“A
palavra é um vírus. Talvez o vírus do influenza tenha sido, alguma
vez, uma célula sã. Agora é
um
organismo parasita que invade e danifica o sistema nervoso central. O
homem
moderno
não conhece mais o silêncio. Tenta interromper o discurso subvocal.
Experimenta dez
segundos
de silêncio interior. Vais encontrar um organismo resistente que te
obriga a falar.
Esse
organismo é a palavra.”
[William
Burroughs, The Ticket that Exploded]
21
de fevereiro
Retornando
de Lisboa, uma cena inesperada no Aeroporto de Bolonha. Na entrada,
há dois humanos completamente cobertos com uma roupa branca, com um
capacete fluorescente e um estranho aparelho em suas mãos. O
aparelho é uma pistola termômetro de altíssima precisão que emite
luz violeta por toda parte.
Se
aproximam de cada passageiro, param-no, apontam a luz violeta para
sua testa, verificam a temperatura e depois o deixam ir.
Um
pressentimento: estamos atravessando uma nova porta no processo de
mutação técnico-psicótica?
28
de fevereiro
Desde
que voltei de Lisboa, não posso fazer outra coisa: comprei umas
vinte pequenas telas e as pinto com tintas coloridas, fragmentos
fotográficos, lápis,
carvão. Não sou um pintor, mas quando estou nervoso, quando sino
que está acontecendo algo que põe o meu organismo em vibração
dolorosa, me meto a rabiscar para relaxar.
A
cidade está silenciosa como se fosse feriado. As
escolas
estão
fechadas,
os
cinemas
fechados.
Não há estudantes passeando, não
há turistas. As agencias de viagem apagam regiões inteiras do
mapa. As convulsões recentes do corpo planetário têm, talvez,
provocado um colapso que obriga o organismo a parar, a desacelerar o
movimento, a abandonar os
lugares lotados e as frenéticas negociações cotidianas. E se esta
fosse a via de saída que não conseguíamos encontrar, e que agora
se nos apresenta na forma de uma epidemia psíquica, de um vírus
linguístico gerado por um bio vírus?
A
Terra alcançou um grau de irritação extremo, e o corpo da coletivo
da sociedade, há muito tempo, um
grau de stress intolerável: a doença se manifesta neste ponto,
modestamente letal, mas devastadora no plano social e psíquico, como
uma reação de autodefesa da Terra e do corpo planetário. Para as
pessoas mais jovens é só uma gripe irritante.
O
que provoca pânico é que o vírus escapa ao nosso saber: a medicina
não o conhece, nem o sistema imunitário. E o desconhecido de
repente para a máquina. Um
vírus semiótico no ambiente psicótico bloqueia o abstrato
funcionamento da economia, porque subtrai dela os corpos. Querem ver?
2
de março
Um
vírus semiótico no ambiente psicótico bloqueia o abstrato
funcionamento da máquina, porque os corpos atrasam os seus
movimentos, renunciam finalmente à ação, interrompem a pretensão
do governo no mundo e deixam
que o tempo recupere o seu fluxo no qual nadamos passivamente,
segundo a técnica natatória que se chama “fingir-se de morto”.
Nada engole
uma coisa após a outra, mas
foi
dissolvida entretanto essa ansiedade de manter juntos o mundo que
mantinha o mundo unido.
Não
há pânico, não há medo, mas silêncio. Rebelar-se se revelou
inútil, portanto paremos.
Quanto
tempo destina-se a durar o efeito desta fixação psicótica que
leva o nome de coronavirus? Dizem que a primavera matará o vírus,
mas poderá ao contrário fortalecê-lo. Não sabemos nada, como
podemos saber que temperatura ele prefere? Pouco importa quão letal
seja a doença: parece sê-la modestamente, e esperamos que em breve
se dissolva.
Mas
o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas que debilita ou
o pequeno número de pessoas que mata. O efeito do vírus está na
paralisia relacional que espalha. Há algum tempo, a economia mundial
concluiu a sua parábola
expansionista, mas não conseguíamos aceitar a idéia de estagnação
como novo regime de longo prazo. Agora o vírus semiótico vai
ajudando à transição para
a imobilidade.
Querem
ver?
