[A entrevista é de 2014 mas com temas muito atuais e faz parte do esforço do “Vapor ao Vento” de compreender a contribuição teórica de Christian Laval e Pierre Dardot sobre temas centrais da economia, da política, da vida, enfim, atualmente. Entrevista feita por Amador Fernández-Savater, Marta Malo e Débora Ávila, e publicada no blog Interferencias, em 10/10/2014. Tradução: Vapor ao Vento]
Não há
resistência ao neoliberalismo sem entender como ele funciona. A obra dos
intelectuais franceses Laval e Dardot distingue o neoliberalismo do liberalismo
clássico (“menos estado”) e de uma política econômica que vem simplesmente “de
cima”.
Em que
consiste o neoliberalismo? Pode-se ainda pensá-lo como aquela ideologia que faz
do “menos Estado” sua característica principal? Como estende e impõe uma
determinada forma de organizar o mundo e a vida que faz da competência a norma
universal dos comportamentos? Como se pode resistir, subverter, sair de suas
coordenadas?
O
penúltimo livro dos intelectuais franceses Christian Laval (sociólogo) e Pierre
Dardot (filósofo) retoma as exposições de Michel Foucault e empreende uma
ambiciosa reconstrução da história e do presente do que eles chamam a nova
razão do mundo. E no último, Commun (que
será publicado por Gedisa ao longo do ano), analisam as lutas que proliferam
hoje em dia por todas as partes e propõem “o comum” como o termo central de uma
alternativa política para uma revolução do século XXI. Commun tem todos os traços para se converter numa obra de
referência maior no debate político dos próximos anos, algo como em seu momento
pôde ser Imperio de Toni Negri e
Michael Hardt.
À luz
da conjuntura atual, onde o significado de palavras como “poder” ou “ganhar”
têm tanta importância, Marta Malo, Débora Ávila (pesquisadoras, ativistas e
amigas) e eu mesmo lhes perguntamos por algumas questões fundamentais que
abordam ambos os livros: a diferença entre poder político e “governo”, a
natureza indissociável do neoliberalismo como política macro e micro (planos de
ajuste e ao mesmo tempo produção de formas de vida) ou a necessidade política
de encontrar uma via alternativa entre a “tomada do poder” e a fuga para uma
sociedade paralela.
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1. “La nueva razón del mundo” se apresenta, em primeiro lugar, como uma obra de esclarecimento político. A
compreensão do neoliberalismo, dizem vocês, tem um “alcance estratégico”
fundamental para a mudança social. Em que sentido?
Pierre
Dardot. Vocês têm toda razão em insistir sobre a intenção política da obra,
faz parte de nossas intenções. Temos partido da seguinte constatação, ao mesmo
tempo intelectual e política: cremos conhecer o neoliberalismo quando na
realidade não sabemos exatamente o que é nem de onde vem. Resistir eficazmente,
lutar contra uma situação intolerável, não só requer uma boa organização e uma
estratégia eficaz, mas também, e sobretudo, uma inteligência coletiva da
situação, que pode se conseguir através da discussão de trabalhos teóricos de
profundidade nos e pelos movimentos. Pois bem, a análise e a denúncia do neoliberalismo
sobre as quais se apoiam os movimentos sociais e as contestações políticas
desde os anos 90.
2. O
primeiro erro, para vocês, seria confundir o liberalismo clássico e o
neoliberalismo. Em grandes traços, qual é a diferença?
Christian Laval. O
liberalismo clássico se constituiu no século XVIII em torno da questão dos
limites da intervenção governamental. Três princípios foram postulados, falando
muito esquematicamente, como fundamento dessa limitação: o mercado abandonado
ao seu “curso natural” (Adam Smith), o cálculo da utilidade (Jeremy Bentham) e
os direitos naturais dos indivíduos (John Locke). O começo do século XX viu
como o liberalismo, em particular o dogma do laissez faire, entrava numa crise profunda. No caso do liberalismo,
uma questão diferente substitui a dos limites: já não se trata de limitar, mas de estender. Estender a lógica do
mercado mais além da estrita esfera do mercado e com esse fim reformar o
funcionamento interno do Estado de maneira que seja a principal alavanca dessa extensão. Denunciar o neoliberalismo como
se fosse uma renovação da doutrina de Adam Smith é se equivocar de época e de
objetivo. O neoliberalismo não é uma doutrina econômica falsa ou arcaica, mas
um conjunto de práticas e de normas construídas política, institucional e
juridicamente.
