[Entrevista
realizada por Nicolas Truong e publicada no blog Lobo Suelto,
em 16/4/2020. Tradução: Vapor ao Vento]
O
filósofo explica porque, em sua opinião, a atual epidemia devolve o
ser humano à natureza. E como a ecologia precisa ser repensada, para
afastá-la da ideologia patriarcal baseada no “lar”
O
filósofo Emanuele Coccia é professor na Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais e um dos intelectuais mais iconoclastas de seu
tempo. Autor, na editora Payot et Rivages, das obras La Vie sensible
(2010), Le Bien dans les choses (2013), La Vie des plantes (A vida das plantas, publicado no Brasil pela Editora Cultura e Barbárie, em 2018), Une
métaphysique du mélange (2016), acaba de publicar Métamorphoses
(Payot et Rivages, 236 páginas), um livro que lembra como as
espécies vivas se relacionam entre si, incluindo os vírus e os
humanos, porque, segundo escreve “somos a borboleta dessa enorme
lagarta que é nossa Terra”. Na entrevista abaixo, analisa os
impulsores dessa crise de saúde mundial e explica porque, por mais
que seja necessária, “a ordem de ficar em casa é paradoxal e
perigosa”.
Estão
tomando medidas importantes para assegurar que a economia não entre
em colapso. Deveria se fazer o mesmo para a vida social?
Diante
da pandemia, a maioria dos governos tomaram medidas firmes e
corajosas: não só a vida econômica em grande medida estacionou ou
se tornou
fortemente lenta,
mas também a vida sócia pública foi amplamente interrompida.
Tem-se requerido à
população que fique em casa: foram proibidas as reuniões, as
refeições compartilhadas, os ritos de amizade e de debate público
e o sexo entre desconhecidos, porém também os ritos religiosos,
políticos e esportivos. De repente, a cidade desapareceu ou, melhor
dizendo, foi levada, foi subtraída do uso: se apresenta diante de
nós como atrás
de uma vitrine. Já não há espaço público nem lugares para a
livre circulação, abertos a todos e às atividades mais populares e
díspares, dedicadas à produção da felicidade tanto individual
quanto partilhada. A população se isolou diante desse enorme vazio
e chora a cidade desaparecida, a comunidade suspensa, a sociedade
fechada juntamente com as lojas, universidades ou estádios: as
transmissões diretas pelo Instagram, os aplausos ou as músicas
coletivas na varanda, a multiplicação das arbitrárias e alegres
corridas
semanais são
em sua maioria rituais de duelo, tentativas desesperadas de
reproduzir a cidade em miniatura.
Esta
reação é normal
e fisiológica. A interrupção da vida econômica – que
já vimos experimentando a cada domingo – foi objeto de um número
infinito de reflexões e medidas de antecipação e reconstrução.
Por outro lado, o gesto de suspender a vida em comum, muito mais
inédito e violento, foi abrupto e radical: sem preparação, sem
acompanhamento.
A
necessidade dessas medidas está fora de qualquer discussão: só
dessa maneira seremos capazes de defender a comunidade. Porém,
tratam-se de medidas muito sérias: relegam toda
a população à casa. E, todavia, não tem nenhum debate, nenhum
intercâmbio nem nenhum outro discurso mais além do da morte e do
medo, de si mesmo e dos outros.
Qual
é a responsabilidade dos governos nesse esquecimento social do
confinamento?
É
bastante infantil imaginar que se pode manter milhões de vidas sob
prisão domiciliar unicamente através de ameaças ou difundindo o
medo à morte. É muito irresponsável, por parte desses mesmos
governos, pretender obter a renúncia de uma comunidade a si mesma
fazendo-a se sentir culpada ou infantilizando-a. O custo psíquico
dessa forma de proceder será enorme. Não se tem em conta, por
exemplo, as diferenças quanto ao tamanho dos apartamentos, sua
localização, o número de indivíduos de diferentes idades que
convivem neles: é quase como se, ao tomar medidas em relação a
vida econômica, houvéssemos optado por ignorar as diferenças
quanto ao volume de negócio ou ao número de empregados de cada
empresa.
