Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Crônica da Psicodeflação





[Texto de Franco "Bifo" Berardi, escritor, filósofo e agitador cultural, publicado no site italiano da casa editora Nero, em 16/3/2020. Tradução: Vapor ao Vento]

O imprevisto transforma aquilo que a vontade não soube transformar. Mas agora se trata de reativar a energia renovável da imaginação.


A palavra é um vírus. Talvez o vírus do influenza tenha sido, alguma vez, uma célula sã. Agora é
um organismo parasita que invade e danifica o sistema nervoso central. O homem
moderno não conhece mais o silêncio. Tenta interromper o discurso subvocal. Experimenta dez
segundos de silêncio interior. Vais encontrar um organismo resistente que te obriga a falar.
Esse organismo é a palavra.”
[William Burroughs, The Ticket that Exploded]

21 de fevereiro
Retornando de Lisboa, uma cena inesperada no Aeroporto de Bolonha. Na entrada, há dois humanos completamente cobertos com uma roupa branca, com um capacete fluorescente e um estranho aparelho em suas mãos. O aparelho é uma pistola termômetro de altíssima precisão que emite luz violeta por toda parte.

Se aproximam de cada passageiro, param-no, apontam a luz violeta para sua testa, verificam a temperatura e depois o deixam ir.

Um pressentimento: estamos atravessando uma nova porta no processo de mutação técnico-psicótica?

28 de fevereiro
Desde que voltei de Lisboa, não posso fazer outra coisa: comprei umas vinte pequenas telas e as pinto com tintas coloridas, fragmentos fotográficos, lápis, carvão. Não sou um pintor, mas quando estou nervoso, quando sino que está acontecendo algo que põe o meu organismo em vibração dolorosa, me meto a rabiscar para relaxar.

A cidade está silenciosa como se fosse feriado. As escolas estão fechadas, os cinemas fechados. Não há estudantes passeando, não há turistas. As agencias de viagem apagam regiões inteiras do mapa. As convulsões recentes do corpo planetário têm, talvez, provocado um colapso que obriga o organismo a parar, a desacelerar o movimento, a abandonar os lugares lotados e as frenéticas negociações cotidianas. E se esta fosse a via de saída que não conseguíamos encontrar, e que agora se nos apresenta na forma de uma epidemia psíquica, de um vírus linguístico gerado por um bio vírus?

A Terra alcançou um grau de irritação extremo, e o corpo da coletivo da sociedade, há muito tempo, um grau de stress intolerável: a doença se manifesta neste ponto, modestamente letal, mas devastadora no plano social e psíquico, como uma reação de autodefesa da Terra e do corpo planetário. Para as pessoas mais jovens é só uma gripe irritante.

O que provoca pânico é que o vírus escapa ao nosso saber: a medicina não o conhece, nem o sistema imunitário. E o desconhecido de repente para a máquina. Um vírus semiótico no ambiente psicótico bloqueia o abstrato funcionamento da economia, porque subtrai dela os corpos. Querem ver?

2 de março
Um vírus semiótico no ambiente psicótico bloqueia o abstrato funcionamento da máquina, porque os corpos atrasam os seus movimentos, renunciam finalmente à ação, interrompem a pretensão do governo no mundo e deixam que o tempo recupere o seu fluxo no qual nadamos passivamente, segundo a técnica natatória que se chama “fingir-se de morto”. Nada engole uma coisa após a outra, mas foi dissolvida entretanto essa ansiedade de manter juntos o mundo que mantinha o mundo unido.

Não há pânico, não há medo, mas silêncio. Rebelar-se se revelou inútil, portanto paremos.

Quanto tempo destina-se a durar o efeito desta fixação psicótica que leva o nome de coronavirus? Dizem que a primavera matará o vírus, mas poderá ao contrário fortalecê-lo. Não sabemos nada, como podemos saber que temperatura ele prefere? Pouco importa quão letal seja a doença: parece sê-la modestamente, e esperamos que em breve se dissolva.

Mas o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas que debilita ou o pequeno número de pessoas que mata. O efeito do vírus está na paralisia relacional que espalha. Há algum tempo, a economia mundial concluiu a sua parábola expansionista, mas não conseguíamos aceitar a idéia de estagnação como novo regime de longo prazo. Agora o vírus semiótico vai ajudando à transição para a imobilidade.

