Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Emanuele Coccia: “A Terra pode se desfazer de nós com a menor de suas criaturas”

[Entrevista realizada por Nicolas Truong e publicada no blog Lobo Suelto, em 16/4/2020. Tradução: Vapor ao Vento]

O filósofo explica porque, em sua opinião, a atual epidemia devolve o ser humano à natureza. E como a ecologia precisa ser repensada, para afastá-la da ideologia patriarcal baseada no “lar”

A Vida das Plantas
O filósofo Emanuele Coccia é professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e um dos intelectuais mais iconoclastas de seu tempo. Autor, na editora Payot et Rivages, das obras La Vie sensible (2010), Le Bien dans les choses (2013), La Vie des plantes (A vida das plantas, publicado no Brasil pela Editora Cultura e Barbárie, em 2018), Une métaphysique du mélange (2016), acaba de publicar Métamorphoses (Payot et Rivages, 236 páginas), um livro que lembra como as espécies vivas se relacionam entre si, incluindo os vírus e os humanos, porque, segundo escreve “somos a borboleta dessa enorme lagarta que é nossa Terra”. Na entrevista abaixo, analisa os impulsores dessa crise de saúde mundial e explica porque, por mais que seja necessária, “a ordem de ficar em casa é paradoxal e perigosa”.
Estão tomando medidas importantes para assegurar que a economia não entre em colapso. Deveria se fazer o mesmo para a vida social?
Diante da pandemia, a maioria dos governos tomaram medidas firmes e corajosas: não só a vida econômica em grande medida estacionou ou se tornou fortemente lenta, mas também a vida sócia pública foi amplamente interrompida. Tem-se requerido à população que fique em casa: foram proibidas as reuniões, as refeições compartilhadas, os ritos de amizade e de debate público e o sexo entre desconhecidos, porém também os ritos religiosos, políticos e esportivos. De repente, a cidade desapareceu ou, melhor dizendo, foi levada, foi subtraída do uso: se apresenta diante de nós como atrás de uma vitrine. Já não há espaço público nem lugares para a livre circulação, abertos a todos e às atividades mais populares e díspares, dedicadas à produção da felicidade tanto individual quanto partilhada. A população se isolou diante desse enorme vazio e chora a cidade desaparecida, a comunidade suspensa, a sociedade fechada juntamente com as lojas, universidades ou estádios: as transmissões diretas pelo Instagram, os aplausos ou as músicas coletivas na varanda, a multiplicação das arbitrárias e alegres corridas semanais são em sua maioria rituais de duelo, tentativas desesperadas de reproduzir a cidade em miniatura.
Esta reação é normal e fisiológica. A interrupção da vida econômica – que já vimos experimentando a cada domingo – foi objeto de um número infinito de reflexões e medidas de antecipação e reconstrução. Por outro lado, o gesto de suspender a vida em comum, muito mais inédito e violento, foi abrupto e radical: sem preparação, sem acompanhamento.
A necessidade dessas medidas está fora de qualquer discussão: só dessa maneira seremos capazes de defender a comunidade. Porém, tratam-se de medidas muito sérias: relegam toda a população à casa. E, todavia, não tem nenhum debate, nenhum intercâmbio nem nenhum outro discurso mais além do da morte e do medo, de si mesmo e dos outros.
Qual é a responsabilidade dos governos nesse esquecimento social do confinamento?
É bastante infantil imaginar que se pode manter milhões de vidas sob prisão domiciliar unicamente através de ameaças ou difundindo o medo à morte. É muito irresponsável, por parte desses mesmos governos, pretender obter a renúncia de uma comunidade a si mesma fazendo-a se sentir culpada ou infantilizando-a. O custo psíquico dessa forma de proceder será enorme. Não se tem em conta, por exemplo, as diferenças quanto ao tamanho dos apartamentos, sua localização, o número de indivíduos de diferentes idades que convivem neles: é quase como se, ao tomar medidas em relação a vida econômica, houvéssemos optado por ignorar as diferenças quanto ao volume de negócio ou ao número de empregados de cada empresa.