Não
se tem em conta a solidão, as angústias e especialmente a violência
que todo espaço doméstico com frequência oculta e amplifica.
Convidar
cada pessoa a coincidir com a própria casa significa produzir as
condições para uma futura guerra civil. Poderia explodir daqui a
poucas semanas.
Além
disso, se para a vida econômica tratamos de buscar um compromisso
entre a necessidade de manter à sociedade viva e a de protegê-la,
para a vida social, cultural ou psíquica temos ajustado muito menos.
Por exemplo, temos deixado abertas as tabacarias, mas não as
livrarias: a escolha do que se consideram “necessidades básicas”
transfere uma imagem bastante caricaturesca da humanidade. Há um
tema iconográfico que atravessou a pintura européia: o de “São
Jerônimo no deserto”, representado com uma caveira e um livro –
a
Bíblia que estava traduzindo –. As medidas fazem de cada um de nós
“jerônimos” que contemplam a morte e seus medos, porém que nem
sequer têm direito a levar consigo um livro ou um disco de vinil.
“Fiquem
em casa!”, diz o presidente. Contudo, em Métamorphoses, você faz
uma crítica desse “todos para casa” e dessa obsessão em
atribuir vida à residência. Qual a razão?
Esta
experiência inaudita de prisão domiciliar indeterminada e coletiva
que se estende de repente a bilhões de pessoas nos ensina muitas
coisas. Em primeiro lugar, experimentamos o fato de que a casa não
nos protege, não é necessariamente um refúgio: também pode nos
matar.
Podemos
morrer por excesso de lar. E a cidade, a distância que implica
qualquer sociedade, nos protege normalmente contra os excessos de
intimidade e de proximidade que qualquer casa nos impõe. Portanto,
não há nada de estranho no desconforto que as pessoas experimentam
nestes dias. A idéia de que o lar, a casa, é o lugar da proximidade
à “natureza” é um mito de origem patriarcal. A casa é o espaço
dentro do qual convivem uma série de objetos e indivíduos sem
liberdade, no seio de uma ordem orientada à produção de uma
utilidade. A única diferença que existe entre as casas e as
empresas é o vínculo genealógico que une os membros de umas mas
não de outras. Também por isso, qualquer casa é exatamente o
oposto do político: daí que a ordem de ficar em casa seja paradoxal
e perigosa.
Em
que sentido a análise ecológica da crise de saúde lhe parece
inapropriada, romantica no melhor dos casos e reacionária no pior?
A
experiência desses dias deveria portanto nos ensinar que a ecologia,
a ciência que deveria nos ajudar a corrigir o planeta, deve ser
completamente reformulada, começando por seu nome, que todavia
abriga a imagem de lar (oikos,
em grego, significa lar, casa). A ecologia não só é romantica,
como segue sendo essa ciência profundamente patriarcal que, apesar
de todos os esforços do ecofeminismo, não tem conseguido
libertar-se de seu passado.
De
fato, ao seguir pensando que a Terra é o lar do vivo e que todas as
espécies têm a mesma relação privilegiada com um território que
um indivíduo humano tem com seu apartamento, não só insistimos em
submeter a totalidade das espécies vivas à prisão domiciliar, como
além disso estamos projetando um modelo econômico na natureza. A
ecologia e a economia de mercado nasceram ao mesmo tempo, são dois
gêmeos siameses que partilham os mesmos conceitos e um mesmo marco
epistemológico, e é ingenuo pensar que, da ecologia, tal e como
está estruturada hoje em dia, se possa chegar a lutar contra o
capitalismo.
Não,
não há casas ou lugares ontológicos, nem para nós, os humanos,
nem para os não humanos: na Terra só há migrantes porque a Terra é
um planeta, ou seja, um corpo que está constantemente à deriva no
cosmos. Embora
seja planetário, cada ser vivo está à deriva, muda de lugar, de
corpo e de vida, constantemente. É impossível se proteger dos
outros e essa pandemia demonstra isso. Só podemos evitar algumas das
consequências do contágio, porém o contágio como tal, nós, como
seres vivos, nunca poderemos evitá-lo.