Querem ver?

3 de março
Como reage o organismo coletivo, o corpo planetário, a mente hiper-conectada submetida por três décadas à tensão ininterrupta da competição e de hiper-estimulação nervosa, à guerra pela sobrevivência, à solidão metropolitana e à tristeza, incapaz de libertar-se do primata que rouba a vida e a transforma em permanente stress, como um drogado que é incapaz de alcançar a heroína que dança diante dos seus olhos, submetido à humilhação da desigualdade e da impotência?

Na segunda metade de 2019, o corpo planetário entrou em convulsão. De Santiago a Barcelona, de Paris a Hong Kong, de Quito a Beirute, multidões de jovens saíram às ruas, aos milhares, furiosamente. A revolta não tinha objetivos concretos, ou melhor tinha objetivos contraditórios. O corpo planetário sofria espasmos que não sabia conduzir. A febre aumentou até o fim de 2019.

Então Trump mata Soleimani, na celebração do seu povo. Milhões de iranianos desesperados saem às ruas, choram, prometem estrondosa. Não acontece nada, bombardeiam um pátio. Em pânico, derrubam um avião civil. E assim, Trump vence tudo, sua popularidade cresce: os americanos se excitam quando vêem o sangue, os assassinos têm sido sempre os seus preferidos. Entretanto, os democratas começam as eleições primárias em um estado de tal divisão que só um milagre poderá levar a eleição do bom velhinho Sanders, única esperança de uma vitória improvável.

Portanto, nazismo trumpista e miséria para todos, e sobrestimulação crescente do sistema nervoso planetário. É esta a moral da história?

Mas aqui está a surpresa, a reviravolta, o imprevisto que anula todos os discursos sobre o inevitável. O imprevisto que esperávamos: a implosão. O organismo superestimulado do gênero humano, após décadas de aceleração e de frenesi, após alguns meses de convulsão gritante sem perspectiva, fechado em um túnel cheio de raiva, de gritos e de fumo, é finalmente atingido pelo colapso: se espalha uma gerontomaquia que mata principalmente idosos, contudo bloqueia, peça por peça, a máquina global da excitação, do frenesi, do crescimento, da economia…

O capitalismo é uma axiomática, quer dizer, funciona na base de uma premissa não comprovada (necessita do crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital). Todos os encadeamentos lógicos e econômicos são coerentes com esse axioma, e nada pode ser concebido ou tentado fora desse axioma. Não há uma via política para sair dessa axiomática do Capital, não há uma linguagem capaz de enunciar o exterior da linguagem, não há nenhuma possibilidade de destruir o sistema, porque todo processo linguístico se realiza dentro dessa axiomática que não torna possível enunciados eficazes extra-sistêmicos. A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard.

Só depois da morte poderemos começar a viver. Depois da morte do sistema, os organismos extra-sistêmicos poderão começar a viver. Admitido que sobrevivam, naturalmente, e por isso não há certeza.

A recessão econômica que se prepara poderá nos matar, poderá provocar conflitos violentos, poderá desencadear surtos de racismo e de guerra. É bom sabê-lo. Não estamos culturalmente preparados para pensar a estagnação como condição de longo prazo, não estamos preparados para pensar a frugalidade, a partilha. Não estamos preparados para dissociar o prazer do consumo.

4 de março
Isto é suficiente? Não sabíamos como nos livrar do polvo, não sabíamos como sair do cadáver do Capital; viver nesse cadáver empesteava a existência de todos, mas agora o choque abre o caminho à deflação psíquica definitiva. No cadáver do Capital ficamos forçados a sobre-excitação, a constante aceleração, a competição generalizada e a sobre-exploração com salários decrescentes. Agora o vírus esvazia a bolha da aceleração.

Há algum tempo o capitalismo se encontrava em condição de estagnação irremediável. Mas continuava a desafiar os animais de carga que somos, para nos impor de continuar a correr, mesmo que agora o crescimento tenha se tornado uma miragem triste e impossível.