3
de março
Como
reage o organismo coletivo, o corpo planetário, a mente
hiper-conectada submetida por três décadas à tensão ininterrupta
da competição e de hiper-estimulação nervosa, à guerra pela
sobrevivência, à solidão metropolitana e à tristeza, incapaz de
libertar-se
do primata que rouba a vida e
a transforma em permanente stress, como
um drogado que é incapaz de alcançar a heroína que dança diante
dos seus olhos, submetido à humilhação da desigualdade e da
impotência?
Na
segunda metade de 2019, o corpo planetário entrou em convulsão. De
Santiago a Barcelona, de Paris a Hong Kong, de Quito a Beirute,
multidões de jovens saíram
às ruas, aos milhares, furiosamente. A revolta não tinha objetivos
concretos, ou melhor tinha objetivos contraditórios. O corpo
planetário sofria espasmos que não sabia conduzir. A
febre aumentou até o fim de 2019.
Então
Trump mata Soleimani, na
celebração do seu povo. Milhões de iranianos desesperados saem às
ruas, choram, prometem estrondosa. Não acontece nada, bombardeiam um
pátio. Em pânico, derrubam um avião civil. E assim, Trump vence
tudo, sua
popularidade cresce: os
americanos se excitam quando vêem o sangue, os assassinos têm sido
sempre os seus preferidos. Entretanto, os democratas começam as
eleições primárias em um estado de tal divisão que só um milagre
poderá levar a eleição do
bom velhinho Sanders, única esperança de uma vitória improvável.
Portanto,
nazismo trumpista e miséria para todos, e sobrestimulação
crescente do sistema nervoso planetário. É esta a moral da
história?
Mas
aqui está a surpresa, a reviravolta, o imprevisto que anula todos os
discursos sobre o inevitável. O imprevisto que esperávamos:
a implosão. O organismo superestimulado do gênero humano, após
décadas de aceleração e de frenesi, após alguns meses de
convulsão gritante sem perspectiva, fechado em um túnel cheio de
raiva, de gritos e de fumo, é finalmente atingido pelo colapso: se
espalha uma gerontomaquia que
mata principalmente idosos, contudo bloqueia, peça por peça, a
máquina global da excitação, do frenesi, do
crescimento, da economia…
O
capitalismo é uma axiomática, quer
dizer, funciona na base de uma premissa não comprovada (necessita do
crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital).
Todos os encadeamentos
lógicos e econômicos são coerentes com esse
axioma, e nada pode ser
concebido ou tentado fora desse axioma. Não há uma via política
para sair dessa axiomática do Capital, não há uma linguagem capaz
de enunciar o exterior da linguagem, não há nenhuma possibilidade
de destruir o sistema, porque todo processo linguístico se realiza
dentro dessa axiomática que não
torna possível enunciados eficazes extra-sistêmicos. A única saída
é a morte, como aprendemos com Baudrillard.
Só
depois da morte poderemos começar a viver. Depois da morte do
sistema, os organismos extra-sistêmicos poderão começar a viver.
Admitido que sobrevivam, naturalmente, e por
isso não há certeza.
A
recessão econômica que se prepara poderá nos matar, poderá
provocar conflitos violentos, poderá desencadear surtos de racismo e
de guerra. É
bom sabê-lo. Não estamos culturalmente preparados para pensar a
estagnação como condição de longo prazo, não estamos preparados
para pensar a frugalidade, a
partilha. Não estamos preparados para dissociar o prazer do consumo.
4
de março
Isto
é suficiente? Não sabíamos como nos livrar do polvo, não sabíamos
como sair do cadáver do Capital; viver nesse cadáver empesteava a
existência de todos, mas agora o
choque abre o caminho à deflação psíquica definitiva. No cadáver
do Capital ficamos forçados a sobre-excitação, a constante
aceleração, a competição generalizada e a sobre-exploração com
salários decrescentes. Agora o vírus esvazia a bolha da aceleração.
Há
algum tempo o capitalismo se
encontrava em condição de estagnação irremediável. Mas
continuava a desafiar os animais de carga que somos, para nos impor
de continuar a correr, mesmo que agora o crescimento tenha se tornado
uma miragem triste e impossível.
A
revolução não era mais concebível, porque
a subjetividade está confusa, depressiva, convulsiva e o cérebro
político já não tem qualquer acento na realidade. Por isso, é uma
revolução sem subjetividade, meramente implosão, uma revolta da
passividade, da resignação. Resignemo-nos.
