Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

“Se direcionamos nossas energias apenas para a tomada do poder político, perdemos”



Entrevista da Revista Panamá (15/9/2016) a Franco Berardi “Bifo”, um dos fundadores do movimento autonomista italiano nos anos 70. Da militância nos coletivos auto definidos “mao-dadaístas”, converteu-se num dos mais destacados pensadores marxistas italianos. Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”, analisa nesta entrevista a atualidade política da esquerda européia e latino-americana, em vésperas do que entende ser um longo período de resistência na “época financeira”. Tradução: Vapor ao Vento.

- Muito se fala da crise mas às vezes nos discursos governamentais parece quase ficar como uma entidade abstrata que se abate sobre a União Européia. De que se compõe esta crise?

Bifo – A crise não é abstrata, é muito concreta na vida das sociedades europeias. Nos últimos cinco anos a dinâmica essencial na União Européia tem sido estabelecida pelo chamado “Pacto de Estabilidade”, que significa que cada estado tem que reduzir recursos, dinheiro, à sociedade, para destiná-lo ao sistema bancário europeu. Essa é a lógica geral da economia européia dos últimos anos. Cortam-se recursos às empresas, às escolas, ao trabalho público, ao sistema de saúde. Corta-se dinheiro para a vida social, e isso significa que ao final do ano se paga menos impostos porque a atividade econômica é reduzida a causa disso. Ao mesmo tempo, a sociedade está visivelmente empobrecida. Eu conheço muito bem a situação da escola pública italiana, que tem seu financiamento reduzido e o efeito se vê catastroficamente. Para sair da crise temos que subverter a direção para onde vão os recursos. Não desde a sociedade para o sistema financeiro mas ao contrário, temos que redistribuir dinheiro na sociedade, devemos lançar um projeto de renda básica. Só a renda básica hoje pode restabelecer uma condição de visibilidade para a sociedade européia. Eu espero que Merkel, Renzi e Hollande se dêem conta de que o empobrecimento da sociedade européia provocado pelas medidas de austeridade é a causa direta do desmoronamento da União Européia e do crescimento da direita fascista e nacionalista.

- Chama a atenção como muitos europeus têm assimilado em suas vidas a idéia mesma de austeridade como uma regra justa. No caso da renda básica que você menciona, por exemplo, os suíços decidiram num recente referendum rejeitar essa opção por ampla maioria. Como funciona esse mecanismo que leva milhões de europeus a defender mecanismos de austeridade?

Bifo – A opinião européia mudou muito nos últimos anos. Há cinco anos a maioria dos italianos, dos gregos, ou dos polacos e britânicos, era favorável à União Européia. Talvez os britânicos um pouco menos, os italianos um pouco mais, porém havia uma adesão geral, inclusive entusiasta, ao programa europeu. Hoje a realidade mudou totalmente. Hoje a maioria dos europeus considera a União Européia como a causa direta do empobrecimento de sua vida cotidiana. É verdade que a maioria dos europeus não entenderam que só através da renda básica, de uma redistribuição igualitária, se pode sair do desastre. Esse é o efeito da austeridade. Há cinco anos a maioria eram democráticos europeístas. Hoje uma cota crescente, e talve majoritária, da população tem posições nacionalistas e anti-européias. É uma situação muito perigosa. Porque vamos para um enfrentamento entre o pensamento das classes dirigentes europeias e a direita nacionalista. Eu creio que a única maneira para sair de uma perspectiva tão espantosa, que lembra muito os anos 20 na Europa, é que os líderes europeus peçam perdão, admitam que se equivocaram, que não se pode empobrecer a sociedade para enriquecer o sistema bancário. Temos que lançar uma campanha de redistribuição da renda e de redistribuição do tempo de trabalho. Este último é um problema gigantesco.  A única maneira de enfrentar o desemprego é a reduzir o tempo de trabalho e permitir a muitos jovens trabalhar.

- Todavia a história recente nos indica que os grandes da Europa não pedem desculpas por sua própria iniciativa. Geralmente tem que chegar a ser obrigados a fazê-lo. Muitos pusemos nossas expectativas a respeito em alguns setores da esquerda da política européia para que pusessem um freio ao que leva adiante a União Européia. Podemos ter alguma esperança futura olhando a esquerda na Europa?

Bifo – O problema é que os grandes da Europa não são grandes. São muito pequenos. Essa é a verdade. Hollande é um indivíduo pequeníssimo, que se apresentou às eleições presidenciais dizendo que seu programa era o de enfrentar a violência financeira e a austeridade.
Porém, em seu governo, só temos visto a aplicação de uma lei brutal contra os direitos do trabalho e a atitude cada vez mais agressiva e autoritária de seu primeiro ministro, Manuel Valls. Temos visto que a esquerda na Europa não tem o coração, a lucidez, a cultura para enfrentar o problema de maneira radical, que é a única maneira na qual se pode enfrentar. Pensemos no que se passou na Grécia há um ano. O 5 de julho a maioria dos gregos diz que não à rapina, à violência, à humilhação que a Troika queria impor. E que fez Hollande? Que fez Renzi? Nada. Aceitaram a inevitabilidade da vontade da Troika. Aceitaram a vontade de organizações financeiras criminosas que impuseram a Alexis Tsipras ir a Bruxelas atraiçoar, sem culpa eu o sei, mas abandonar a vontade democrática do povo grego. O problema está aqui. Na humilhação do povo grego. A humilhação de Syriza foi em certo sentido uma lápide, uma declaração de morte da União Européia, e a esquerda se portou de maneira totalmente subalterna. Os pequenos grandes da Europa têm a inteligência de compreender que se queremos salvar algo da idéia do projeto originário da União, pensado por antifascistas e anticapitalistas, tem que restituir poder social e político aos trabalhadores? Não sei. Espero que sim.

