Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

MONÓLOGO DO VÍRUS



Monólogo do vírus é um texto que foi publicado inicialmente no site francês LundiMatin, em vários idiomas, em 21/3/2020.

"Eu vim parar a máquina cujo freio de emergência vocês não estavam encontrando"


Queridos humanos, parem com os seus ridículos apelos à guerra. Parem de me lançar esses olhares de vingança. Desliguem a aura de terror com que embrulham o meu nome. Nós, os vírus, desde a origem bacteriana do mundo, somos o verdadeiro continuum da vida na Terra. Sem nós, vocês nunca teriam visto a luz do dia, nem mesmo a teria visto a primeira célula. 

Nós somos os seus ancestrais, como as pedras e as algas, e bem mais do que os macacos. Nós estamos onde vocês estão e também onde não estão. Que pena que apenas reconheçam no universo aquilo que se assemelha a vocês. Mas, acima de tudo, parem de dizer que sou eu quem está a lhes matar. Não estão a morrer por causa do que estou a fazer aos seus tecidos, mas porque deixaram de cuidar de seus semelhantes. Se vocês não tivessem sido tão vorazes uns com os outros como foram com tudo o que vive neste planeta, ainda haveria camas, enfermeiros e ventiladores suficientes para sobreviver à devastação que causo em seus pulmões. Se não armazenassem os velhos em casas moribundas e os seus cidadãos saudáveis em ratoeiras de concreto armado, também vocês não se veriam nessa. Se não tivessem transformado a ainda ontem exuberante, caótica, infinitamente povoada amplitude do mundo - ou melhor dito, dos mundos - num vasto deserto para a monocultura do Mesmo e do Mais, eu não teria sido capaz de me lançar à conquista planetária das suas gargantas. Se durante o último século não se tivessem convertido praticamente todos em cópias redundantes de uma mesma forma insustentável de vida, não se estariam a preparar agora para morrer como moscas abandonadas na água de sua civilização adocicada. Se não tivessem transformado os seus ambientes em espaços tão vazios, transparentes e abstratos, podem ter certeza que eu não estaria a mover-me à velocidade de um avião. Só estou cumprindo a sentença que vocês próprios pronunciaram há muito tempo. Perdoem-me, mas tanto quanto sei, foram vocês que inventaram o termo 'Antropoceno'. Reivindicaram toda a honra da catástrofe; agora que ela está acontecendo, é tarde demais para renunciá-la. Os mais honestos de vocês sabem bem disso: não tenho outro cúmplice que não a sua própria organização social, sua loucura da 'grande escala' e sua economia, seu fanatismo do sistema. Apenas os sistemas são 'vulneráveis'. O resto vive e morre. Só há vulnerabilidade para aquilo que aspira ao controle, para a sua própria extensão e perfeição. Olhem para mim com cuidado: sou apenas a outra face da Morte que reina.

Por isso, parem de me culpar, de me acusar, de me perseguir. Parem de se paralisar diante de mim. Tudo isso é infantil. Proponho que mudem o seu olhar: há uma inteligência imanente na vida. Não precisa ser sujeito para ter uma lembrança ou uma estratégia. Não é preciso ser soberano para decidir. As bactérias e os vírus também podem fazer com que chova ou faça sol. Olhem para mim como o seu salvador e não como o seu coveiro. São livres para não acreditar em mim, mas eu vim desligar a máquina cujo freio de emergência vocês não encontravam. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da 'normalidade'. 'Delegar a outros a nossa alimentação, a nossa proteção, a nossa capacidade de cuidar das nossas condições de vida tem sido uma loucura... Não há limite orçamentário, a saúde não tem preço': vejam como faço os seus governantes se retratarem nas palavras e nas ações! Vejam como os reduzo à sua verdadeira condição de mercadores miseráveis e arrogantes!  Vejam como de repente se revelam não só como supérfluos, mas como nocivos! Para eles vocês são apenas o suporte da reprodução do seu sistema, ou seja, vocês são menos do que escravos. Até o plâncton é tratado melhor do que vocês.

Mas não desperdicem as suas energias reprovando-os ou atacando as suas limitações. Acusá-los de negligência é dar-lhes mais do que eles merecem. Perguntem-se antes como pôde parecer tão confortável deixá-los governar. Elogiar os métodos da opção chinesa em oposição à opção britânica, da solução imperial-legalista em oposição ao método darwinista-liberal, é não entender nada de um ou de outro, nem do horror de uma nem do outro. Desde Quesnay, os 'liberais' sempre olharam invejosamente para o Império Chinês; e continuam a fazê-lo. São irmãos siameses. Que um confine vocês para o seu próprio bem e o outro para o bem da 'sociedade' equivale igualmente em esmagar a única conduta não-nihilista nesse momento: cuidar-se de si mesmo, daqueles que amamos e do que amamos naqueles que não conhecemos. Não deixem que aqueles que os levaram ao abismo finjam lhes tirar dele: eles só lhes prepararão um inferno mais perfeito, um túmulo ainda mais profundo. No dia em que puderem, patrulharão o além com os seus exércitos.

