Como o neoliberalismo destrói a democracia

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 [artigo de Christian Laval publicado em Viento Sur , em 8/4/2024. Tradução: Haroldo Gomes] A observação é clara. As democracias liberais e parlamentares, ligadas aos chamados Estados de Direito, são confrontadas externamente por regimes que abominam essa forma política, enquanto internamente são sabotadas por uma grande fração de forças de direita ou de extrema direita. Os recentes sucessos eleitorais das formações mais nacionalistas e xenófobas na Itália, Holanda e Alemanha atestam isso. Não se trata aqui de aprovar o desempenho das democracias parlamentares que estão historicamente ligadas ao colonialismo e que deram uma roupagem liberal à exploração capitalista da força de trabalho. Em vez disso, trata-se de mostrar como o neoliberalismo, como um modo geral de organização econômica e social em todos os níveis da vida, funcionou e continua a funcionar como uma máquina formidável para a destruição da democracia liberal. Foi isso que levou alguns autores, como Wendy Brown, a falar de

Zapatistas empenhados no “bem viver”





[Artigo de Ángel Luis Lara, sociólogo e professor de Estudos Culturais na Universidade Pública de Nova York, publicado no Periódico Diagonal, 18.1.2015. Tradução: Vapor ao Vento]
“Cada vez mais nos unimos à dor, porém também à raiva. Porque agora, e desde algum tempo, vemos que em muitos rincões se acendem luzes”. A 21 anos de seu levantamento armado, a palavra zapatista segue falando a mesma língua, porém mudou de voz. Moisés substituiu Marcos como porta-voz do movimento e, mais além do imaginário evangélico com o qual jogam ambos pseudônimos, o êxodo zapatista segue seu curso em espiral. Centenas de milhares de homens, mulheres, anciãos e meninos governando-se a partir de suas necessidades, capacidades, possibilidades e desejos coletivos. Um buraco na História Universal pelo qual emerge uma história multiversal e contingente feita de processos mais do que de eventos, de enunciações comuns mais que de nomes próprios. Desde mais de 20 anos, os povos zapatistas do sudoeste do México protagonizam uma profunda experiência de democracia real e de emancipação. Talvez a mais integral e duradoura da história moderna.
“Só com movimento e organização os que estamos abaixo poderemos nos defender e nos libertar”. A mensagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional salta na alvorada do novo ano. Cada 1º de janeiro desde mais de duas décadas, os povos zapatistas recebem o ano festejando o aniversário de seu levante em 1994. Todavia, as palavras do subcomandante Moisés não têm nada de ritual nem de celebração de um acontecimento passado. E sim são um sinal que se conecta decididamente com o presente. Os zapatistas receberam o ano de 2015 acompanhados dos familiares dos 43 estudantes sequestrados há mais de três meses de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero. “Hoje, o mais doloroso e indignante é que não estão conosco os 43. (...) A pena pelas mortes e desaparições. A coragem pelos maus governos que escondem a verdade e negam a justiça”, expressa o comando zapatista pela boca de seu porta-voz.
Ayotzinapaé um condensador da barbárie que atravessa o México atual. Desde 2006, 85.000 pessoas foram assassinadas. Durante os mandatos de Felipe Calderón e de Peña Nieto, atual presidente mexicano, desapareceram no país 22.000 cidadãos. Anistia Internacional assinala que na última década o número de denúncias por tortura pelas mãos das forças armadas ou da polícia aumentou uns 600%, enquanto que entre 2005 e 2013 somente sete torturadores foram condenados pela justiça local. Segundo a Comissão Nacional de Direitos Humanos, 70.000 migrantes desapareceram no país entre 2007 e 2012. O México não é um estado falido, como assinalam alguns, mas uma forma de Estado que impõe a “tanatopolítica” como condição de um regime de acumulação econômica baseado na destruição da vida e de toda forma de sociabilidade que resista o mando dos políticos, do narcotráfico e das elites econômicas. A aliança entre esses três grandes agentes implica a combinação de uma “economia criminosa” de proporções gigantescas, com uma “criminalidade econômica” profunda que multiplica e intensifica os estragos provocados pelas políticas neoliberais no país.
Coração coletivo
O tiro de partida para a configuração do terrível presente do México se corresponde com a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, em 1º de janeiro de 1994. Tão claro os povos zapatistas viam o futuro, que escolheram essa mesma data para gritar seu “Já basta!”. “Em si, sabíamos. Em si, sabemos. Para isso nos preparamos anos, décadas, séculos”, diz o subcomandante Moisés, 21 anos depois. Também diz que o estudo e a análise são armas, “porém nem só a prática, nem só a teoria. As zapatistas, os zapatistas pensamos e lutamos. Lutamos e pensamos no coração coletivo que somos”. Desse coração coletivo feito de práxis, emergem dois conceitos que não só sintetizam a eficácia do projeto zapatista atualmente, como ajudam a entender porque no México de Ayotzinapa, os territórios nos quais os zapatistas são governo são únicos livres do narcotráfico, de desaparições e barbárie. Michel Foucault chamava, ao primeiro desses conceitos, heterotopia para designar, ao contrário das utopias, um lugar realmente existente que, mesmo que dentro de uma sociedade, desobedece as suas regras para fundar formas de vida, assim como ordens normativas e de sentido evidentemente outro e diferente. O segundo conceito remete a uma forma particular de heterotopia a que alguns povos indígenas da América Latina chamam “bem viver” há quase quatro séculos.
No México de Ayotzinapa, os territórios nos quais os zapatistas são governo, são os únicos livres do narcotráfico.
O sociólogo Aníbal Quijano associa o “bem viver” a um complexo de práticas sociais empenhadas na produção e reprodução de uma vida coletiva realmente democrática, a partir de um novo modo de existência social radicalmente alternativo à hegemonia mundial do padrão de poder ligado ao desenvolvimento do capitalismo e do projeto colonial europeu desde finais do século XV. Nessa ótica histórica de longo alcance, o impacto das conquistas do projeto zapatista se mede no contraste seus escassos 21 anos de existência e dos longos 523 anos que os povos indígenas da América Latina levam em resistência. Ali, onde antes havia abandono, exploração, má-nutrição e morte por doenças curáveis, o autogoverno zapatista fundou escolas, hospitais, leis, administrações locais, sistemas produtivos, economias, sexualidades, instituições de novo tipo... E, sobretudo, fundou modos de vida autônomos, igualdade desde as diferenças e relações sociais alheias à forma mercadoria.
“O zapatismo é uma mistura de tudo para coisas novas e o novo não é fácil, pois, porque não se conhece como é. Aí é onde tem que se inventar, entre todos e com a participação de todos”, me dizia há alguns anos Abel, um camponês tojolabal base de apoio zapatista. O subcomandante Moisés apontou neste mês de janeiro, que “não há um manual. Não  há um dogma. Não há um credo”. Para acrescentar que “não há um só caminho, não há um passo único. (...) São diversos os tempos e os lugares e muitas as cores que brilham abaixo e à esquerda na terra que dói. Porém, o destino é o mesmo: a liberdade”. Ou como uma vez me disse Abel, “faz tempo que os zapatistas e as zapatistas aprendemos que resistir não é só aguardar, mas que, sobretudo é construir o outro”.

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