- Nos últimos decênios, a Europa também tem nos acostumado com outra esquerda, a que não está nos governos e parlamentos, a que se chamou esquerda social, que vai desde aquela que você representou nos anos 70, passando pelo movimento antiglobalização até chegar aos indignados. Uma esquerda jovem, européia, desobediente e muito ativa, que todavia hoje parece muito calada. 

Bifo – Há dois níveis políticos que analisar. O primeiro é o nível eleitoral. Em alguns casos, o movimento social se transformou numa força eleitoral e até ganhou, como aconteceu na Grécia. Na Espanha se deu algo similar, e até o momento conseguiu paralisar a política espanhola, e não sabemos como vai terminar. Eu não creio muito na eficácia da via eleitoral. Temos visto na Grécia, a democracia não funciona, não existe democracia. Na época financeira a democracia ou está na vida cotidiana ou não serve, está fechada na vida parlamentar. É verdade que o movimento social europeu está calado. Porque a experiência do movimento global terminou na matança de Gênova, e isso nos pôs frente ao problema da relação com a violência do Estado, e que hoje se apresenta diretamente como fascismo e militarização da realidade euro-mediterrânea . Depois temos vivido a grande experiência de 2011 na Espanha com os indignados, nos Estados Unidos e Inglaterra com os movimentos Occupy, no norte da África com as primaveras Árabes. Porém temos entendido que esta forma de oposição ética, moral e política não pode mudar a direção das coisas. Eu creio que temos que inventar algo totalmente novo, que não parte desde o nível da política, que não se ocupa do que se passa a nível dos governos. Os governos, como os parlamentos, não têm nenhum poder. O poder está integralmente nas mãos dos automatismos financeiros. Temos que criar um movimento que seja capaz de ser autônomo disso. Que se manifeste através da ocupação de áreas das cidades, de lugares urbanos que mudem a vida cotidiana, sua economia, sua ecologia. Nápoles, Barcelona, Madrid, estão vivendo uma experiência que é muito interessante nesse nível. Porque são comunidades urbanas que criam as condições políticas, porém sobretudo sociais, para resistir a longo prazo. Porque os próximos dez anos serão anos de guerra civil no euro-mediterrâneo. Serão anos de violência financeira e violência fascista. Temos que nos preparar para um período longo de autonomia urbana, de sobrevivência, e de reinvenção de uma sociedade que o capitalismo financeiro destruiu.

- Como você viu essa década latino-americana marcada por governos progressistas e de esquerda? Há algum ponto de encontro com a experiência européia?

Bifo – Não me parece que neste momento a experiência de deslocamento e de conquista do poder institucional vá muito bem. Nem na Argentina, nem no Brasil, nem na Venezuela. A tentativa de Lula no Brasil e Kirchner na Argentina foi muito importante para estabelecer um nível estatal de força da autonomia social. Não digo que se haja esgotado, porém não me parece que hoje o caminho seja muito luminoso nessa direção. Na América Latina também temos que voltar a uma concepção centrada sobre o problema da autonomia social. Na Argentina isso significa a experiência dos piqueteiros, do Colectivo Situaciones, de muitas realidades sociais que a partir de 2001 souberam transformar a vida, não só as instituições. O problema é transformar a vida, a cara da cidade, as relações afetivas e sociais, esse é o problema não o governo.

- Parte do que você diz posso encontrar desenhado na experiência das comunas venezuelanas, talvez a experiência mais próxima de uma redefinição política da vida cotidiana porém a partir da iniciativa de um movimento que o Estado conduz...

Bifo – Pode ser. O problema é que a experiência de governo de um Estado Nacional pode ser muito útil para o crescimento das experiências sociais de autonomia, auto-organização. Porém, no longo prazo não pode permanecer nos limites da dimensão nacional. A Venezuela está sendo estrangulada pelo capitalismo norteamericano e o capitalismo financeiro global. Temos que ser realistas. Eu quero sê-lo. O poder político é só uma ferramenta, que pode funcionar num período e pode não funcionar em outro período. O poder social é o problema verdadeiro. Ou seja, qual é a relação entre trabalhadores e capital, entre inquilino e dono? A transformação da vida social desde esse ponto de vista eu creio que é muito mais importante. Há uma similitude muito grande entre a Europa e a América Latina nesse nível. Se direcionamos  nossas energia só na tomada do poder político, perdemos. Se formos capazes de criar situações de auto-organização no nível da vida cotidiana, teremos a capacidade de resistir a longo prazo, de sobreviver no período sombrio que o neoliberalismo trouxe ao planeta.

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