Não se tem em conta a solidão, as angústias e especialmente a violência que todo espaço doméstico com frequência oculta e amplifica. Convidar cada pessoa a coincidir com a própria casa significa produzir as condições para uma futura guerra civil. Poderia explodir daqui a poucas semanas.
Além disso, se para a vida econômica tratamos de buscar um compromisso entre a necessidade de manter à sociedade viva e a de protegê-la, para a vida social, cultural ou psíquica temos ajustado muito menos. Por exemplo, temos deixado abertas as tabacarias, mas não as livrarias: a escolha do que se consideram “necessidades básicas” transfere uma imagem bastante caricaturesca da humanidade. Há um tema iconográfico que atravessou a pintura européia: o de “São Jerônimo no deserto”, representado com uma caveira e um livro – a Bíblia que estava traduzindo –. As medidas fazem de cada um de nós “jerônimos” que contemplam a morte e seus medos, porém que nem sequer têm direito a levar consigo um livro ou um disco de vinil.
Fiquem em casa!”, diz o presidente. Contudo, em Métamorphoses, você faz uma crítica desse “todos para casa” e dessa obsessão em atribuir vida à residência. Qual a razão?
Esta experiência inaudita de prisão domiciliar indeterminada e coletiva que se estende de repente a bilhões de pessoas nos ensina muitas coisas. Em primeiro lugar, experimentamos o fato de que a casa não nos protege, não é necessariamente um refúgio: também pode nos matar.
Podemos morrer por excesso de lar. E a cidade, a distância que implica qualquer sociedade, nos protege normalmente contra os excessos de intimidade e de proximidade que qualquer casa nos impõe. Portanto, não há nada de estranho no desconforto que as pessoas experimentam nestes dias. A idéia de que o lar, a casa, é o lugar da proximidade à “natureza” é um mito de origem patriarcal. A casa é o espaço dentro do qual convivem uma série de objetos e indivíduos sem liberdade, no seio de uma ordem orientada à produção de uma utilidade. A única diferença que existe entre as casas e as empresas é o vínculo genealógico que une os membros de umas mas não de outras. Também por isso, qualquer casa é exatamente o oposto do político: daí que a ordem de ficar em casa seja paradoxal e perigosa.
Em que sentido a análise ecológica da crise de saúde lhe parece inapropriada, romantica no melhor dos casos e reacionária no pior?
A experiência desses dias deveria portanto nos ensinar que a ecologia, a ciência que deveria nos ajudar a corrigir o planeta, deve ser completamente reformulada, começando por seu nome, que todavia abriga a imagem de lar (oikos, em grego, significa lar, casa). A ecologia não só é romantica, como segue sendo essa ciência profundamente patriarcal que, apesar de todos os esforços do ecofeminismo, não tem conseguido libertar-se de seu passado.
De fato, ao seguir pensando que a Terra é o lar do vivo e que todas as espécies têm a mesma relação privilegiada com um território que um indivíduo humano tem com seu apartamento, não só insistimos em submeter a totalidade das espécies vivas à prisão domiciliar, como além disso estamos projetando um modelo econômico na natureza. A ecologia e a economia de mercado nasceram ao mesmo tempo, são dois gêmeos siameses que partilham os mesmos conceitos e um mesmo marco epistemológico, e é ingenuo pensar que, da ecologia, tal e como está estruturada hoje em dia, se possa chegar a lutar contra o capitalismo.
Não, não há casas ou lugares ontológicos, nem para nós, os humanos, nem para os não humanos: na Terra só há migrantes porque a Terra é um planeta, ou seja, um corpo que está constantemente à deriva no cosmos. Embora seja planetário, cada ser vivo está à deriva, muda de lugar, de corpo e de vida, constantemente. É impossível se proteger dos outros e essa pandemia demonstra isso. Só podemos evitar algumas das consequências do contágio, porém o contágio como tal, nós, como seres vivos, nunca poderemos evitá-lo.
