Entrevista
da Revista Panamá (15/9/2016) a Franco Berardi “Bifo”, um dos
fundadores do movimento autonomista italiano nos anos 70. Da militância nos
coletivos auto definidos “mao-dadaístas”, converteu-se num dos mais destacados
pensadores marxistas italianos. Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”,
analisa nesta entrevista a atualidade política da esquerda européia e latino-americana,
em vésperas do que entende ser um longo período de resistência na “época
financeira”. Tradução: Vapor ao Vento.
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Muito se fala da crise mas às vezes nos discursos governamentais parece quase
ficar como uma entidade abstrata que se abate sobre a União Européia. De que se
compõe esta crise?
Bifo – A crise
não é abstrata, é muito concreta na vida das sociedades europeias. Nos últimos
cinco anos a dinâmica essencial na União Européia tem sido estabelecida pelo
chamado “Pacto de Estabilidade”, que significa que cada estado tem que reduzir
recursos, dinheiro, à sociedade, para destiná-lo ao sistema bancário europeu.
Essa é a lógica geral da economia européia dos últimos anos. Cortam-se recursos
às empresas, às escolas, ao trabalho público, ao sistema de saúde. Corta-se
dinheiro para a vida social, e isso significa que ao final do ano se paga menos
impostos porque a atividade econômica é reduzida a causa disso. Ao mesmo tempo,
a sociedade está visivelmente empobrecida. Eu conheço muito bem a situação da
escola pública italiana, que tem seu financiamento reduzido e o efeito se vê
catastroficamente. Para sair da crise temos que subverter a direção para onde
vão os recursos. Não desde a sociedade para o sistema financeiro mas ao
contrário, temos que redistribuir dinheiro na sociedade, devemos lançar um
projeto de renda básica. Só a renda básica hoje pode restabelecer uma condição
de visibilidade para a sociedade européia. Eu espero que Merkel, Renzi e
Hollande se dêem conta de que o empobrecimento da sociedade européia provocado
pelas medidas de austeridade é a causa direta do desmoronamento da União
Européia e do crescimento da direita fascista e nacionalista.
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Chama a atenção como muitos europeus têm assimilado em suas vidas a idéia mesma
de austeridade como uma regra justa. No caso da renda básica que você menciona,
por exemplo, os suíços decidiram num recente referendum rejeitar essa opção por
ampla maioria. Como funciona esse mecanismo que leva milhões de europeus a
defender mecanismos de austeridade?
Bifo – A opinião
européia mudou muito nos últimos anos. Há cinco anos a maioria dos italianos,
dos gregos, ou dos polacos e britânicos, era favorável à União Européia. Talvez
os britânicos um pouco menos, os italianos um pouco mais, porém havia uma
adesão geral, inclusive entusiasta, ao programa europeu. Hoje a realidade mudou
totalmente. Hoje a maioria dos europeus considera a União Européia como a causa
direta do empobrecimento de sua vida cotidiana. É verdade que a maioria dos
europeus não entenderam que só através da renda básica, de uma redistribuição
igualitária, se pode sair do desastre. Esse é o efeito da austeridade. Há cinco
anos a maioria eram democráticos europeístas. Hoje uma cota crescente, e talve
majoritária, da população tem posições nacionalistas e anti-européias. É uma
situação muito perigosa. Porque vamos para um enfrentamento entre o pensamento
das classes dirigentes europeias e a direita nacionalista. Eu creio que a única
maneira para sair de uma perspectiva tão espantosa, que lembra muito os anos 20
na Europa, é que os líderes europeus peçam perdão, admitam que se equivocaram,
que não se pode empobrecer a sociedade para enriquecer o sistema bancário.
Temos que lançar uma campanha de redistribuição da renda e de redistribuição do
tempo de trabalho. Este último é um problema gigantesco. A única maneira de enfrentar o desemprego é a
reduzir o tempo de trabalho e permitir a muitos jovens trabalhar.
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Todavia a história recente nos indica que os grandes da Europa não pedem
desculpas por sua própria iniciativa. Geralmente tem que chegar a ser obrigados
a fazê-lo. Muitos pusemos nossas expectativas a respeito em alguns setores da
esquerda da política européia para que pusessem um freio ao que leva adiante a
União Européia. Podemos ter alguma esperança futura olhando a esquerda na
Europa?
Bifo – O problema
é que os grandes da Europa não são grandes. São muito pequenos. Essa é a
verdade. Hollande é um indivíduo pequeníssimo, que se apresentou às eleições
presidenciais dizendo que seu programa era o de enfrentar a violência
financeira e a austeridade.
Porém, em seu governo, só
temos visto a aplicação de uma lei brutal contra os direitos do trabalho e a
atitude cada vez mais agressiva e autoritária de seu primeiro ministro, Manuel
Valls. Temos visto que a esquerda na Europa não tem o coração, a lucidez, a
cultura para enfrentar o problema de maneira radical, que é a única maneira na
qual se pode enfrentar. Pensemos no que se passou na Grécia há um ano. O 5 de
julho a maioria dos gregos diz que não à rapina, à violência, à humilhação que
a Troika queria impor. E que fez Hollande? Que fez Renzi? Nada. Aceitaram a
inevitabilidade da vontade da Troika. Aceitaram a vontade de organizações
financeiras criminosas que impuseram a Alexis Tsipras ir a Bruxelas atraiçoar,
sem culpa eu o sei, mas abandonar a vontade democrática do povo grego. O
problema está aqui. Na humilhação do povo grego. A humilhação de Syriza foi em
certo sentido uma lápide, uma declaração de morte da União Européia, e a
esquerda se portou de maneira totalmente subalterna. Os pequenos grandes da Europa
têm a inteligência de compreender que se queremos salvar algo da idéia do
projeto originário da União, pensado por antifascistas e anticapitalistas, tem
que restituir poder social e político aos trabalhadores? Não sei. Espero que
sim.