A revolução não era mais concebível, porque a subjetividade está confusa, depressiva, convulsiva e o cérebro político já não tem qualquer acento na realidade. Por isso, é uma revolução sem subjetividade, meramente implosão, uma revolta da passividade, da resignação. Resignemo-nos. De repente, isso aparece como um slogan ultrasubversivo. Chega de agitação inútil que deveria melhorar e, em contrapartida, só produz o agravamento da qualidade de vida. Literalmente: não há mais nada a fazer. Então não vamos fazê-lo.

É dificil que o organismo coletivo se recupere deste choque psicótico-viral e que a economia capitalista agora reduzida à estagnação irremediável recupere o seu caminho glorioso. Podemos cair no inferno de uma prisão tecno-militar da qual apenas Amazon e o Pentágono têm as chaves. Ou podemos esquecer o débito, o crédito, o dinheiro e a acumulação.

O que a vontade política não foi capaz de fazer pode fazê-lo a potencia mutagênica do vírus. Mas esta fuga deve ser preparada imaginando o possível, agora que o imprevisível dilacerou a tela do inevitável.

5 de março
Manifestam-se os primeiros sinais de ruptura do sistema bolsista e da economia, os especialistas em questões econômicas observam que desta vez ao contrário de 2008 não servirão muito as intervenções do banco central ou dos outros organismos financeiros.

Pela primeira vez, a crise não provém de fatores financeiros e nem sequer de fatores estritamente econômicos, do jogo da demanda e da oferta. A crise provém do corpo.

Foi o corpo que decidiu baixar o ritmo. A desmobilização geral do coronavirus é um sintoma da estagnação, antes mesmo de ser uma causa.

Quando falo do corpo quero dizer, no seu conjunto, a função biológica, quero dizer o corpo físico que adoece, embora de modo suficientemente leve – mas me refiro também e sobretudo a mente, que por razões que têm nada a ver com o raciocínio, com a crítica, com a vontade, com a decisão política, entrou em uma fase passivização profunda.

Cansada de processar sinais muito complexos, deprimida depois da excessiva sobreexcitação, humilhada pela impotência da sua decisão frente a onipotência do autômato técnofinanceiro, a mente reduziu a tensão. Não que a mente tenha decidido alguma coisa: é a súbita queda da tensão que decide por todos. Psicodeflação.

6 de março
Naturalmente se pode defender exatamente o contrário disso que eu disse: o neoliberalismo, em seu casamento com o etno-nacionalismo, deve dar um passo no processo de abstração total da vida. Então é o vírus que obriga todos a ficar em casa, mas não bloqueia a circulação das mercadorias. Estamos no limite de uma forma tecnototalitária em que os corpos estarão para sempre entregues, controlados, telecomandados.

A Internazionale publica um artigo de Srecho Horvat (tradução de New Statesman).

Segundo Horvat, “o coronavírus não é uma ameaça para a economia neoliberal, mas, pelo contrário, cria o ambiente perfeito para essa ideologia. Mas do ponto de vista político o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária pode favorecer o objetivo etno-nacionalista de fronteiras reforçadas e da exclusividade racial e isso de interromper a livre circulação das pessoas (sobretudo se chegam de países em via de desenvolvimento) assegurando porém uma circulação de mercadorias e capitais.

O receio de uma pandemia é mais perigoso do que o próprio vírus. As imagens apocalípticas dos meios de comunicação escondem uma ligação profunda entre a extrema direita e a economia capitalista. Como um vírus precisa de uma célula viva para se reproduzir, também o capitalismo se adaptará à nova biopolítica do século XXI.

O novo coronavírus já afetou a economia global, mas não vai impedir a circulação e acumulação de capital. Quando muito, em breve, nascerá uma forma mais perigosa de capitalismo, que fará guarda num maior controle e uma maior purificação da população”.

Naturalmente a hipótese formulada por Horvat é realista.

Mas eu acho que esta hipótese mais realista não seja realista, porque subestima a dimensão subjetiva do colapso, e os efeitos a longo prazo da deflação psíquica sobre a estagnação econômica.

