Monólogo do vírus é um texto que foi publicado inicialmente no site francês LundiMatin, em vários idiomas, em 21/3/2020.
"Eu vim parar a máquina cujo freio de emergência vocês não estavam encontrando"
Queridos humanos, parem com os seus ridículos apelos à guerra. Parem de me lançar esses olhares de vingança. Desliguem a aura de terror com que embrulham o meu nome. Nós, os vírus, desde a origem bacteriana do mundo, somos o verdadeiro continuum da vida na Terra. Sem nós, vocês nunca teriam visto a luz do dia, nem mesmo a teria visto a primeira célula.
Nós somos os seus ancestrais, como as pedras e as algas, e bem mais do que os macacos. Nós estamos onde vocês estão e também onde não estão. Que pena que apenas reconheçam no universo aquilo que se assemelha a vocês. Mas, acima de tudo, parem de dizer que sou eu quem está a lhes matar. Não estão a morrer por causa do que estou a fazer aos seus tecidos, mas porque deixaram de cuidar de seus semelhantes. Se vocês não tivessem sido tão vorazes uns com os outros como foram com tudo o que vive neste planeta, ainda haveria camas, enfermeiros e ventiladores suficientes para sobreviver à devastação que causo em seus pulmões. Se não armazenassem os velhos em casas moribundas e os seus cidadãos saudáveis em ratoeiras de concreto armado, também vocês não se veriam nessa. Se não tivessem transformado a ainda ontem exuberante, caótica, infinitamente povoada amplitude do mundo - ou melhor dito, dos mundos - num vasto deserto para a monocultura do Mesmo e do Mais, eu não teria sido capaz de me lançar à conquista planetária das suas gargantas. Se durante o último século não se tivessem convertido praticamente todos em cópias redundantes de uma mesma forma insustentável de vida, não se estariam a preparar agora para morrer como moscas abandonadas na água de sua civilização adocicada. Se não tivessem transformado os seus ambientes em espaços tão vazios, transparentes e abstratos, podem ter certeza que eu não estaria a mover-me à velocidade de um avião. Só estou cumprindo a sentença que vocês próprios pronunciaram há muito tempo. Perdoem-me, mas tanto quanto sei, foram vocês que inventaram o termo 'Antropoceno'. Reivindicaram toda a honra da catástrofe; agora que ela está acontecendo, é tarde demais para renunciá-la. Os mais honestos de vocês sabem bem disso: não tenho outro cúmplice que não a sua própria organização social, sua loucura da 'grande escala' e sua economia, seu fanatismo do sistema. Apenas os sistemas são 'vulneráveis'. O resto vive e morre. Só há vulnerabilidade para aquilo que aspira ao controle, para a sua própria extensão e perfeição. Olhem para mim com cuidado: sou apenas a outra face da Morte que reina.
Por isso, parem de me culpar, de me acusar, de me perseguir. Parem de se paralisar diante de mim. Tudo isso é infantil. Proponho que mudem o seu olhar: há uma inteligência imanente na vida. Não precisa ser sujeito para ter uma lembrança ou uma estratégia. Não é preciso ser soberano para decidir. As bactérias e os vírus também podem fazer com que chova ou faça sol. Olhem para mim como o seu salvador e não como o seu coveiro. São livres para não acreditar em mim, mas eu vim desligar a máquina cujo freio de emergência vocês não encontravam. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da 'normalidade'. 'Delegar a outros a nossa alimentação, a nossa proteção, a nossa capacidade de cuidar das nossas condições de vida tem sido uma loucura... Não há limite orçamentário, a saúde não tem preço': vejam como faço os seus governantes se retratarem nas palavras e nas ações! Vejam como os reduzo à sua verdadeira condição de mercadores miseráveis e arrogantes! Vejam como de repente se revelam não só como supérfluos, mas como nocivos! Para eles vocês são apenas o suporte da reprodução do seu sistema, ou seja, vocês são menos do que escravos. Até o plâncton é tratado melhor do que vocês.
Mas não desperdicem as suas energias reprovando-os ou atacando as suas limitações. Acusá-los de negligência é dar-lhes mais do que eles merecem. Perguntem-se antes como pôde parecer tão confortável deixá-los governar. Elogiar os métodos da opção chinesa em oposição à opção britânica, da solução imperial-legalista em oposição ao método darwinista-liberal, é não entender nada de um ou de outro, nem do horror de uma nem do outro. Desde Quesnay, os 'liberais' sempre olharam invejosamente para o Império Chinês; e continuam a fazê-lo. São irmãos siameses. Que um confine vocês para o seu próprio bem e o outro para o bem da 'sociedade' equivale igualmente em esmagar a única conduta não-nihilista nesse momento: cuidar-se de si mesmo, daqueles que amamos e do que amamos naqueles que não conhecemos. Não deixem que aqueles que os levaram ao abismo finjam lhes tirar dele: eles só lhes prepararão um inferno mais perfeito, um túmulo ainda mais profundo. No dia em que puderem, patrulharão o além com os seus exércitos.
