen, possivelmente o maior conhecedor mundial da democracia ática. Hansen traduz ao leitor, com enorme vivacidade, a Assembléia, os nomothetai, o Tribunal Popular, os conselhos de magistrados, o Conselho dos Quinhentos, o Areópago e os ho boulomenos; e lá se aprende como os atenienses concebiam a liberdade e as diferenças cruciais entre aquela democracia e a nossa, que reivindica a primeira, mas se constrói a partir de preocupações diametralmente opostas. Andrés de Francisco é o autor dessa tradução, acompanhada por uma pequena mas substancial introdução. De Francisco (1963) é filósofo e professor titular na Faculdade de CC. Políticas e Sociologia (UCM); e autor entre outros livros de: La mirada republicana (Los libros de la Catarata, 2012), Visconti y la decadencia: otra mirada a la modernidad (El Viejo Topo, 2019), y Podemos, izquierda y «nueva política» (El Viejo Topo, 2022).

Entrevista realizada por Pablo Batalla Cueto e publicada no portal CTXT- contexto e ação, em 27/05/2022. Tradução: Haroldo Gomes. 

Qual é a importância do livro de Mogens H. Hansen, que "Capitán Swing" publica agora, e você traduziu?

Hansen é, possivelmente, o maior conhecedor do mundo da democracia ateniense: ele dedicou sua vida. E a democracia ateniense é a democracia mais importante do mundo antigo, o modelo mais incrivelmente desenvolvido de democracia participativa e deliberativa. Ali está tudo, também o autêntico significado político da democracia, em grande parte esquecido. De mãos dadas com Hansen podemos entrar em Atenas, em suas instituições políticas, em sua configuração social e territorial, em sua constituição e suas leis, tudo isso com uma notável sensação de presença e sem esconder nenhum detalhe, nenhuma questão problemática. Faz você se sentir como se estivesse lá, quer lhe mostrar tudo. Além disso, o faz com um rigor acadêmico inusitado, com uma vontade de verdade só ao alcance da melhor ciência social e com a honestidade própria da melhor cultura acadêmica. Um livraço.

Explica em sua introdução que a democracia moderna, mesmo que reivindique a ateniense como precedente, era muito diferente daquela, e que a diferença mais crucial era que, na primeira, tudo foi pensado para impedir a oligarquia, enquanto que o constitucionalismo moderno nasceu querendo evitar, não o poder de poucos, mas o de muitos.

Sim. É como seu negativo. O povo ateniense estava preocupado com a facção minoritária (os ricos e nobres) e quis – e conseguiu – minimizar seu poder e influência, sem prejuízo dos seus direitos (sem expropriações, por exemplo). O governo representativo moderno – desde os Documentos Federalistas – é projetado para combater a facção majoritária, a das classes populares e trabalhadores sem propriedade. O mais interessante é que os Pais Fundadores (Madison, Hamilton e outros) eram perfeitamente conscientes do que faziam, sabiam o significado político da palavra demokratia: o governo (substantivo, não formal) dos muitos pobres livres. Por isso foi um regime temido pelas elites que traçaram as linhas mestras do governo representativo moderno.

Os pais do constitucionalismo moderno conheciam e veneravam a tradição clássica, mas fundamentalmente Roma, e, da Grécia, não aos defensores da democracia, mas a seus críticos. O povo ateniense venerava sua democracia, mas escreveu pouco em sua defesa. E nem sempre o que as classes letradas escrevem representa os sentimentos majoritários.

Assim é. Até o século XIX. Deve-se ter em conta que as elites que fizeram (revolucionariamente também) o mundo moderno leram o mundo antigo através das páginas de Aristóteles, Platão, Políbio e Plutarco. Pensaram a democracia radical antiga como oclocracia, como governo da gente vulgar, e sempre favoreceram as constituições mistas como a chave do cofre do bom governo. As repúblicas de referencia eram Esparta, Roma e, já no Renascimento, Veneza. E quando olhavam para Atenas, era para elogiar as reformas de Solon, não as de Péricles ou Efialtes; nem sequer as prévias e fundamentais de Clístenes. Tivemos que esperar pelo século XIX para que – tanto o liberalismo como o marxismo – reabilitassem a grande democracia ática dos séculos V e IV a.C.

Em geral, conhecemos mal a democracia grega, embora a citemos muito.

Para começar, a esquerda, que enche a boca de democracia. Mas creio que o esquecimento daquela grande democracia pode se descrever de uma forma muito plástica: está completamente fora do circuito turístico de Atenas. O turista só visita a Acrópolis, que, evidentemente, é visita obrigatória. Lá em cima moravam os deuses e lá lhe espera o Partenón. Nada mais, nada menos. Porém, a vida dos atenienses se realizava abaixo, na ágora e na Assembléia situada numa clareira do monte Pnyx. Pois bem, ninguém visita a ágora mesmo tendo o templo grego - o Heféstheion – melhor conservado da Grécia e apesar do excelente museu que abriga coisas como o kleroterion, a máquina para realizar o sorteio, sendo o sorteio o procedimento habitual para a seleção de juizes e conselheiros. Mas, o mais triste é o que ocorre com a grande Eclésia, o centro nevrálgico daquela democracia, sua grande Assembléia. Acontece que é muito dificil chegar até ela. Eu mesmo quase me perco quando fui visitá-la. Não há sinais nem indicações. E quando por fim você chega e a vê, vê-la vazia, como suspensa no tempo, quieta, calada, como um eco de um passado remoto e glorioso. Você vê a bema, a tribuna dos oradores, onde subiram Péricles, Nicias, Demóstenes ou Ésquines. E nesse silencio atemporal você ouve os gritos, os aplausos dos até seis mil participantes que puderam passar um dia inteiro ali, do amanhecer ao anoitecer, escutando, discutindo, votando, decidindo. Hoje a Eclésia está vazia, oca, desprotegida, sem sequer um cartaz informativo. Você pode levar uma pedra dela para casa se quiser. Um sofrido esquecimento. Nem sequer os atenienses parecem orgulhosos de sua grande democracia antiga.