O capitalismo pôde sobreviver ao colapso financeiro de 2008 porque a condição do colapso era toda interna à dimensão abstrata da relação entre a linguagem financeira e a economia. Não poderá sobreviver ao colapso da epidemia porque aqui entra em jogo um fator extrasistêmico.

7 de março
Escreve-me, Alex, o meu amigo matemático: “Todos os recursos de supercomputadores estão empenhados para encontrar a cura do corona. Esta noite sonhei com a batalha final entre o biovírus e os vírus simulados. Em todo caso, o humano já está fora, me parece”.

A rede de cálculo global está buscando a fórmula capaz de contrapor o infovírus ao biovírus. É necessário decodificar, simular matematicamente, construir tecnicamente o corona-killer, para depois difundi-lo.

Enquanto isso, a energia se retira do corpo social e a política mostra a sua impotência constitutiva. A política é sempre mais o lugar do não poder, porque a vontade não tem controle sobre o infovírus.

O biovírus prolifera no corpo estressado da humanidade global.

Os pulmões são o ponto mais débil, parece. As doenças respiratórias se difundem há anos em proporção à extensão na atmosfera de substâncias irrespiráveis. Mas o colapso aconteceu quando, encontrando o sistema midiático, entrelaçando-se com a rede semiótica, o biovírus transferiu a sua potencia debilitante para o sistema nervoso, no cérebro coletivo, forçado a desacelerar seu ritmo.

8 de março
Durante a noite, o primeiro-ministro Conte comunicou a decisão de por em quarentena um quarto da população italiana. Piacenza, Parma, Reggio e Módena. Bolonha não. No momento.

Nos últimos dias falei com Fábio, fale com Lucia, e decidimos por nos ver esta noite para um jantar. Fazemos isso de vez em quando, vemo-nos em qualquer restaurante ou na casa do Fábio. Os jantares são um pouco tristes apesar de não dizermos, porque sabíamos todos os três que se trata do resíduo artificial disso que antes acontecia de forma completamente natural muitas vezes por semana, quando nos encontrávamos com a mãe.

Esse hábito de nos ver para almoçar (ou, mais raramente, para jantar) da mãe permaneceu, apesar de todos os eventos, movimentos e deslocamentos após a morte do meu pai: encontrávamo-nos para almoçar com a mãe sempre que possível.

Quando minha mãe se viu na condição de não poder mais preparar o almoço, esse hábito terminou. E pouco a pouco, mudou a relação entre nós três. Até essa altura, apesar de já ter 60 anos, continuamos a nos ver quase todos os dias de modo perfeitamente natural, continuamos a ocupar o mesmo local à mesa que ocupávamos quando tínhamos dez anos. Em torno da mesa, realizavam-se os mesmos rituais. A mãe estava sentada próxima ao fogão porque isso permitia a ela continuar a ocupar-se do cozimento enquanto comia. Eu e Lucia falávamos de política, mais ou menos como há 50 anos, quando ela era maoísta eu era operaísta.

Esse hábito acabou quando minha mãe entrou em sua longa agonia.

Desde então, temos que nos convidar para jantar, algumas vezes vamos a um restaurante asiático que fica sob as colinas, vizinho a Funivia, na rua que leva a Casalecchio, às vezes vamos ao apartamento de Fábio, no sétimo andar de um edifício popular no outro lado da longa ponte, entre Casteldebole e Borgo Panigale. Da janela se vê os prados que margeiam o rio, e longe se vê a colina de San Luca e à esquerda se vê a cidade.

Bom, nos últimos dias decidimos nos ver à noite para jantar. Eu tive de levar o queijo e o sorvete, Cristina, esposa de Fábio, preparou a lasanha.

Esta manhã tudo mudou e pela primeira vez – agora percebo – o coronavírus entrou em nossas vidas. Não mais como um objeto de reflexão filosófica, política, médica ou psicanalítica, mas como um perigo pessoal.

Primeiro chegou uma ligação de Tania, a filha de Lucia que há algum tempo vive em Sasso Marconi, com Rita.

