[Texto de Edgar Morin,
sociólogo e filósofo francês, publicado no portal Rebelión, em 13.1.2015. Tradução: Vapor ao Vento]
A expressão de François
Hollande é justa: “França ferida no coração”. Feriram-na no coração de sua
natureza laica e de sua ideia de liberdade, justamente contra um semanário
tipicamente desrespeitoso, do burlesco até toda forma sagrada, especialmente
religiosa. Pois bem, a falta de respeito de Charlie
Hebdo se situa no riso e no humor, o que outorga ao atentado um caráter
monstruosamente imbecil.
Nossa
emoção não deve paralisar nossa razão, como tampouco a razão deve atenuar nossa
emoção.
Uma
contradição insuperável
Houve
problemas no momento de publicar as caricaturas. É necessário deixar que a
liberdade ofenda a fé dos crentes do islão degradando a imagem de seu Profeta
ou é que a liberdade de expressão prima sobre toda outra consideração? Meu
sentimento é que existe uma contradição insuperável, tanto mais que eu sou dos
que se opõem à profanação dos lugares e dos objetos sagrados.
Porém
que se entenda bem, isso não diminui meu horror e meu asco pelo atentado a Charlie Hebdo. Dito isso, meu horror e
meu asco não podem me impedir de contextualizar esse imundo atentado. Tem
significado a irrupção no coração da França da guerra do Oriente Médio, guerra
civil e internacional na qual a França interviu seguindo os Estados Unidos.
O
ascenso do Estado Islâmico é certamente uma consequência das radicalizações e
da putrefação da guerra no Iraque e na Síria, porém as intervenções estado-unidenses
no Iraque e no Afeganistão contribuíram para a decomposição de nações compostas
étnica e religiosamente, como Síria e Iraque.
Os
Estados Unidos têm sido aprendizes de bruxos e a heterogênea e sem força real
coalizão que dirigem está condenada ao fracasso, posto que não reúne todos os
países interessados e dado que tem por objetivo de paz a impossível restauração
da unidade sírio-iraquiana, enquanto que a única saída pacífica (atualmente
irrealizável) seria a formação de uma grande confederação de povos, etnias,
religiões do Oriente Médio com o aval da Organização das Nações Unidas, único
antídoto para o Califado.
Coincidência
França
está presente com sua aviação, pelos franceses muçulmanos que se incorporaram à
guerra santa, pelos franceses muçulmanos que regressaram da guerra santa e
agora está igualmente claro que o Oriente Médio está também no interior da
França através da criminosa atividade que debuta com o atentado a Charlie
Hebdo, como também está no conflito palestino-israelita.
Além
disso, existe uma coincidência, por outra parte fortuita, entre o islamismo
integrista assassino que acaba de se manifestar e as obras islamofóbicas de
Zemmoury Houllebecq, convertidas em sintomas de uma virulência agravada da
islamofobia no solo da França, mas também da Alemanha ou da Suécia.
O
medo se agravará
O
pensamento reducionista triunfa. Não somente os assassinos fanáticos creem
combater as cruzadas e seus aliados os judeus (que os cruzados massacravam)
como os islamofóbicos reduzem todo árabe a sua suposta crença no islão,
reduzindo o islâmico ao islamismo, o islamismo ao integrismo, o integrismo ao
terrorismo. Esse anti-islamismo se torna cada vez mais radical e obsessivo e
tende a estigmatizar toda uma população mais importante ainda do que a
população judia que foi estigmatizada pelo antissemitismo antes da guerra e de
Vichy.
O
medo se agravará entre os franceses de origem cristã, entre os de origem árabe,
entre os de origem judia. Uns se sentem ameaçados pelos outros e está se
produzindo um processo de decomposição que talvez possa parar na grande
manifestação do sábado, 10 de janeiro, porque a resposta à decomposição é a
união de todos, de todas as etnias, de todas as religiões e de todas as
correntes políticas.
Edgar Morin é sociólogo e filósofo.
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