De repente, isso aparece como um slogan ultrasubversivo. Chega de
agitação inútil que deveria melhorar e, em contrapartida, só
produz o agravamento da qualidade de vida. Literalmente: não há
mais nada a fazer. Então não vamos fazê-lo.
É
dificil que o organismo
coletivo se recupere deste choque psicótico-viral e que a economia
capitalista agora reduzida à estagnação irremediável recupere o
seu caminho glorioso. Podemos cair no inferno de uma prisão
tecno-militar da qual apenas Amazon e o Pentágono têm as chaves. Ou
podemos esquecer o débito, o crédito, o dinheiro e a acumulação.
O
que a vontade política não foi capaz de fazer pode fazê-lo a
potencia mutagênica do vírus. Mas esta fuga deve ser preparada
imaginando o possível, agora que o imprevisível dilacerou a tela do
inevitável.
5
de março
Manifestam-se
os primeiros sinais de ruptura do sistema bolsista e da economia, os
especialistas em questões econômicas observam que desta vez ao
contrário de 2008 não servirão muito as intervenções do banco
central ou dos outros organismos financeiros.
Pela
primeira vez, a crise não provém de fatores financeiros e nem
sequer de fatores estritamente econômicos, do
jogo da demanda e da oferta. A crise provém do corpo.
Foi
o corpo que decidiu baixar o ritmo. A desmobilização geral do
coronavirus é um sintoma da estagnação, antes mesmo de ser uma
causa.
Quando
falo do corpo quero dizer, no seu conjunto, a função biológica,
quero dizer o corpo físico que adoece, embora de modo
suficientemente leve – mas
me refiro também e sobretudo a mente, que por razões que têm nada
a ver com o raciocínio, com a crítica, com a vontade, com a decisão
política, entrou em uma fase passivização profunda.
Cansada
de processar sinais muito complexos,
deprimida depois da excessiva sobreexcitação, humilhada pela
impotência da sua decisão frente a onipotência do autômato
técnofinanceiro, a mente reduziu a tensão. Não que a mente tenha
decidido alguma coisa: é a súbita queda da tensão que decide por
todos.
Psicodeflação.
6
de março
Naturalmente
se pode defender exatamente o contrário disso que eu disse: o
neoliberalismo, em seu casamento com o etno-nacionalismo, deve dar um
passo no processo de abstração total da vida. Então é o vírus
que obriga todos a ficar em casa, mas não bloqueia a circulação
das mercadorias. Estamos no
limite de uma forma tecnototalitária em que os corpos estarão para
sempre entregues, controlados, telecomandados.
A
Internazionale publica
um artigo de Srecho Horvat (tradução de New Statesman).
Segundo
Horvat, “o coronavírus não é uma ameaça para a economia
neoliberal, mas, pelo contrário, cria o ambiente perfeito para essa
ideologia. Mas do ponto de
vista político o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária
pode favorecer o objetivo etno-nacionalista de fronteiras reforçadas
e da exclusividade racial e isso de interromper a livre circulação
das pessoas (sobretudo se chegam de países em via de
desenvolvimento) assegurando porém uma circulação de mercadorias e
capitais.
O
receio de uma pandemia é mais perigoso do
que o próprio vírus. As imagens apocalípticas dos meios de
comunicação escondem uma ligação profunda entre a extrema direita
e a economia capitalista. Como um vírus precisa de uma célula viva
para se reproduzir, também o capitalismo se adaptará à nova
biopolítica do século XXI.
O
novo coronavírus já afetou a economia global, mas
não vai impedir a circulação e acumulação de capital. Quando
muito, em breve, nascerá uma forma mais perigosa de capitalismo, que
fará guarda num maior controle e uma maior purificação da
população”.
Naturalmente
a hipótese formulada por Horvat é realista.
Mas
eu acho que esta hipótese mais realista não seja realista, porque
subestima a dimensão subjetiva
do colapso, e os efeitos a
longo prazo da deflação
psíquica sobre a estagnação econômica.
O
capitalismo pôde sobreviver ao colapso financeiro de 2008 porque a
condição do colapso era toda interna à dimensão abstrata da
relação entre a linguagem financeira e a economia. Não poderá
sobreviver ao colapso da epidemia porque aqui entra em jogo um fator
extrasistêmico.