Agradece a mim. Sem mim, por quanto mais tempo fariam passar como necessárias essas coisas aparentemente inquestionáveis, cuja suspensão é imediatamente decretada? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, as restrições orçamentárias, as eleições, o espetáculo das competições esportivas, a Disneylândia, as academias, a maioria dos comércios, o parlamento, o encarceramento escolar, as aglomerações de massas, a maior parte dos trabalhos de escritório, toda essa ébria sociabilidade que é apenas o contrário da angustiada solidão das mônadas metropolitanas. Afinal, nada disso é necessário quando o estado de necessidade se manifesta. Agradeçam a mim o teste da verdade que vão passar nas próximas semanas: vão finalmente viver a sua própria vida, sem os milhares de subterfúgios que, mal ou bem, sustentam o insustentável. Ainda não se tinham dado conta que nunca tinham sido capazes de instalar-se em sua própria existência. Estão entre caixas de cartão e não o sabiam. Agora vão viver com os seus entes queridos. Vão viver em casa. Vão parar de estar em trânsito rumo à morte. Podem odiar o seu marido. Podem se aborrecer com os seus filhos. Podem ter vontade de fazer explodir o cenário de sua vida cotidiana. A verdade é que, já não estavam neste mundo nessas metrópoles de separação. O seu mundo já não era habitável em nenhum dos seus pontos, se não em fuga constante. Tão grande era a presença da feiúra que vocês precisavam se atordoar de movimento e de distrações. E o fantasmagórico reinava entre os seres. Tudo tinha se tornado tão eficaz que já nada fazia sentido. Agradeçam-me por tudo isso e sejam bem-vindos à terra!
Graças a mim, por um tempo indefinido, não trabalharão mais, seus filhos não irão à escola, e ainda assim será o oposto de férias. Férias é aquele espaço que deve ser preenchido a todo custo enquanto se espera pelo ansiado retorno ao trabalho. Mas esse espaço que se abre diante de vocês, graças a mim, não é um espaço delimitado, é uma imensa abertura. Eu vim para lhes desconcertar. Nada lhes garante que o não-mundo de antes voltará. Talvez todo esse absurdo lucrativo chegue ao fim. Se vocês não forem pagos, o que pode ser mais natural do que deixar de pagar o aluguel? Por que é que alguém que não pode mais trabalhar deve continuar a pagar prestações aos bancos? Não é suicida viver onde nem se pode cultivar uma horta? Não é porque vocês não têm dinheiro que não vão comer, e quem tem o ferro tem o pão, costumava dizer Auguste Blanqui. Agradeçam-me: coloco vocês ao pé da bifurcação que tacitamente estruturou a sua existência: a economia ou a vida. A decisão é sua. O que está em jogo é histórico. Ou os governantes lhes impõem o seu estado de exceção ou vocês inventam o seu. Ou vocês se vinculam às verdades que estão vindo à luz ou colocam a cabeça no cepo do verdugo. Ou vocês aproveitam o tempo que estou lhes dando agora para imaginar o mundo que vem depois, a partir das lições do colapso a que estamos assistindo, ou ele será completamente radicalizado. O desastre para quando para a economia. A economia é o desastre. Essa era a tese antes do mês passado. Agora é um fato. Ninguém ignora quanta polícia, quanta vigilância, quanta propaganda, quanta logística e quanto teletrabalho será necessário para reprimí-lo.
Enfrentem-me, não cedam nem ao pânico nem a negação. Não cedam à histeria biopolítica. As próximas semanas serão terríveis, esmagadoras e cruéis. Os portões da Morte estarão bem abertos. Eu sou a mais devastadora produção de devastação da produção. Venho devolver o nada aos niilistas. A injustiça desse mundo nunca será mais escandalosa. É uma civilização, e não vocês, que eu venho enterrar. Aqueles que querem viver terão que criar novos hábitos apropriados a eles. Evitar-me será a oportunidade para esta reinvenção, para esta nova arte da distância. A arte de se cumprimentar, na qual alguns eram suficientemente míopes como para ver a forma mesmo da instituição, já não obedecerá a qualquer etiqueta. Caracterizará os seres. Não façam 'pelos outros', pela 'população' ou pela 'sociedade', façam-no por vocês. Cuidem de seus amigos e de seus amores. Repensem com eles, soberanamente, uma forma justa de vida. Criem aglomerados de vida boa, expandam-nos e nada poderei contra vocês. Esse é um apelo não ao retorno massivo da disciplina, mas da atenção. Não ao fim da despreocupação, mas ao fim da negligência. Que outra forma havia para lembrar vocês que a salvação está em cada gesto? Que tudo está no ínfimo.
Tive que me render à evidência: a humanidade só se coloca as questões que ela já não pode mais não se perguntar.
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