Tania telefonou para me dizer: soube que você, minha mãe e Fábio querem jantar juntos, não façam isso. Eu estou em quarentena porque uma das minhas alunas (Tania dá aulas de yoga) é médica do Santa Úrsula e um dia desses os exames dela deram positivo. Estou um pouco de bronquite e então decidiram fazer o exame em mim também, enquanto aguardo o resultado não posso sair de casa. Eu lhe respondi me fazendo de cético, mas ela foi implacável e me disse algo bastante impressionante, que não havia pensado ainda.

Disse-me que a taxa de transmissibilidade de um influenza comum é de 0,21, enquanto a taxa de transmissibilidade do coronavírus é de 0,80. Para que fique claro: no caso de uma gripe normal precisa ter contato com quinhentas pessoas para contrair o vírus, no caso do corona basta ter contato com cento e vinte pessoas. Interessante.

Então ela, que parece ser bem informada porque foi fazer o exame e portanto falou com as pessoas que estão propriamente na linha de frente em matéria do contágio, disse-me que a idade de morte é oitenta anos.

Bom, isso eu suspeitava, mas agora sei. O coronavírus mata os idosos, e em particular mata os idosos com asma (como eu).

Na sua última comunicação, Giuseppe Conte, que me parece uma boa pessoa, um presidente um pouco por acidente que nunca deixou de ter o ar de quem tem pouco a ver com a política, disse: “pensemos na saúde dos nossos avós”. Comovente, visto que me encontro no papel embaraçoso do avô a proteger.

Abandonado o lugar do cético, disse a Tania que agradecia e que ia seguir a sua recomendação. Telefonei para Lucia, falamos um pouco e decidimos adiar o jantar.

Eu compreendo considerando que me meti em um clássico duplo vínculo batesoniano. Se não telefono para desmarcar o jantar me ponho na condição de poder ser um hospedeiro físico, de poder ser portador de um vírus que poderia matar meu irmão. Se, ao invés, telefono, como estou fazendo, para desmarcar o jantar, me ponho na condição de ser um hospedeiro psíquico, ou seja, de difundir o vírus do medo, o vírus do isolamento.

E se esta história vier durar muito tempo?

9 de março
O problema mais grave é a sobrecarga que é submetido o sistema de saúde: os departamentos de terapia intensiva estão à beira do colapso. Há o perigo de não poder tratar todas as pessoas que precisam de uma intervenção urgente, se fala da possibilidade de fazer escolhas entre pacientes que possam ser curados e pacientes que não possam ser curados.

Nos últimos dez anos foram cortados 37 bilhões do sistema de saúde pública, os departamentos de terapia intensiva foram reduzidos e o número de médicos de cuidados primários diminuiu drasticamente.

Segundo o site quotidianosanità.it, “em 2007, o Serviço de Saúde Pública podia contar com 334 Departamentos de Emergência-Urgência (DEA) e 530 prontos-socorros. Pois bem, 10 anos depois a dieta foi drástica: 49 DEA foram fechados (-14%) e 116 prontos-socorros desapareceram (-22%). Mas o corte mais evidente é sobre as ambulâncias, como as de Tipo A (emergência) que aquelas de Tipo B (transporte médico). Em 2017, aquelas de Tipo A foram reduzidas 4% relativamente a 10 anos antes enquanto as de Tipo B foram reduzidas à metade (52%). Note-se também como diminuíram as ambulâncias com médico a bordo: em 2017, o médico estava presente em 22% dos veículos, enquanto que em 2017 só em 14,7%. As unidades móveis de reanimação também se reduziram em 37% (eram 329 em 2007, são 205 em 2017). O ajuste abrangeu também as casas de repouso credenciadas, em todos os casos, tiveram muito menos estrutura e ambulancia em comparação com os hospitais públicos”.

A partir dos dados se pode ver como houve uma contração progressiva dos leitos em escala nacional, muito mais evidente e relevante no número de leitos públicos em comparação com a proporção de leitos administrados de forma privada: o corte de 32.717 leitos totais em sete anos remete principalmente ao serviço público, com 28.832 leitos menos do que em 2010 (-16,2%), em comparação com 4.335 leitos a menos que o serviço privado (-6,3%)”.

10 de março
Somos a onda do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”.

Isso está escrito nas dezenas de caixas que contêm máscaras que chegam da China. Essas mesmas máscaras que a Europa recusou.