7
de março
Escreve-me,
Alex, o meu amigo matemático: “Todos os recursos de
supercomputadores estão empenhados para encontrar a cura do corona.
Esta noite sonhei com a batalha final entre o biovírus e os vírus
simulados. Em todo caso, o humano já está fora, me parece”.
A
rede de cálculo global está buscando
a fórmula capaz de contrapor
o infovírus ao biovírus. É
necessário decodificar, simular matematicamente, construir
tecnicamente o corona-killer, para depois difundi-lo.
Enquanto
isso, a energia se retira do corpo social e a política mostra a sua
impotência constitutiva. A política é sempre mais o lugar do não
poder, porque a vontade não tem controle sobre o infovírus.
O
biovírus prolifera no corpo estressado da humanidade global.
Os
pulmões são o ponto mais débil, parece. As doenças respiratórias
se difundem há anos em proporção à extensão na atmosfera de
substâncias irrespiráveis. Mas o colapso aconteceu
quando, encontrando o sistema midiático, entrelaçando-se
com a rede semiótica, o biovírus transferiu a sua potencia
debilitante para o sistema nervoso, no cérebro coletivo, forçado a
desacelerar seu ritmo.
8
de março
Durante
a noite, o primeiro-ministro Conte comunicou a decisão de por em
quarentena um quarto da população italiana. Piacenza, Parma, Reggio
e Módena. Bolonha não. No momento.
Nos
últimos dias falei com
Fábio, fale com Lucia, e decidimos por nos ver esta noite para um
jantar. Fazemos isso de vez em quando, vemo-nos em qualquer
restaurante ou na casa do Fábio. Os jantares são um pouco tristes
apesar de
não dizermos, porque
sabíamos todos os três que se trata do resíduo artificial disso
que antes acontecia de forma completamente natural muitas vezes por
semana, quando nos encontrávamos com a
mãe.
Esse
hábito de nos ver para almoçar (ou, mais raramente, para jantar) da
mãe permaneceu, apesar
de todos
os eventos, movimentos e deslocamentos após a morte do meu pai:
encontrávamo-nos para almoçar com a mãe sempre que possível.
Quando
minha mãe se viu na condição de não poder mais preparar o almoço,
esse hábito terminou. E pouco a pouco, mudou a
relação entre nós três. Até essa altura, apesar de já ter 60
anos, continuamos a nos ver quase todos os dias de modo perfeitamente
natural, continuamos a ocupar o mesmo local à mesa que ocupávamos
quando tínhamos dez anos. Em torno da
mesa, realizavam-se os mesmos rituais. A mãe estava sentada próxima
ao fogão porque isso permitia a ela
continuar a ocupar-se do
cozimento enquanto comia. Eu e Lucia falávamos de política, mais ou
menos como há 50 anos, quando ela era maoísta eu era operaísta.
Esse
hábito acabou quando minha mãe entrou em sua longa agonia.
Desde
então, temos que nos convidar para jantar, algumas vezes vamos a um
restaurante asiático que fica sob as colinas, vizinho a Funivia, na
rua que leva a Casalecchio, às vezes vamos ao apartamento de Fábio,
no sétimo andar de um edifício popular no
outro lado da longa ponte, entre Casteldebole e Borgo Panigale. Da
janela se vê os prados que margeiam o rio, e longe se vê a colina
de San Luca e à esquerda se vê a cidade.
Bom,
nos últimos dias decidimos nos ver à
noite para jantar. Eu tive de levar o queijo e o sorvete, Cristina,
esposa de Fábio, preparou a lasanha.
Esta
manhã tudo mudou e pela primeira vez – agora percebo – o
coronavírus entrou em nossas vidas. Não mais como um objeto de
reflexão filosófica, política, médica ou psicanalítica, mas como
um perigo pessoal.
Primeiro
chegou uma ligação de Tania, a filha de Lucia que há algum tempo
vive em Sasso Marconi, com Rita.
Tania
telefonou para me dizer: soube que você, minha mãe e Fábio querem
jantar juntos, não façam isso. Eu estou em quarentena porque uma
das minhas alunas (Tania dá aulas de yoga) é médica do Santa
Úrsula e um dia desses os
exames dela deram positivo. Estou um pouco de bronquite e então
decidiram fazer o exame em mim também, enquanto aguardo o resultado
não posso sair de casa. Eu lhe respondi me fazendo de cético, mas
ela foi implacável e me disse algo bastante impressionante, que não
havia pensado ainda.