Agradece a mim. Sem mim, por quanto mais tempo fariam passar como necessárias essas coisas aparentemente inquestionáveis, cuja suspensão é imediatamente decretada? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, as restrições orçamentárias, as eleições, o espetáculo das competições esportivas, a Disneylândia, as academias, a maioria dos comércios, o parlamento, o encarceramento escolar, as aglomerações de massas, a maior parte dos trabalhos de escritório, toda essa ébria sociabilidade que é apenas o contrário da angustiada solidão das mônadas metropolitanas. Afinal, nada disso é necessário quando o estado de necessidade se manifesta. Agradeçam a mim o teste da verdade que vão passar nas próximas semanas: vão finalmente viver a sua própria vida, sem os milhares de subterfúgios que, mal ou bem, sustentam o insustentável. Ainda não se tinham dado conta que nunca tinham sido capazes de instalar-se em sua própria existência. Estão entre caixas de cartão e não o sabiam. Agora vão viver com os seus entes queridos. Vão viver em casa. Vão parar de estar em trânsito rumo à morte. Podem odiar o seu marido. Podem se aborrecer com os seus filhos. Podem ter vontade de fazer explodir o cenário de sua vida cotidiana. A verdade é que, já  não estavam neste mundo nessas metrópoles de separação. O seu mundo já não era habitável em nenhum dos seus pontos, se não em fuga constante. Tão grande era a presença da feiúra que vocês precisavam se atordoar de movimento e de distrações. E o fantasmagórico reinava entre os seres. Tudo tinha se tornado tão eficaz que já nada fazia sentido. Agradeçam-me por tudo isso e sejam bem-vindos à terra!

Graças a mim, por um tempo indefinido, não trabalharão mais, seus filhos não irão à escola, e ainda assim será o oposto de férias. Férias é aquele espaço que deve ser preenchido a todo custo enquanto se espera pelo ansiado retorno ao trabalho. Mas esse espaço que se abre diante de vocês, graças a mim, não é um espaço delimitado, é uma imensa abertura. Eu vim para lhes desconcertar. Nada lhes garante que o não-mundo de antes voltará. Talvez todo esse absurdo lucrativo chegue ao fim. Se vocês não forem pagos, o que pode ser mais natural do que deixar de pagar o aluguel? Por que é que alguém que não pode mais trabalhar deve continuar a pagar prestações aos bancos? Não é suicida viver onde nem se pode cultivar uma horta? Não é porque vocês não têm dinheiro que não vão comer, e quem tem o ferro tem o pão, costumava dizer Auguste Blanqui. Agradeçam-me: coloco vocês ao pé da bifurcação que tacitamente estruturou a sua existência: a economia ou a vida. A decisão é sua. O que está em jogo é histórico. Ou os governantes lhes impõem o seu estado de exceção ou vocês inventam o seu. Ou vocês se vinculam às verdades que estão vindo à luz ou colocam a cabeça no cepo do verdugo. Ou vocês aproveitam o tempo que estou lhes dando agora para imaginar o mundo que vem depois, a partir das lições do colapso a que estamos assistindo, ou ele será completamente radicalizado. O desastre para quando para a economia. A economia é o desastre. Essa era a tese antes do mês passado. Agora é um fato. Ninguém ignora quanta polícia, quanta vigilância, quanta propaganda, quanta logística e quanto teletrabalho será necessário para reprimí-lo.

Enfrentem-me, não cedam nem ao pânico nem a negação. Não cedam à histeria biopolítica. As próximas semanas serão terríveis, esmagadoras e cruéis. Os portões da Morte estarão bem abertos. Eu sou a mais devastadora produção de devastação da produção. Venho devolver o nada aos niilistas. A injustiça desse mundo nunca será mais escandalosa. É uma civilização, e não vocês, que eu venho enterrar. Aqueles que querem viver terão que criar novos hábitos apropriados a eles. Evitar-me será a oportunidade para esta reinvenção, para esta nova arte da distância. A arte de se cumprimentar, na qual alguns eram suficientemente míopes como para ver a forma mesmo da instituição, já não obedecerá a qualquer etiqueta. Caracterizará os seres. Não façam 'pelos outros', pela 'população' ou pela 'sociedade', façam-no por vocês. Cuidem de seus amigos e de seus amores. Repensem com eles, soberanamente, uma forma justa de vida. Criem aglomerados de vida boa, expandam-nos e nada poderei contra vocês. Esse é um apelo não ao retorno massivo da disciplina, mas da atenção. Não ao fim da despreocupação, mas ao fim da negligência. Que outra forma havia para lembrar vocês que a salvação está em cada gesto? Que tudo está no ínfimo.

Tive que me render à evidência: a humanidade só se coloca as questões que ela já não pode mais não se perguntar.



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