Contrariamente
ao que gostaríamos de imaginar, esta pandemia não é a consequência
de nossos pecados ecológicos: não é um flagelo divino que a Terra
nos envia. É só a consequência do fato de que toda vida está
exposta à vida dos outros, que todo corpo abriga a vida de outras
espécies e é suscetível de ser privado da vida que o anima.
Ninguém, entre os vivos, está em sua casa: a vida que habita no
fundo de nós e que nos anima é muito mais antiga que nossos corpos,
e também é mais jovem, porque continuará vivendo quando nosso
corpo se desintegrar.
O
vírus se percebe como algo preocupante, claro, mas também
radicalmente diferente de nós. E, todavia, em seu livro você mostra
que ele é parte de nós. Em que sentido é um dos rostos da
metamorfose do vivo?
Todos
os seres vivos, qualquer que seja sua espécie, seu reino, seu
estágio evolutivo, partilham uma só e mesma vida: é a mesma vida
que cada ser vivo transmite a sua descendência, a mesma vida que uma
espécie transmite a outra espécie através da evolução. A relação
entre os seres vivos, não importa se pertencem a espécies
diferentes, é a que existe entre a lagarta e a borboleta. Toda vida
é tanto repetição quanto metamorfose da vida que a precedeu. Cada
um de nós (e cada espécie) é ao mesmo tempo a borboleta de uma
lagarta que se formou num casulo e a lagarta de mil futuras
borboletas. Se somos mortais é unicamente pelo fato de que
partilhamos a mesma vida. Porque a morte não é o final da vida, mas
apenas a passagem dessa mesma vida de um corpo a outros. Ainda que
não pareça, esse vírus também é uma vida futura em
amadurecimento – não necessariamente idêntica a que conhecemos,
nem de um ponto de vista biológico, nem cultural – .
O
vírus e sua propagação pandêmica também tem uma importância
crucial desde outro ponto de vista. Levamos séculos contando a nós
mesmos que estamos em cima da criação – ou da destruição –.
Muitas vezes, o debate sobre o antropoceno tem derivado no empenho
por parte de alguns moralistas perversos em pensar a magnificência
do homem em ruínas: somos os únicos capazes de destruir o planeta,
somos excepcionais em nosso poder nocivo, porque nenhum outro ser
possui um poder semelhante.
Com
o nascimento do novo coronavírus, estamos experimentando nossa
extrema vulnerabilidade?
Pela
primeira vez em muito tempo – e numa escala planetária, global –
nos deparamos com algo que é muito mais poderoso que nós e que vai
nos deixar paralisados durante meses. Tanto mais porque se trata de
um vírus, que é o mais ambíguo dos seres que povoam a Terra, um
ser que é inclusive difícil de qualificar de “vivo”: habita no
umbral entre a vida “química” que caracteriza a matéria e a
vida biológica, e não conseguimos definir se pertence a uma ou a
outra. É muito animado para a química, mas muito indeterminado para
a biologia.
É
perturbador constatar, no próprio corpo do vírus, a clara oposição
entre a vida e a morte. E, todavia, esse agregado de material
genético foi liberado e pôs a civilização humana – a mais
desenvolvida, do ponto de vista técnico, da história do planeta –
de
joelhos. Sonhávamos que éramos os únicos responsáveis pela
destruição… e estamos nos dando conta de que a Terra pode se
desfazer de nós com a menor de suas criaturas. É muito libertador:
por fim, nos liberamos dessa ilusão de onipotência que nos obriga a
nos imaginar como o princípio e o fim de qualquer acontecimento
planetário, tanto para o bem quanto para o mal, e a negar que a
realidade que temos diante de nós seja independente de nós.
Inclusive
uma minúscula porção de matéria organizada é capaz de nos
ameaçar. A Terra e sua vida não precisam de nós para impor ordens,
inventar formas ou mudar de direção.
Comentários
Postar um comentário