Contrariamente ao que gostaríamos de imaginar, esta pandemia não é a consequência de nossos pecados ecológicos: não é um flagelo divino que a Terra nos envia. É só a consequência do fato de que toda vida está exposta à vida dos outros, que todo corpo abriga a vida de outras espécies e é suscetível de ser privado da vida que o anima. Ninguém, entre os vivos, está em sua casa: a vida que habita no fundo de nós e que nos anima é muito mais antiga que nossos corpos, e também é mais jovem, porque continuará vivendo quando nosso corpo se desintegrar.
O vírus se percebe como algo preocupante, claro, mas também radicalmente diferente de nós. E, todavia, em seu livro você mostra que ele é parte de nós. Em que sentido é um dos rostos da metamorfose do vivo?
Todos os seres vivos, qualquer que seja sua espécie, seu reino, seu estágio evolutivo, partilham uma só e mesma vida: é a mesma vida que cada ser vivo transmite a sua descendência, a mesma vida que uma espécie transmite a outra espécie através da evolução. A relação entre os seres vivos, não importa se pertencem a espécies diferentes, é a que existe entre a lagarta e a borboleta. Toda vida é tanto repetição quanto metamorfose da vida que a precedeu. Cada um de nós (e cada espécie) é ao mesmo tempo a borboleta de uma lagarta que se formou num casulo e a lagarta de mil futuras borboletas. Se somos mortais é unicamente pelo fato de que partilhamos a mesma vida. Porque a morte não é o final da vida, mas apenas a passagem dessa mesma vida de um corpo a outros. Ainda que não pareça, esse vírus também é uma vida futura em amadurecimento – não necessariamente idêntica a que conhecemos, nem de um ponto de vista biológico, nem cultural – .
O vírus e sua propagação pandêmica também tem uma importância crucial desde outro ponto de vista. Levamos séculos contando a nós mesmos que estamos em cima da criação – ou da destruição –. Muitas vezes, o debate sobre o antropoceno tem derivado no empenho por parte de alguns moralistas perversos em pensar a magnificência do homem em ruínas: somos os únicos capazes de destruir o planeta, somos excepcionais em nosso poder nocivo, porque nenhum outro ser possui um poder semelhante.
Com o nascimento do novo coronavírus, estamos experimentando nossa extrema vulnerabilidade?
Pela primeira vez em muito tempo – e numa escala planetária, global – nos deparamos com algo que é muito mais poderoso que nós e que vai nos deixar paralisados durante meses. Tanto mais porque se trata de um vírus, que é o mais ambíguo dos seres que povoam a Terra, um ser que é inclusive difícil de qualificar de “vivo”: habita no umbral entre a vida “química” que caracteriza a matéria e a vida biológica, e não conseguimos definir se pertence a uma ou a outra. É muito animado para a química, mas muito indeterminado para a biologia.
É perturbador constatar, no próprio corpo do vírus, a clara oposição entre a vida e a morte. E, todavia, esse agregado de material genético foi liberado e pôs a civilização humana – a mais desenvolvida, do ponto de vista técnico, da história do planeta – de joelhos. Sonhávamos que éramos os únicos responsáveis pela destruição… e estamos nos dando conta de que a Terra pode se desfazer de nós com a menor de suas criaturas. É muito libertador: por fim, nos liberamos dessa ilusão de onipotência que nos obriga a nos imaginar como o princípio e o fim de qualquer acontecimento planetário, tanto para o bem quanto para o mal, e a negar que a realidade que temos diante de nós seja independente de nós.
Inclusive uma minúscula porção de matéria organizada é capaz de nos ameaçar. A Terra e sua vida não precisam de nós para impor ordens, inventar formas ou mudar de direção.

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