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Nos últimos decênios, a Europa também tem nos acostumado com outra esquerda, a
que não está nos governos e parlamentos, a que se chamou esquerda social, que
vai desde aquela que você representou nos anos 70, passando pelo movimento
antiglobalização até chegar aos indignados. Uma esquerda jovem, européia,
desobediente e muito ativa, que todavia hoje parece muito calada.
Bifo – Há dois
níveis políticos que analisar. O primeiro é o nível eleitoral. Em alguns casos,
o movimento social se transformou numa força eleitoral e até ganhou, como
aconteceu na Grécia. Na Espanha se deu algo similar, e até o momento conseguiu
paralisar a política espanhola, e não sabemos como vai terminar. Eu não creio
muito na eficácia da via eleitoral. Temos visto na Grécia, a democracia não
funciona, não existe democracia. Na época financeira a democracia ou está na
vida cotidiana ou não serve, está fechada na vida parlamentar. É verdade que o
movimento social europeu está calado. Porque a experiência do movimento global
terminou na matança de Gênova, e isso nos pôs frente ao problema da relação com
a violência do Estado, e que hoje se apresenta diretamente como fascismo e
militarização da realidade euro-mediterrânea . Depois temos vivido a grande
experiência de 2011 na Espanha com os indignados, nos Estados Unidos e
Inglaterra com os movimentos Occupy, no norte da África com as primaveras Árabes.
Porém temos entendido que esta forma de oposição ética, moral e política não
pode mudar a direção das coisas. Eu creio que temos que inventar algo
totalmente novo, que não parte desde o nível da política, que não se ocupa do
que se passa a nível dos governos. Os governos, como os parlamentos, não têm
nenhum poder. O poder está integralmente nas mãos dos automatismos financeiros.
Temos que criar um movimento que seja capaz de ser autônomo disso. Que se
manifeste através da ocupação de áreas das cidades, de lugares urbanos que
mudem a vida cotidiana, sua economia, sua ecologia. Nápoles, Barcelona, Madrid,
estão vivendo uma experiência que é muito interessante nesse nível. Porque são
comunidades urbanas que criam as condições políticas, porém sobretudo sociais,
para resistir a longo prazo. Porque os próximos dez anos serão anos de guerra
civil no euro-mediterrâneo. Serão anos de violência financeira e violência
fascista. Temos que nos preparar para um período longo de autonomia urbana, de
sobrevivência, e de reinvenção de uma sociedade que o capitalismo financeiro
destruiu.
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Como você viu essa década latino-americana marcada por governos progressistas e
de esquerda? Há algum ponto de encontro com a experiência européia?
Bifo – Não
me parece que neste momento a experiência de deslocamento e de conquista do
poder institucional vá muito bem. Nem na Argentina, nem no Brasil, nem na
Venezuela. A tentativa de Lula no Brasil e Kirchner na Argentina foi muito
importante para estabelecer um nível estatal de força da autonomia social. Não
digo que se haja esgotado, porém não me parece que hoje o caminho seja muito
luminoso nessa direção. Na América Latina também temos que voltar a uma
concepção centrada sobre o problema da autonomia social. Na Argentina isso
significa a experiência dos piqueteiros, do Colectivo Situaciones, de muitas
realidades sociais que a partir de 2001 souberam transformar a vida, não só as
instituições. O problema é transformar a vida, a cara da cidade, as relações
afetivas e sociais, esse é o problema não o governo.
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Parte do que você diz posso encontrar desenhado na experiência das comunas
venezuelanas, talvez a experiência mais próxima de uma redefinição política da
vida cotidiana porém a partir da iniciativa de um movimento que o Estado
conduz...
Bifo –
Pode ser. O problema é que a experiência de governo de um Estado Nacional pode
ser muito útil para o crescimento das experiências sociais de autonomia, auto-organização.
Porém, no longo prazo não pode permanecer nos limites da dimensão nacional. A Venezuela
está sendo estrangulada pelo capitalismo norteamericano e o capitalismo
financeiro global. Temos que ser realistas. Eu quero sê-lo. O poder político é
só uma ferramenta, que pode funcionar num período e pode não funcionar em outro
período. O poder social é o problema verdadeiro. Ou seja, qual é a relação
entre trabalhadores e capital, entre inquilino e dono? A transformação da vida
social desde esse ponto de vista eu creio que é muito mais importante. Há uma
similitude muito grande entre a Europa e a América Latina nesse nível. Se direcionamos
nossas energia só na tomada do poder
político, perdemos. Se formos capazes de criar situações de auto-organização no
nível da vida cotidiana, teremos a capacidade de resistir a longo prazo, de
sobreviver no período sombrio que o neoliberalismo trouxe ao planeta.
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