Disse-me
que a taxa de transmissibilidade de um influenza comum é de 0,21,
enquanto a taxa de transmissibilidade do coronavírus é de 0,80.
Para que fique claro: no caso de uma gripe normal precisa
ter contato com quinhentas
pessoas para contrair o vírus, no caso do corona basta ter contato
com cento e vinte pessoas. Interessante.
Então
ela, que parece ser bem informada porque foi fazer o exame e portanto
falou com as pessoas que
estão propriamente na linha de frente em matéria do contágio,
disse-me que a idade de morte é oitenta anos.
Bom,
isso eu suspeitava, mas agora sei. O coronavírus mata os idosos, e
em particular mata os idosos com asma (como eu).
Na
sua última comunicação, Giuseppe Conte, que me parece uma boa
pessoa, um presidente um
pouco por acidente que nunca
deixou de ter o ar de quem
tem pouco a ver com a
política, disse: “pensemos na saúde dos nossos avós”.
Comovente, visto que me encontro no papel embaraçoso do avô a
proteger.
Abandonado
o lugar do cético, disse a Tania que agradecia e que ia seguir a sua
recomendação. Telefonei para Lucia, falamos
um pouco e decidimos adiar o jantar.
Eu
compreendo considerando que me meti em um clássico duplo vínculo
batesoniano. Se não telefono para desmarcar o jantar me ponho na
condição de poder ser um hospedeiro físico, de
poder ser portador de um vírus que poderia matar meu irmão.
Se, ao invés, telefono, como
estou fazendo, para desmarcar o jantar, me ponho na condição de ser
um hospedeiro psíquico, ou seja, de difundir o vírus do medo, o
vírus do isolamento.
E
se esta história vier durar muito tempo?
9
de março
O
problema mais grave é a sobrecarga que é
submetido o sistema de saúde: os departamentos de terapia intensiva
estão à beira do colapso. Há o perigo de não poder tratar todas
as pessoas que precisam de uma intervenção urgente, se fala da
possibilidade de fazer escolhas entre pacientes que possam ser
curados e pacientes que não possam ser curados.
Nos
últimos dez anos foram cortados 37 bilhões do sistema de saúde
pública, os departamentos de
terapia intensiva foram reduzidos e o número de médicos de cuidados
primários diminuiu drasticamente.
Segundo
o site quotidianosanità.it, “em 2007, o Serviço de Saúde Pública
podia contar com 334 Departamentos de Emergência-Urgência (DEA) e
530 prontos-socorros. Pois bem, 10 anos depois a dieta foi drástica:
49 DEA foram fechados (-14%)
e 116 prontos-socorros desapareceram (-22%). Mas o corte mais
evidente é sobre as ambulâncias, como as de Tipo A (emergência)
que aquelas de Tipo B (transporte médico). Em 2017, aquelas de Tipo
A foram reduzidas 4%
relativamente a 10 anos antes enquanto as de Tipo B foram reduzidas à
metade (52%). Note-se também como diminuíram as ambulâncias com
médico a bordo: em 2017, o médico estava presente em 22% dos
veículos, enquanto que em 2017 só em 14,7%. As unidades móveis de
reanimação também se reduziram em 37% (eram 329 em 2007, são 205
em 2017). O ajuste abrangeu também
as casas de repouso credenciadas, em todos os casos, tiveram muito
menos estrutura e ambulancia em comparação com os hospitais
públicos”.
“A
partir dos dados se pode ver como houve uma contração progressiva
dos leitos em escala nacional, muito mais evidente e relevante no
número de leitos públicos em comparação com a proporção de
leitos administrados de forma privada: o corte de 32.717 leitos
totais em sete anos remete principalmente ao serviço público, com
28.832 leitos menos do que em 2010 (-16,2%), em comparação com
4.335 leitos a menos que o serviço privado (-6,3%)”.
10
de março
“Somos
a onda do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo
jardim”.
Isso
está escrito nas dezenas de caixas que contêm máscaras que chegam
da China. Essas mesmas máscaras que a Europa recusou.