3. O
que significa que o neoliberalismo seja “la nueva razão del mundo”?
Pierre Dardot.
Falamos de “razão” precisamente no sentido de uma “racionalidade”, ou seja, de
uma lógica que dirige as práticas desde
seu próprio interior e não de uma simples motivação ideológica ou
intelectual. O neoliberalismo não governa, principalmente, através da
ideologia, mas através da pressão exercida sobre os indivíduos pelas situações
de competência que cria. Essa “razão” é mundial por sua escala e “faz mundo” no
sentido de que atravessa todas as esferas da existência humana sem reduzir-se à
propriamente econômica. Não é a esfera econômica a que tende a absorver as
demais esferas, mas a lógica de mercado a que se estende a todas as outras
esferas da vida social sem destruir, todavia, as diferenças entre elas.
4. Uma das idéias mais potentes do livro
nos parece que é a caracterização do neoliberalismo como “forma de vida” e não
como algo puramente exterior aos sujeitos. O que significa que o neoliberalismo
seja uma forma de vida? E que forma de vida em concreto?
Pierre Dardot. Para
nós, o neoliberalismo é muito mais do que um tipo de capitalismo. É uma forma de sociedade e, inclusive, uma forma de existência. O que põe em jogo é
nossa maneira de viver, as relações com os outros e a maneira na qual nos
representamos a nós mesmos. Não só tem a ver com uma doutrina ideológica e com
uma política econômica, mas também com um verdadeiro projeto de sociedade (em construção) e uma certa fabricação do ser humano. “A economia é
o método, o objetivo é mudar a alma”, dizia Margaret Thatcher.
Christian Laval. No
neoliberalismo, a competência e o modelo empresarial se convertem num modo
geral de governo das condutas e, inclusive, também numa espécie de forma de vida,
de forma de governo de si. Não só são os salários dos diferentes países os que
entram em luta econômica, mas que todos os indivíduos estabelecem relações
“naturais” de competição entre eles. Esse processo se produz muito
concretamente através de mecanismos muito variados, como por exemplo a
destruição das proteções sociais, o enfraquecimento do direito ao trabalho, o
desenvolvimento deliberado da precariedade massiva ou o endividamento
generalizado dos estudantes e das famílias. Trata-se de afundar o maior número
de pessoas possível num universo de competição e lhes dizer: “que ganhe o
melhor!”.
5.
Porém, que novidade introduziria o “indivíduo competitivo” neoliberal em
relação ao “homo economicus” do liberalismo clássico?
Pierre Dardot.
Certamente, pode-se ver no neoliberalismo uma extensão da figura do “homo
economicus”. Porém a concepção clássica do “homo economicus” no século XVIII se
baseava ainda em virtudes pessoais reconvertidas pelo utilitarismo em
faculdades de cálculo, prudência e ponderação: equilíbrio nos intercâmbios,
balança dos prazeres e dos esforços, busca da felicidade sem excessos. Já não
estamos aí. Agora cada qual está chamado em diante a se conceber e se conduzir
como uma empresa, uma “empresa de si
mesmo” como dizia Foucault.
Ser
empresa de si significa viver por completo no risco, partilhar um estilo de
existência econômica até agora reservado exclusivamente aos empresários.
Trata-se de uma cominação constante a ir
mais além de si mesmo, o que supõe assumir na própria vida um desequilíbrio
permanente, não descansar ou parar jamais, superar-se sempre e encontrar o
desfrute nessa mesma superação de toda situação dada. É como se a lógica da
acumulação indefinida do capital se houvesse convertido numa modalidade subjetiva.
Esse é o inferno social e íntimo ao qual o neoliberalismo nos conduz.
