Barcelona já não gera convivência
Entrevista
do sitio La Vanguardia com Marina
Garcés sobre o seu novo livro, Ciudad
Princesa (Galaxia Gutenberg, em catalão e castelhano) no qual fala sobre
Barcelona, a amizade, vida e política, Europa, entre outros, publicada em
09.04.2018. (A tradução é do grupo “Vapor ao Vento”)
Marina Garcés estudou
filosofia em Barcelona, cidade na qual sempre viveu. Atualmente é professora
titular de filosofia na Universidade de Zaragoza. Seu trabalho se divide entre
a docência, a escritura, os filhos e a dedicação ao pensamento prático, crítico
e coletivo que impulsiona há anos, junto com outros companheiros seus, em Espai en Blanc.
Qual foi a faísca do livro?
Responde
a uma inquietude e a uma desorientação nos anos imediatamente posteriores ao
15-M, com a volta que implica um cenário das crises, a nova política, o
processo... Decidi fazer um trabalho de escritura silencioso que me permitisse
encontrar caminhos, fios que estavam se apagando muito rápido, uma experiência
acumulada que estava se perdendo, e o fiz com o objetivo de me orientar, quase
intimamente.
Como se passou do modelo Barcelona para a
marca Barcelona?
A
passagem não é um salto que deu por contraposição, mas por decantação do
próprio modelo Barcelona. Quando o que se faz é vender seus êxitos e
convertê-los numa mercadoria, quando no lugar de um espaço de construção de
vida cidadã ficam só os elementos de exportação de um modelo convertido em
produto, converte-se na marca Barcelona. A cidade por si mesma já não gera convivências,
rompem-se os marcos que permitiam que vivêssemos juntos de forma espontânea.
Também reflete sobre sua vida de
compromisso.
Um dos
argumentos que atravessa todo o livro é partilhar a dimensão que o feminismo
sempre reivindicou, a ideia de que o pessoal é político e que a política também
é pessoal. Exponho essa dimensão mais intima de como se vive uma vida
comprometida e até onde é sustentável. Em vez dessa figura de militante
sacrificial que entrega a vida pela causa, eu defendo as intermitências da
vida, o trabalho, o cuidado, os filhos, os pais doentes, o cansaço, sem me
queimar, sem me desencantar, sem me vender, sem me tornar cínica, sem amargura,
para não me desgastar pelo caminho.
Crítica ao intelectual, tão comum, de
palavra vazia de vida.
Quando o
discurso intelectual se converte numa espécie de caixa vazia de coisas que não
se estão vivendo, que não têm mais razão de ser que se repetir. Quando o pensamento
crítico está vazio de vida é ideologia, um produto, uma marca.
A Europa está fazendo de seu presente a
defesa de seu passado?
Europa,
refiro-me à Europa política, não tem projeto, não olha adiante, está se
defendendo. Isso é muito perigoso porque construir desde o medo é construir
mais fronteiras, mais defesas, mais restrições. Afoga por dentro e deixa morrer
por fora.
O 15-M parecia abrir um espaço no muro e ao
contrário, veio uma etapa regressiva?
É muito
importante situar tudo o que está se passando localmente no espaço europeu e mundiais.
Esses desvios mais regressivos e mais autoritários têm seu reflexo no que
estamos vivendo aqui. As sombras da desigualdade, ecológicas, essa guerra que
não sabemos quando começou nem quando terminará...
O que é a soberania?
A soberania é tomar decisões coletivas.
Uma das crises de hoje é de soberania. Após a primeira etapa de globalização,
os estados estão recuperando o monopólio da soberania e reforçando as medidas
para mantê-la: integridade territorial, fronteiras e segurança. Nesses vinte
anos os movimentos coletivos fizeram com que muitas dimensões da vida social e
cultural transbordassem do marco dos estados. As solidariedades internacionais,
os problemas ambientais, humanitários, a relação entre a vida e a morte, e a
possibilidade de nos encarregar delas coletivamente necessitam formas de
reciprocidade, solidariedade e organização cujo mapa da geopolítica atual, não
responde. O desafio é pensar desde esse tipo de politização capaz de se
construir realmente a partir dos problemas comuns e não desde as identidades já
construídas.
A ação se centra agora na esfera pública não estatal, geografias
políticas tecidas de práticas concretas de vida em comum?
Não há hoje um ponto privilegiado de
onde se possa explicar tudo. Em cada questão concreta que abordamos, está em
jogo o todo. Por exemplo, se falamos sobre a saúde falamos de ecologia, sistema
público, Estado, futuro das aposentadorias, valores culturais...
E a questão da mulher?
Quando falamos de mulher não falamos de
um problema setorial, lateral de uma parte das injustiças de nosso tempo. Pela
mulher passa tudo, o grande deslocamento do último feminismo não é reivindicar
os direitos de uma parte. Em qualquer realidade que falemos de uma mulher –
trabalhista, sexual, cuidados... – estamos falando do conjunto de relações de
dominação de nossas sociedades e isso nos dá relações concretas de vida desde
as quais podemos ir mais além dos problemas particulares e, entretanto, não
caímos na abstração de falar do sistema, como se o sistema fosse uma espécie de
organismo que não sabemos onde está. Está em cada um de nossos corpos, de
nossos alimentos, de nossas relações afetivas e isso nos faz muito poderosos
porque, se podemos encontrar o conjunto de relações que articulam nosso sistema
de vida em dimensões tão concretas de nossas vidas, cada um de nós está em
condições de tocar e de contestar a ordem do mundo.
Quem são ou somos esse nós?
É um nós sem nome, porém feito de todos
os nossos nomes; portanto, não é um nós sem nome abstrato, mas um nós sem nome
concreto, feito da multiplicidade, do sentido e das vidas quando se encontram
de verdade, sem necessidade de subordinar a nenhum sentido do coletivo,
monopolizável, por um sistema político, identidades culturais, de gênero ou do
tipo que sejam.
O que é a república para você?
A república não é só a antimonarquia,
mas a construção de espaços políticos não despóticos.
Você cita Agamben e sua teoria do estado de exceção permanente.
A excepcionalidade permanente é uma
forma de governo. A normalização da crise para governar a crise que é esse
estado de exceção permanente é a melhor maneira de se reapropriar das
soberanias por quem pode fazer da crise seu monopólio.
Não há espaço para a autocrítica?
Uma maneira de manter uma crise como
crise, atada e neutralizada em tudo aquilo que poderia abrir, é convertê-la
numa situação repressiva, que situa qualquer resposta só no terreno da
antirepressão, tendo que lhe dedicar todo seu tempo, dinheiro, medos e
relações. O que nos deveria preocupar não são os desvios de suposta
radicalização, mas que se está construindo um conceito de violência que inclui
a não violência, qualquer tipo de ação coletiva que apresente qualquer tipo de
crítica a ordem estabelecida, na palavra, na reunião ou na ação. É muito
preocupante, porque ressignifica o espaço do político a um nível que não
podíamos imaginar.
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