11 de março
Não tenho ido à rua Mascarella, como geralmente faço no 11 de março de cada ano. Encontramo-nos na frente da lápide que lembra a morte de Francesco Lorusso, alguém faz um discurso, deposita-se uma coroa de flores ou uma bandeira de Lotta Continua, que alguém conservou no porão, e ainda nos abraçamos, e nos beijamos abraçando-nos fortemente.

Não senti vontade de ir desta vez, porque não me sentia bem de dizer a algum dos meus velhos companheiros companheiros que não podíamos nos abraçar.

De Wuhan chegam fotos de pessoas alegres, todos rigorosamente com a máscara verde. O último paciente com coronavírus teve alta do hospital construído rapidamente para conter o fluxo.

No hospital de Huoshenshan, na primeira etapa da sua visita, Xi elogiou médicos e enfermeiros chamando-lhes “os anjos mais belos” e “os mensageiros da luz e da esperança”. Os profissionais de saúde na linha de frente empreenderam as missões mais árduas, disse Xi, qualificando-os “as pessoas mais admiráveis da nova era, que merecem o mais alto elogio”.

Estamos entrando oficialmente na era biopolitica, onde os presidentes não podem fazer nada e só os médicos podem alguma coisa, porém não tudo.

12 de março
Itália. Todo o país entra em quarentena. O vírus corre mais rápido do que as medidas de contenção.

Eu e Billi pusemos a máscara, pegamos a bicicleta e fomos às compras. Só farmácias e mercados alimentares podem continuar abertos. E também as bancas de revistas, compramos jornais. E as tabacarias. Comprei papéis para fazer canudos, mas o haxixe escasseia em sua caixa de madeira. Em breve, estarei sem drogas e na praça Verdi não haverá mais nenhum dos jovens africanos que vendem aos estudantes.

Trump usou a expressão “foreign virus” [vírus estrangeiro].

All viruses are foreign by definition, but the President has not read William Burroughs.
[Todos os vírus são estrangeiros por definição, mas o Presidente não leu William Burroughs]

13 de março
No Facebook há um tipo espirituoso que postou no meu perfil a frase: ei, Bifo, aboliram o trabalho.

Na realidade, o trabalho foi abolido apenas para uns poucos. Os operários da indústria estão em revolta porque tem de ir à fábrica como sempre, sem máscaras ou outras proteções, a meio metro de distância um do outro.

O colapso, depois as longas férias. Ninguém pode dizer como sairemos desta.

Podemos sair, como prevêem alguns, sob a condição de um perfeito estado tecno-totalitário. No livro Black Earth, Timothy Snyder explica que não há condição melhor para a formação de regime totalitário do que a situação de emergência extrema, onde a sobrevivência de todos está em jogo.

A AIDS criou a condição para enfraquecimento do contato físico e para o lançamento de plataformas de comunicação sem contato: a Internet foi preparada pela mutação psíquica denominada AIDS.

Agora poderíamos muito bem passar a uma condição de permanente isolamento dos indivíduos, e a nova geração poderia interiorizar o terror do corpo dos outros.

Mas o que é o terror?

Terror é uma condição onde o imaginário domina completamente a imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens que a experiência apresentou, limitação da imaginação. A imaginação é a energia renovável e afetada. Não utopia, mas recombinação dos possíveis.

Há uma divergência no tempo que vem: poderíamos sair imaginando uma possibilidade que até ontem parecia impensável: redistribuição da renda, redução do tempo de trabalho. Igualdade, frugalidade, abandono do paradigma do crescimento, investimento da energia social em pesquisa, na educação, na saúde.

Não podemos saber como vamos sair da pandemia cujas condições foram criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes na saúde pública, pela hiperexploração nervosa. Poderemos sair definitivamente sozinhos, agressivos, competitivos.

Mas podemos sair dela, por outro lado, com uma grande vontade de abraçar: socialização solidária, contato, igualdade.

O vírus é a condição de um salto mental que nenhuma pregação política poderia ter produzido. A igualdade voltou ao centro da cena. Imaginemo-la como ponto de partida para o tempo que virá.

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