6. O
que supõe a crise para o neoliberalismo? Tem afetado sua legitimidade?
Christian Laval.
Longe de implicar um debilitamento das políticas neoliberais, como creram
muitos como Stiglitz em 2008, a crise conduz ao seu fortalecimento sob a forma
de planos de austeridade destrutores. O que mostra o desenvolvimento dessa
crise é a potencia do marco institucional que tem instalado as políticas
neoliberais, um marco que se impõe aos atores atuais exatamente como o
desejaram os grandes promotores da racionalidade neoliberal desde os anos 30. Ao
não poder nem sequer romper esse marco, os atores políticos se vêem arrastados
numa fuga adiante para se adaptar mais e mais aos efeitos de sua própria
política anterior. Como explicar de outra maneira, por exemplo, a carreira
suicida para saber quem será o campeão da austeridade?
7.
Todavia, a maior parte dos socialdemocratas segue propagando a idéia de que
para se proteger do neoliberalismo o melhor é “construir Europa”.
Pierre Dardot. É um
erro muito grave que a socialdemocracia européia está pagando caro (veja-se o
caso dos socialistas franceses hoje). É importante compreender que a
constitucionalização do capitalismo, tal e como tem sido realizada pela União
Européia, não é uma contingência mais ou menos acidental, mas o coração mesmo
do neoliberalismo europeu. Desde a mesma fundação da Europa, a lógica do
mercado, e suas principais condições monetárias, sociais e orçamentárias, se
colocaram fora do alcance de toda vontade democrática. E isso seja qual for a
catástrofe a qual conduzem essas políticas.
Christian Laval. A
União Européia, tal e como tem sido concebida, é uma máquina construída para
transformar a sociedade sobre o modelo da competência capitalista generalizada.
O impulso e fomento da competência entre os países membros favorece aos mais
fortes e obriga aos menos competitivos a empreender “reformas estruturais” que
introduzem a lógica de mercado no coração mesmo dos Estados e das relações
sociais. O imperativo da competitividade que anima cada país membro a fazer uso
do dumping fiscal e salarial para atrair capitais é, na realidade, um princípio
autodestrutor da democracia e da Europa.
8.
Vocês afirmam que “não se sai de uma racionalidade ou de um dispositivo
mediante uma simples mudança política, da mesma forma que não se inventa outra
forma de governar os homens mudando de governo”. O que significa isso?
Christian Laval.
Fazemos uma diferença entre “governo como instituição” e “governo como
atividade”. O governo como “instituição” nos reenvia imediatamente ao Estado e
seus dirigentes, enquanto que o governo como “atividade” designa a maneira como
as pessoas, sejam ou não governantes, ou seja membros de um governo, conduzem
as outras pessoas se esforçando em orientar e estimular suas condutas. Neste
segundo caso, o governo é a forma como algumas pessoas “conduzem a conduta”
(para retomar a expressão de Foucault) de outras.
Uma
simples mudança de equipe governamental, como efeito de uma alternância
eleitoral entre partidos, não basta nem muito menos para mudar o modo de
governo dos seres humanos. O exemplo da alternância na França mostra muito
claramente: a política de Hollande prolonga em perfeita continuidade a que
desenvolveu antes Sarkozy, não há nesse sentido a menor ruptura, senão a
prossecução do modo de governo neoliberal sob outros envolvimentos retóricos
(“patriotismo econômico”, etc).
9.
Vocês imaginam possibilidades emancipadoras à instância do poder político? Como
avaliam, por exemplo, as políticas anti-neoliberais dos governos progressistas
na América Latina?
Christian Laval. O
essencial para nós é compreender que nenhum governo, por muito progressista que
seja, pode emancipar o povo. Não pode mais do que lhe ajudar em sua própria
emancipação, o que já é muito. Para isso deve favorecer a todos os níveis (do
local ao nacional) a participação dos cidadãos na atividade do governo mesmo. O
único governo cuja atividade é um ponto de apoio para a emancipação é o que
ajuda praticamente à constituição do autogoverno. O que importa são as práticas
de governo dos governantes: vão no sentido de uma “desestatização” ou
contribuem pelo contrário para reforçar o poder do Estado a custa do
autogoverno?