Outro aspecto interessante da democracia ática era o deliberativo. Debatiam-se as coisas e os participantes do debate modificavam suas crenças no processo. Hoje o jogo é muito mais uma mera contagem de vontades rochosas, irredutíveis.

Sim, você tem razão. Deliberação e isegoria (igualdade de direito à palavra) eram outras duas das senhas de identidade daquela democracia. O povo ateniense debatia dentro das instituições e seguia discutindo na rua antes e depois de qualquer reunião formal. Era um povo muito politizado, sem dúvida. Hoje temos democracias de audiência, com muita manipulação midiática, dominadas pelo marketing e com pouco debate real. Executivos fortes, parlamentos fracos. Lideranças fortes – carismáticas ou não –, partidos fracos. E uma sociedade civil pouco organizada, sem mini povoados, como pedia Robert Dahl, sem pesquisas deliberativas, ao estilo de Fishkin, e com uma crescente – e preocupante – insatisfação política com um forte componente de cinismo entre a cidadania.

Sempre nos disseram que a democracia ateniense, que ao final abrangeu apenas umas centenas de milhares de pessoas (embora fosse muito complexa), seria impossível de praticar nas grandes e complexas sociedades modernas, com milhões de habitantes. Você, o que acha?

Desnecessário dizer que a sociedade ateniense era pouco complexa se a compararmos com as nossas, que têm populações de dezenas de milhões de habitantes. Porém, aquela sociedade e aquela democracia estavam longe de ser simples. A democracia ateniense, bem ao contrário, tinha um alto grau de complexidade. Seus sistemas de sorteio eram complexíssimos, seus mecanismos de prestação de contas, também. Tinham uma densa diplomacia e uma vida militar muito ativa, além da política. A ateniense era uma sociedade diferenciada, territorial e socialmente, por status e classe. Aquela polis legendária administrava um império. Era uma sociedade urbana e comercial, apesar da importância do campo e do campesinato. Conhecia o conflito e concebeu formas muito complexas e articuladas de resolvê-lo. Os atenienses eram dinâmicos, criativos, ousados, inquietos. Eram – por utilizar o plástico termo de Tucídides – polipragmões, gente com recursos mentais e psíquicos, proativos. A sociedade ateniense era complexa. Complexa o suficiente para que o argumento da complexidade não valha para afastar os ensinamentos que aquela democracia pode nos proporcionar.

Do ponto de vista concreto da esquerda, o que nos diz, o que deveria nos dizer a memória da democracia ática?

A Demokratia radical ateniense significou algo que apenas voltou a acontecer na história: uma exceção. A exceção pela qual os pobres (aporoi), isto é, os que tinham que trabalhar para sobreviver, governavam. Mas não governavam de uma forma indireta ou delegada. Não. O demos ateniense, que incorporava essa massa de homens livres mas que trabalhavam por suas mãos, ocupavam o Estado. Sorteando-se os cargos, girando rigorosamente em sua ocupação, remunerando a presença na ão assembléia, dignificando a política…, aquele povo governava a si mesmo diretamente. Não era governado. Revezava-se no autogoverno. Isso é muito excepcional na história. O normal na história tem sido que o poder econômico e o poder político se dêem as mãos, em uma aliança quase natural, e juntos controlem o governo do Estado, obviamente para a defesa de seus particularíssimos interesses de classe, os interesses do dinheiro. Olha, então, o quanto a esquerda tem a aprender daquela democracia, que não só se contrapõe às oligarquias, também aqueles disfarçados de democracia, mas – cuidado – a qualquer solução precipitada de corte populista, normalmente baseada na ilusória identificação simbólica entre um líder carismático e um povo falsamente homogeneizado. A democracia ateniense era especialista em vigilância e controle do poder, e seus líderes sabiam muito bem que tinham que prestar contas e que se expunham à duras sanções. A bateria de mecanismos republicanos de peso e contrapeso, de divisão diacrônica e sincrônica do poder, de prestação de contas, de filtros ex-ante (a chamada triagem), que aquela democracia inventou e pôs em prática é uma bateria fundamental se queremos manter os governos sob controle para que não acabem devorando a soberania, como temia Rousseau. A virada neopopulista que a esquerda deu nos distancia dessa tradição republicana tanto como nos aproxima de tradições contrárias, e muito particularmente à aberta por Carl Schmitt, que já sabemos os perigos envolvidos apesar da correção de muitas de suas críticas à democracia de massas contemporânea. Esse é um dos vetores da crítica que desenvolvo em meu último livro, Podemos, izquierda y «nueva política» (El Viejo Topo, 2022), escrito em conjunto com o cientista político do CSIC, Francisco Herreros, e que acaba de sair junto com esse de Hansen, em Capitán Swing.

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