11
de março
Não
tenho ido à rua Mascarella, como geralmente faço no 11 de março de
cada ano. Encontramo-nos na frente da lápide que lembra a morte de
Francesco Lorusso, alguém faz um discurso, deposita-se uma coroa de
flores ou uma bandeira de Lotta Continua, que alguém conservou no
porão, e ainda nos
abraçamos,
e
nos
beijamos
abraçando-nos fortemente.
Não
senti vontade de ir desta vez, porque não me sentia bem de dizer a
algum dos meus velhos companheiros companheiros que não podíamos
nos abraçar.
De
Wuhan chegam fotos de pessoas alegres, todos rigorosamente com a
máscara verde. O último paciente com coronavírus teve
alta do
hospital construído rapidamente para conter o fluxo.
No
hospital de Huoshenshan, na primeira etapa da sua visita, Xi elogiou
médicos e enfermeiros chamando-lhes “os anjos mais belos” e “os
mensageiros da luz e da esperança”. Os profissionais de saúde na
linha de frente empreenderam as
missões
mais árduas,
disse Xi, qualificando-os “as pessoas mais admiráveis da nova era,
que
merecem o mais alto elogio”.
Estamos
entrando oficialmente na era biopolitica, onde os
presidentes não podem fazer nada e só os médicos podem alguma
coisa, porém não tudo.
12
de março
Itália.
Todo o país entra em quarentena. O vírus corre mais rápido do que
as medidas de contenção.
Eu
e Billi pusemos a máscara, pegamos a bicicleta e fomos às compras.
Só farmácias e mercados alimentares podem continuar abertos. E
também as bancas de revistas, compramos jornais. E
as tabacarias. Comprei papéis para fazer canudos, mas o haxixe
escasseia em sua caixa de madeira. Em breve, estarei sem
drogas e na praça Verdi não haverá mais nenhum
dos jovens africanos que vendem aos estudantes.
Trump
usou a expressão “foreign virus” [vírus estrangeiro].
All
viruses are foreign by definition, but the President has not read
William Burroughs.
[Todos
os vírus são estrangeiros por definição, mas o Presidente não
leu William Burroughs]
13
de março
No
Facebook há um tipo espirituoso que postou no meu perfil a frase:
ei, Bifo, aboliram o trabalho.
Na
realidade, o trabalho foi abolido apenas para uns poucos. Os
operários da
indústria estão em revolta porque tem de ir à fábrica como
sempre, sem máscaras ou outras proteções, a meio metro de
distância um do outro.
O
colapso, depois as longas férias. Ninguém pode dizer como sairemos
desta.
Podemos
sair, como prevêem alguns, sob a condição de um perfeito estado
tecno-totalitário. No livro Black
Earth,
Timothy Snyder explica que não
há condição melhor para a formação de regime totalitário do que
a situação de emergência extrema, onde a sobrevivência de todos
está em jogo.
A
AIDS criou a condição para enfraquecimento do contato físico e
para o lançamento de plataformas de comunicação sem contato: a
Internet foi preparada pela mutação psíquica denominada AIDS.
Agora
poderíamos
muito bem passar a
uma condição de permanente isolamento dos
indivíduos, e a nova geração poderia interiorizar o terror do
corpo dos outros.
Mas
o que é o terror?
Terror
é uma condição onde o imaginário domina completamente a
imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva,
as imagens que a experiência apresentou, limitação da
imaginação. A imaginação é a energia renovável e afetada. Não
utopia, mas recombinação dos possíveis.
Há
uma divergência no tempo que vem: poderíamos sair imaginando uma
possibilidade que até ontem parecia impensável: redistribuição da
renda, redução do tempo de trabalho. Igualdade, frugalidade,
abandono do paradigma do crescimento, investimento
da energia social em pesquisa, na educação, na saúde.
Não
podemos saber como vamos sair da pandemia cujas condições foram
criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes na saúde pública, pela
hiperexploração nervosa. Poderemos sair definitivamente sozinhos,
agressivos, competitivos.
Mas
podemos sair dela,
por
outro lado,
com
uma grande vontade de abraçar: socialização solidária, contato,
igualdade.
O
vírus é a condição de um salto mental que nenhuma pregação
política poderia ter produzido. A igualdade voltou ao centro da
cena. Imaginemo-la como ponto de partida para o tempo que virá.
Comentários
Postar um comentário