Pierre Dardot. A
experiência da América Latina deve nos incitar a fazer a diferença entre
Chiapas, que constitui uma autêntica experiência de emancipação, e os governos
chamados “progressistas”, que não têm rompido verdadeiramente com a lógica
neoliberal ainda que hajam assumido, em alguns casos, a nacionalização de
setores da economia. O populismo que diz governar “em nome das massas” não é
uma alternativa à racionalidade neoliberal, mas ao contrário não faz senão
reforça-la. Tem que compreender que o Estado não é um simples instrumento
neutro, mas que impõe, com frequência, sua própria lógica a todos aqueles que
pretendem se servir dele “pelo bem do povo”.
10. “A
única via prática consiste em promover desde agora formas de subjetivação
alternativas ao modo de empresa de si”, dizem vocês. Essas formas de
subjetivação outras se encarnam para vocês em contra-condutas: o que são?
Pierre Dardot. Nosso
último livro Commun (2014) está
dedicado a analisar as práticas de resistência ativa à lógica normativa do
neoliberalismo: formas cooperativas e colaborativas de produção, consumo,
educação ou habitat que surgem em âmbitos diversos (agricultura, arte ou novas
tecnologias), novas práticas democráticas que emergem da luta mesma,
comunidades ativas em formação (muitas vezes através da Internet), etc. O
compromisso voluntário numa prática coletiva democrática é o único meio para os
indivíduos de viver ao abrigo das enormes pressões mercantis, das pressões
competitivas e das obsessões do “sempre mais”. É também a maneira de se converter
em autênticos “sujeitos democráticos”.
Christian Laval.
Esses movimento têm permitido, segundo nossa reflexão, superar o plano
“resistencial” que era, todavia, especialmente o de Foucault quando falava de
contra-condutas. O que hoje se reafirma de maneira muito forte é que a forma da
atividade alternativa, já seja econômica, cultural ou política, é inseparável
do objetivo global que se persegue, a saber, a transformação da sociedade. Essa
lógica geral, essa racionalidade alternativa, não é só crítica ou de oposição,
mas sobretudo criadora porque apresenta, na prática e em cada ocasião de modo
específico, a questão das instituições democráticas que tem que construir para
conduzir juntos uma atividade qualquer. A essa lógica chamamos “razão do
comum”.
11. Em
que consiste, como se produz a “razão do comum”?
Pierre Dardot. É uma
razão política, um modo de condução das condutas oposto ao da competência. O sentido profundo do “comum” como
principio político é o seguinte: não há mais obrigação (cum-munus: co-obrigação) do que a que procede da coparticipação na
deliberação e na decisão. A noção de “política” toma então um sentido distinto
de uma atividade da ordem do monopólio dos governantes, ainda que sejam bem
intencionados: a de uma igualdade no fato de “tomar parte” na deliberação e na
decisão pela qual as pessoas se esforçam por determinar o justo. A co-produção
de normas ou regras que compromete a todos os que participam numa atividade.
Assim reconectamos com a idéia aristotélica da política.
12.
Como vocês pensam, desde essa aposta pela razão do comum, os problemas
recorrenes da estratégia e da organização política?
Christian Laval. O
combate pela emancipação exclui seguramente a figura do estrategista que decide
a partir de uma posição de superioridade a eleição dos meios a por em prática. Porém é preciso se por objetivos e eleger
meios. Toda a questão é como se leva a cabo uma atividade assim. É preciso
romper com a lógica do partido como “representante” do povo ou das massas, seja
qual for a retórica adotada. A organização política do porvir deve renunciar a
“representar” a maioria, invocando uma compreensão superior do sentido da História.
Pelo contrário, deve sim atuar favorecendo a convergência prática das
resistências nos setores de atividade mais diversos, ou seja, a construção de
um “comum” verdadeiramente transversal que procede de uma co-atividade e de uma
co-participação.
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